Reportagem em Filadélfia, Pensilvânia
À porta do Pennsylvania Convention Center estão montadas duas manifestações em torno de um só assunto: a contagem dos votos da cidade de Filadélfia. É aqui, neste edifício no centro da cidade, que se contabilizam os últimos votos de Filadélfia, e também do fulcral estado da Pensilvânia. Do lado de fora, separados por uma grade, estão duas faces dos EUA aparentemente irreconciliáveis.
De um lado, num espaço mais amplo e em forma de T, estão os apoiantes de Joe Biden — embora muitos não se assumam como tal e usem insígnias nas quais se lê “Contem os votos”. Do outro, na forma de um D deitado, estão os apoiantes de Donald Trump, erguendo cartazes e bandeiras de apoio ao Presidente dos EUA. Entre este T e este D deitado, está uma simples grade que a polícia colocou para evitar confrontos físicos. É ao longo dela que os dois lados se juntam — e ali discutem.
Entre a música alta que o lado anti-Trump lança e os megafones que se ouvem do lado pró-Trump, estas pessoas debruçam-se sobre a vedação para debaterem sobre a contagem dos votos e também sobre o estado do país. Raramente se entendem, às vezes insultam-se e frequentemente falam uns por cima dos outros. Uns saem de costas voltadas, mais do que nunca. Outros, acabam por sair satisfeitos com o que acaba ali de acontecer: “Gostava de fazer isto mais vezes”.
São estes os relatos dessas discussões, numa vedação que separa as duas faces de um país dividido à espera de um resultado que, seja ele qual for, irá provavelmente abrir uma fossa ainda mais profunda entre eles.
Michael (25 anos, Filadélfia) vs. Noble (14 anos, Filadélfia)
Atrás de Michael, apoiante de Donald Trump, grita-se: “Mais quatro anos! Mais quatro anos!”. Já atrás de Noble, que apesar de não ter idade para votar apoia Joe Biden, grita-se o número de votos no Colégio Eleitoral que a campanha democrata crê ter e que os republicanos não aceitam: “264! 264! 264!”.
Entre gritos de um lado e do outro, Michael e Noble têm uma conversa cordial. Na maior parte das vezes, esperam que o outro conclua a sua ideia para começarem a partilhar a sua — e não é raro começarem a falar com frases como “não estou a dizer que estejas errado” ou “tens direito à tua opinião”.
Michael, que está sem máscara, é o primeiro a falar sobre a questão que dá o pontapé de saída a este frente a frente diante do Pennsylvania Convention Center. “A minha mãe, que é afro-americana, e o meu pai, que é branco, ambos me ensinaram que quando queremos uma coisa na vida temos de fazer por isso, temos de lutar por isso até ao fim. É isso que Donald Trump está a fazer.”
Noble ajusta a máscara, que lhe fica larga na sua cara de adolescente, antes começar. “Isso é tudo muito correto e admirável, mas até ao ponto em que ele se põe numa posição de pôr em causa a nossa democracia”, refere o jovem de 14 anos. “É o Trump que está a estragar tudo. Mas tu achas que o Biden está a roubar as eleições, é isso?”
Ao princípio, Michael não entende a pergunta. A dois metros, no seu lado direito, um apoiante de Donald Trump grita a um megafone “vai-te foder!” para um apoiante de Joe Biden, que lhe responde, também com um megafone, “vai-te matar!”.
Noble repete: “Achas que o Biden está a roubar as eleições?” “Não, sei lá, mas acho que não”, responde Michael. Noble fica surpreendido. “Então que raio é que estás a fazer aqui, homem?”, pergunta-lhe agora o adolescente estupefacto. Michael encolhe os ombros e sorri timidamente: “É o meu candidato. É o meu Presidente. Tudo o que ele disse que ia fazer foi feito, ele cumpriu tudo. Eu só tenho de apoiá-lo.”
Noble não consegue esconder a surpresa com o que acaba de ouvir: “Então quer dizer que aceitas os resultados, é?” “Aceito, sim. Mas têm de contar os votos todos”, devolve-lhe Michael. O jovem responde-lhe que é precisamente isso que ele e o seu lado da vedação querem. “Não vês os cartazes todos? Não vês o que nós estamos a dizer? ‘Contem todos os votos’!”, diz-lhe, apontando em seu redor. Michael torna a encolher os ombros. “Tudo bem. Contem os votos. Que ganhe o melhor”, responde-lhe, estendendo o punho ao adolescente, que o cumprimenta da mesma forma.
Atrás de Noble, um manifestante anti-Trump e pró-Biden vê este gesto de entendimento e diz: “Uau”.
Kaoru Wang (37 anos, Nova Iorque) vs. Michael Luna (30 anos, Filadélfia)
“Eu não percebo, por mais que tente, como é que tu podes ser uma deles”, começa Michael Luna. “Eles são todos racistas, são uns animais que querem que todas as pessoas que não sejam brancas vivam uma vida inferior à deles.”
Michael Luna é de Filadélfia e é latino. Para ele, a questão racial “é a maior divisão do país”. E, por isso, não entende como é que Kaoru Wang, que tem ascendência asiática, pode estar do lado de lá da grade, ao pé dos apoiantes de Donald Trump.
Kaoru Wang reage mal ao que ouve. Por momentos, perde a pose calma que tinha até aí. “Como é que podes dizer uma coisa dessas?!”, grita-lhe exaltada: “Eu passei a vida inteira a pensar assim, mas depois deixei-me dessas tretas, porque percebi que isso era um embuste.”
Kaoru Wang conta que até há pouco tempo era democrata: “Depois deixei-me disso, porque estou farta da política identitária, já não posso com essa conversa.” “Não quero que me julguem, que me empreguem ou que me considerem por causa dos meus genitais, da cor da minha pele, do meu apelido, da minha orientação sexual ou nada disso”, reforça.
Michael Luna ouve tudo isto com o telemóvel ligado, a fazer um direto na sua página de Facebook. Ao início, começou com a câmara apontada, em cima da cara de Kaoru Wang, que está sem máscara à vista. Depois, com o alongar da conversa, deixa o telemóvel sem foco definido. Pode ser que as quatro pessoas que estão a assistir ao seu vídeo em direto oiçam a sua resposta. “Mas nós temos de falar destas coisas!”, diz. “Achas que são eles que vão fazer alguma coisa por ti? Achas que são eles que vão defender os teus direitos? Os direitos das minorias? Eles?!” A cada “eles” que Michael Luna diz, aponta para o outro lado: apoiantes de Donald Trump, na sua maioria brancos.
Kaoru Wang tem problemas com este “eles” e não o esconde. “Porque é que dizes ‘eles’? Eu sou ‘eles’!”, diz. “Eu também apoio o Donald Trump! Eu sou parte deles. E, já agora, deixa-me dizer-te uma coisa: sabes qual é a minoria que está mais em perigo neste país? Tens ideia de qual é?”, devolve Kaoru Wang. Primeiro, Michael Luna faz um olhar vago perante esta pergunta, depois, contornada a hesitação, responde-lhe: “Todas! Todas as minorias estão em perigo por causa do teu Presidente.”
A resposta de Kaoru Wang sai-lhe pronta: “É o indivíduo. Cada um de nós! Cada um de nós quando está sozinho é a minoria que está mais em perigo neste país, porque querem tirar todas as liberdades individuais a cada um de nós. É isso que vocês querem fazer”.
Michael Luna acusa o toque deste “vocês” e devolve: “Não, vocês é que querem tirar os direitos às minorias”. Também do lado de Kaoru Wang o “vocês” não é bem recebido. “Mas vocês o quê?! Eu sou uma pessoa. Indivíduo! Eu falo por mim!”, responde-lhe.
Michael Luna regressa a uns momentos atrás, à pergunta “Então mas não estavas a dizer que eras um ‘deles’?”. Agora é Kaoru Wang que faz um olhar vago. E, assim que arranja também uma maneira de contorná-lo, responde: “Eu sou eu mesma e sou eles. Sou as duas coisas”. Com isto, vira as costas a Michael Luna, que fica sozinho na grade. Nesta altura, já só duas pessoas assistem ao seu live no Facebook.
Brenda Courtney (52 anos, Nova Iorque) vs. Amanda Hull (41 anos, Filadélfia)
“Já estou completamente farta de falar de boletins de votos e das milhares de maneiras de votar”, diz Brenda Courtney. Mas ainda assim, não deixa de fazê-lo. “Eu não percebo porque é que os democratas têm de estar tão preocupados com isto. Nós sempre votámos no dia das eleições. Quem tivesse uma justificação válida para não poder votar nesse dia podia fazer voto antecipado, mas tirando isso não havia invenções nenhumas…”
Amanda Hull ouve-a e, quando a apanha em falta, interrompe-a: “Isso não é verdade, minha senhora, há muitos anos que há voto por correspondência. É assim que Donald Trump vota!”.
Brenda Courtney aceita o que lhe diz a mulher do outro lado da vedação, mas não a acompanha. “Vocês só fizeram isso tudo para ver se conseguiam roubar as eleições, só isso, mais nada”, diz a mulher que viajou de propósito de Nova Iorque para aqui estar. Amanda Hull, que apenas precisou de apanhar o autocarro desde a sua casa, leva a mal aquelas palavras: “Agradeço que não fale assim comigo, porque eu não vim para aqui roubar nada, ninguém quer roubar eleições, nós queremos é que todos os votos sejam contados. Se há alguém que está a tentar roubar as eleições, não somos nós de certeza”.
Brenda Courtney parece entender que a sua interlocutora levou a mal as suas palavras. “Desculpe, se calhar não me expressei bem”, atalha. “Mas é que eles nem queriam deixar entrar os observadores eleitorais republicanos!”, referiu. À altura que Brenda Courtney falava, passava cerca de uma hora desde que Corey Lewandowski (conselheiro sénior da campanha de Donald Trump) e Pam Bondi (ex-procuradora-geral da Flórida e membro da equipa de Donald Trump) haviam entrado no Pennsylvania Convention Center, na sequência de uma ordem judicial. “Finalmente deixaram-nos entrar, mas já me estão a dizer que não lhes deixam ver os boletins de perto, isto é uma desgraça”, disse.
“Mas eu já estou farta de falar de votos”, repetiu Brenda Courtney. E depois, em jeito de mudança de assunto, diz: “Sabe porque é que eu votei em Donald Trump? Por causa do aborto. Eu não posso admitir que no meu país se queira matar crianças de forma inocente”.
Amanda Hull ouve em silêncio e volta a responder: “É engraçado que vocês republicanos não queiram saber do governo para nada, acham que o governo não deve interferir em nada, mas depois acham que o governo pode chegar-se ao pé de mim e dizer-me o que posso ou não fazer com o meu corpo”. Já com os polegares apontados na sua própria direção, atira: “A mim?! O governo a dizer-me a mim, que sou uma adulta, que faço sexo quando quero, a dizer-me o que faço com o meu corpo? A mim, que dei dois filhos a este mundo? A sério?”.
Brenda Courtney abana a cabeça com os olhos cerrados, numa expressão dolorosa. “Querida, o bebé é um ser vivo. Quando se aborta, está-se a matar um ser vivo, com ADN próprio”, diz. “Tem de ler o livro ‘The Choice’, da Danielle D’Souza, para saber do que é que eu estou a falar.”
Amanda Hull acena com a cabeça perante a sugestão literária, mas depois diz: “Não vou ler isso, não vou ler. Desculpe a honestidade, mas é o que é. Já tenho a minha opinião formada, não vou ler propaganda”. Brenda Courtney começa a recuar, em desconforto. “Bom, eu seria capaz de ler qualquer coisa que você me sugerisse, porque eu gosto sempre de saber o que o outro lado pensa”, diz a mulher de Nova Iorque, já afastada.
Do seu lado da vedação, a mulher de Filadélfia grita o nome da estrela pornográfica que terá tido relações sexuais com Donald Trump e que, depois, assinou um acordo de confidencialidade sobre esse encontro: “Espero que a Stormy Daniels use o dinheiro de extorsão que recebeu para fazer um aborto!”.
Já a uma certa distância, Brenda Courtney exclama: “Oh, por favor!”.
Diane (55 anos, Nova Iorque) vs. Jamal Anderson (26 anos, Filadélfia)
Diane tem um cartaz de onde se lê o slogan de Donald Trump — “Make America Great Again”, ou seja, “Tornar a América Grande Novamente” — e Jamal Anderson desafia-a: “Explique-me, afinal, quando é que a América foi grande. Eu quero saber!”
Do seu lado da vedação, Diane faz um sorriso paternalista e responde: “Oh, vá lá, tu não acreditas nisso, pois não?”
Ela é branca, ele é negro — e rapidamente esses dados se tornam cruciais na discussão.
“Foi grande quando? Quando havia escravatura? Quando nós nos tínhamos de sentar nos bancos de trás do autocarro, é isso?”, lança-lhe Jamal Anderson.
Com a máscara em baixo até ao queixo, Diane, que não quis revelar o seu apelido, suspira longamente. “Por favor, não me digas que tu acreditas nisso!”, repete, agora já mais exasperada. “Eu nasci há 55 anos, eu tenho lá culpa de que tenha havido escravatura neste país… Eu nasci há 55 anos, por acaso tenho culpa de que quando eu era pequena houvesse leis que separavam brancos de negros? Eu não tenho culpa de nada disso”, atira-lhe Diane. “Mas porque é que vocês têm de estar sempre a falar disso?”
Jamal Anderson abana persistentemente a cabeça, pintada num vermelho à Denis Rodman. Os amigos, que estão atrás dele, dizem-lhe coisas como “manda essa mulher à merda” ou “não oiças essa branquelas”. Jamal Anderson enxota-os: “Não, calem-se mas é vocês, eu quero ouvi-la.”
E, enfim, responde-lhe: “Eu falo disso, porque não tenho outra opção. Quando eu saio de casa, quando eu vou a bairros como o seu, a primeira coisa que sobressai é a cor da minha pele. É para aí que toda a gente olha, é nisso que toda a gente pensa, mais nada. E se você vivesse no meu bairro saberia o que é a perseguição policial com base apenas na cor da nossa pele. Eles andam a matar-nos, eles…”.
Quando Jamal Anderson diz esta última frase, Diane interrompe-o. “Não andam nada a matar-vos!”, afirma, justificando: “A polícia mata mais brancos do que negros, vai pesquisar isto!” Jamal Anderson defende que “isso é a maior mentira de sempre” e devolve-lhe: “Não, eles andam a matar-nos e as coisas estão a piorar”. Neste momento, a conversa perdeu a ordem inicial e já falam um por cima do outro. “É mentira, está a ficar melhor, isto está a ficar melhor para vocês também!”, diz Diane. Jamal Anderson não se fica: “Isso é que o que eles lhe venderam. É mentira”. Diane já está a recuar, mas não deixa de rematar: “As coisas estão melhores, eu sei que estão”.