Mário Centeno fez um caminho sinuoso até chegar a governador do Banco de Portugal (BdP). Aliás, faz esta quinta-feira um mês que tomou posse à frente do supervisor. Um jovem ultra-promissor, melhor aluno do ISEG – a quem o BdP pagou um doutoramento em Harvard – deu por si, mais de uma década de serviço ao banco depois, a ser rejeitado para o cargo de economista-chefe depois de ter vencido o respetivo concurso (num processo que envenenaria para sempre a relação com Carlos Costa). Pelo meio, nessa “primeira vida” de Centeno no Banco de Portugal, fez alianças cruciais, conquistou “ódios viscerais” e é acusado pelos críticos de “criar ruído” junto da troika, enquanto decorria o programa de ajustamento. “Já estava a fazer política”, diz um desses críticos – certo é que seria a passagem pela política que, mais tarde, o levaria ao topo.
Poucas semanas antes do verão “quente” de 2013, marcado pela saída de Vítor Gaspar do Ministério das Finanças e do episódio da saída “irrevogável” de Paulo Portas, a economista-chefe do Banco de Portugal, Ana Cristina Leal, deixou esse lugar vago para ir para a Caixa Geral de Depósitos. Quando esta diretora sai, ficaram na liderança do Departamento de Estudos Económicos os seus dois diretores-adjuntos, Nuno Alves e Mário Centeno.
Nesses anos, Centeno, que era adjunto desde 2004, passou em grande medida a dar a cara pelo departamento, como uma espécie de diretor-interino não-oficial. Era mais velho e mais sénior do que Nuno Alves, que “era um magnífico ‘carregador de pianos’, enquanto Centeno se assumia como uma espécie de solista”, diz quem acompanhou de forma próxima o trajeto do novo governador e o trabalho que foi sendo desenvolvido naqueles anos.
Centeno “era introvertido, mas uma excelente cabeça para os temas da Economia”, recorda uma outra fonte, que foi muitos anos seu superior hierárquico no BdP. E outra pessoa, que trabalhou de forma muito próxima com os dois economistas, resume: “eram muito diferentes mas muito complementares, uma equipa de sonho”. Nuno Alves tornou-se entretanto (em 2018) o diretor do Departamento de Estudos Económicos, lugar onde ainda permanece.
O “ruído” que Centeno fazia com a troika (aos olhos de Gaspar)
Nem todas as pessoas com quem o Observador falou, porém, são tão elogiosas assim, quando se lhes pergunta sobre essa primeira “encarnação” de Centeno no BdP. E uma das histórias que mais frequentemente lhe são “coladas” está ligada ao facto de que uma das responsabilidades de Centeno era ter reuniões com os representantes da troika para falar sobre as projeções macroeconómicas que sustentavam as “promessas” trimestrais do Governo à troika. O diretor-adjunto do BdP ia a essas reuniões acompanhado por Ricardo Mourinho Félix, outro ex-ISEG que Centeno conheceu já no Banco de Portugal e que acabaria, mais tarde, por levar consigo para o governo (e que era uma das pessoas do banco com quem mais se relacionava no dia a dia).
Ainda no tempo de Vítor Gaspar, recorda fonte próxima, tornou-se “óbvio” aos olhos do ex-ministro das Finanças e da sua equipa que nessas reuniões entre a troika e o Banco de Portugal eram severamente colocadas em causa as projeções económicas que o governo transmitia aos credores externos: alertando os representantes da troika para os cenários adversos e os riscos negativos das previsões do governo e dos próprios credores internacionais, designadamente no que diz respeito ao impacto que as medidas de austeridade iriam provocar na economia.
Numa dessas missões regulares, recorda a mesma fonte, surgiu um “exame” que acabou por se tornar num dos mais delicados daqueles anos – e tudo porque os economistas do BdP, Centeno e Mourinho Félix, “puseram em causa as projeções do Governo, perante a troika, e esse exame só pôde ser fechado na condição de Portugal apresentar um conjunto de medidas suplementares para o caso de correr mal – tudo por causa do ‘ruído’ que eles tinham feito, como se quisessem que isto corresse mal”.
Contactado pelo Observador, Mário Centeno preferiu não fazer comentários e Ricardo Mourinho Félix não devolveu as várias e insistentes tentativas de contacto. Mas uma fonte ligada a esse “lado da barricada” sublinha que os “debates acesos” em torno das projeções económicas não foram limitadas aos tempos da troika mas já vinham do tempo do governo de Sócrates e Teixeira dos Santos.
No caso das conversas com representantes da troika, porém, essa fonte destaca que uma das coisas que se combateram com mais intensidade era o prognóstico, feito em 2011, de que no início de 2012 a economia iria dar um “salto” quase miraculoso somente à boleia de um suposto “efeito-confiança” gerado pelo facto de o país estar a cumprir bem o programa de ajustamento.
Centeno e os seus aliados não acreditavam nesse efeito virtuoso e acreditavam que os chamados “multiplicadores” sobre o consumo e o investimento seriam muito menos favoráveis do que o governo defendia perante a troika – e que iam na linha, na verdade, daquilo que o próprio FMI também receitava. Mais tarde, já em 2013, o economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard, viria a fazer o seu famoso mea culpa, em que reconheceu ter subestimado o impacto das medidas de austeridade nos “multiplicadores” que se fazem sentir nas economias.
A entrevista que caiu como uma bomba
Foi por esta altura, também, que Mário Centeno começou a aparecer mais na imprensa. Em fevereiro de 2013, teve honras de primeira página no Jornal de Negócios uma entrevista onde aparecia ao lado de Álvaro Novo (outra pessoa de quem Centeno era próximo no Banco de Portugal – e que também viria a levar consigo para o Governo).
A entrevista tinha títulos muito críticos para o governo PSD-CDS. Dizia-se que a reforma laboral do Governo (e da troika) tinha sido “uma oportunidade perdida” e que não havia “salários que chegassem” para pagar a desvalorização interna – que era, basicamente, a estratégia escolhida pela troika e por Vítor Gaspar para recuperar as contas públicas do país e colocar a economia numa posição de maior sustentabilidade e competitividade.
Essa entrevista caiu como uma bomba no meio. Eram palavras duras, que questionavam, de forma fundamental, a receita da troika e do governo de então. E não foi a única, houve também uma entrevista ao jornal Público onde Centeno também apareceu a fazer uma análise que alguns poderiam comparar a uma base de programa de governo – em tudo contrastante com aquilo que estava a ser feito.
Pelo que o Observador conseguiu apurar, essas foram entrevistas e aparições na imprensa que foram autorizadas pelo Banco de Portugal. Mas não é difícil encontrar opiniões que defendem que esse tipo de protagonismo não se coaduna com as regras de conduta do Banco de Portugal, porque não era feita uma separação entre as visões críticas do economista e, neste caso, do diretor-adjunto do Departamento de Estudos Económicos da instituição.
Nem seria, aliás, possível fazer-se essa separação de forma total, disse uma das inúmeras pessoas com quem o Observador falou nas últimas semanas sobre essa “primeira vida” de Centeno no Banco de Portugal. Uma “primeira vida” que viria a acabar, nesse mesmo ano de 2013, precisamente por causa dessas posições públicas assumidas pelo economista – segundo a leitura que é feita de forma consensual pelas fontes ouvidas e que preferiram, regra geral, não ser identificadas.
Centeno visto como cada vez mais próximo do PS
Após o regresso de Harvard, em 2000, Centeno voltou ao Banco de Portugal – tinha assumido esse compromisso, como é natural, pelo facto de ter ido para Harvard com uma bolsa do Banco de Portugal. Subiu na estrutura do banco e todos reconhecem que foi com mérito. Do ponto de vista científico e académico acabou, porém, por ter uma produção considerada por alguns como aquém do que se poderia esperar de alguém com o seu potencial e com as oportunidades a que teve acesso – desde logo, o doutoramento em Harvard.
Essa é a leitura feita por um académico que trabalhou com Centeno nesses anos e que viu no agora governador uma mudança de personalidade a dada altura.
Nos primeiros anos da década de 2000, esta fonte descreve-o como “afável, colaborador, sempre disponível” para os outros. Mas alguns anos depois, sobretudo na segunda metade da década, a sua personalidade mudou um pouco, conta esta fonte que trabalhou de perto com o agora governador. “A partir de 2005, mais ou menos, houve ali uma mudança: penso que entrou numa lógica de diferenciação” em relação aos demais. O que coincidiu com uma era em que as ligações com pessoas do PS se terão reforçado – há muito que era próximo de figuras como Ferro Rodrigues, atual presidente da Assembleia da República, e Sérgio Figueiredo, ex-diretor de informação da TVI.
Alguns trabalhos científicos que publicou, como aquele onde fala nos riscos de se aumentar em demasia o salário mínimo, lhe terão causado “fricções” junto de seus amigos do PS, como o próprio terá na altura confidenciado nos corredores do Banco de Portugal. “Ficou claro aos olhos de muitos que, a certa altura, estava com um pé no Banco de Portugal e outro no partido – e esse processo, nos anos da troika, sofreu uma grande aceleração”, diz esta fonte.
Publicamente, Centeno sempre descreveu o estreitamento das relações com o PS como perfeitamente casual – e a verdade é que apesar das críticas à forma como Vítor Gaspar geriu o programa de ajustamento, nunca lhe faltaram “amigos” na direita: David Justino, hoje vice-presidente do PSD, foi quem apresentou o livro que Centeno escreveu com o patrocínio da Fundação Francisco Manuel dos Santos – “O Trabalho”.
Centeno diz, habitualmente, a quem lhe pergunta, que a primeira vez que entrou na sede do PS foi em dezembro de 2014, depois do convite que António Costa lhe fez para liderar a equipa de “peritos” económicos. Era – e continua a ser – um independente, apesar de ter sido ministro das Finanças.
A “humilhação” que Carlos Costa tentou vender como uma “promoção”
Apesar de tudo isto, quando Ana Cristina Leal sai em 2013, a ascensão de Mário Centeno a economista-chefe parecia perfeitamente natural e previsível. Tanto que, quando a administração liderada por Carlos Costa decidiu abrir um concurso para a liderança do gabinete de estudos, Centeno ficou ligeiramente incomodado por não ter sido convidado a candidatar-se – mas acabou por fazê-lo na mesma.
O concurso foi inédito na história do BdP por ser aberto ao exterior. Foi entregue a um júri – presidido por Emílio Rui Vilar – que, no final, considerou Centeno o candidato mais qualificado para o cargo, pela informação validada pelo Observador junto de várias fontes, mas que nunca foi publicamente confirmada. O que se sabe é que quando terminou o prazo para as candidaturas, seguiu-se um hiato. Um hiato suspeito, que sinalizava que algo não estava bem.
E foi nesse momento, no final de 2013, que o todo o processo foi subitamente abortado: em comunicado, o Banco de Portugal indicou que “deliberou encerrar o processo de recrutamento externo para diretor do Departamento de Estudos Económicos por entender que as candidaturas não reuniam todos os requisitos exigidos para o desempenho da função”.
Nesse mesmo comunicado, dizia-se, também, que seria designada uma “comissão para produzir um conjunto de recomendações sobre o reposicionamento estratégico e a missão do Departamento de Estudos Económicos, em função dos objetivos do Banco neste domínio”. E quem é que iria liderar essa comissão? O homem que poucos meses antes, a 1 de julho, tinha batido com a porta no governo de Passos Coelho: o “consultor do Banco de Portugal Professor Doutor Vítor Gaspar”.
Seguiu-se, depois, uma longa mas tortuosa conversa no Banco de Portugal, entre Carlos Costa e Mário Centeno. O governador patinou no momento de dar a Centeno algumas explicações sobre porque é que não se ia respeitar aquilo que o júri do concurso havia determinado, isto é, que ele era o melhor candidato entre aqueles que se apresentaram ao concurso.
Foi uma conversa em que Carlos Costa se manteve cabisbaixo, de olhos no chão, durante boa parte do tempo, sabe o Observador.
Mais do que dar explicações lógicas, Carlos Costa terá optado por persuadir Centeno a considerar aquela uma oportunidade de “subir” de diretor-adjunto do departamento para consultor da administração – o que era, de facto, uma promoção no organigrama do banco. Centeno, porém, não ficou convencido: não era uma “promoção” que estava ali em causa – era uma humilhação, uma rejeição para um cargo para o qual se havia candidatado e para o qual o próprio Centeno achava que teria capacidades e currículo para desempenhar.
A imprensa confirmou, na altura, que as razões do governador Carlos Costa se prendiam com as intervenções públicas de Centeno, entre artigos e entrevistas em jornais, todos com palavras críticas em relação a diversas opções do Governo. Esse era “um comportamento que é visto como uma violação do dever de reserva a que está obrigado um diretor-adjunto do Banco de Portugal”, escreveu a TSF no final de 2013, citando fontes conhecedoras do processo.
A leitura feita por alguns, à distância de todos estes anos, é que tinha ficado muito claro que “Centeno tinha ficado demasiado politicamente comprometido” para o gosto de Carlos Costa – fosse para o lado que fosse.
“Após ponderação do relatório do painel de seleção, o Conselho de Administração entendeu que, não obstante os méritos individuais dos candidatos propostos, nenhum reunia a combinação de atributos necessária para assegurar o padrão de liderança e de gestão de equipas que garantisse a prossecução de um mais ambicioso posicionamento estratégico do departamento nos planos analítico e institucional, tendo, por isso, decidido encerrar o processo de recrutamento”. Esta foi a explicação oficial dada pelo Banco de Portugal.
Para o departamento económico, acabou por encontrar-se uma solução interna: Isabel Horta Correia, nomeada pela administração, uma pessoa que nem se tinha candidatado ao concurso. Isabel Correia acabou por ficar no cargo até 2018, altura em que passou as rédeas do departamento a Nuno Alves, ex-diretor-adjunto ao lado de Centeno (que também não se candidatou, na altura, numa mostra de respeito por Centeno).
Um governador e um ministro das Finanças que não se falam
Esse episódio do concurso acabou por gerar a situação caricata que é ter um ministro das Finanças e um governador do Banco de Portugal que mal se falam sem ser por interposta pessoa – ainda mais numa época em que teria sido importante haver uma interação constante, com colapsos bancários e processos de venda de bancos alvos de resolução.
Quando entrou no governo, Mário Centeno não perdeu muito tempo para tentar apanhar em falso o governador Carlos Costa, assim que chegou a ministro das Finanças – como contou ao Observador uma fonte próxima do processo, logo no final de 2015/início de 2016 Centeno tentou imputar ao governador uma “falta grave” (a única que justifica uma exoneração) alegando que Carlos Costa não tinha comunicado convenientemente ao Governo os limites regulatórios do BCE relacionados com a prestação de liquidez de emergência ao Banif.
Esse processo acabou por não ter consequência, mas logo se percebeu que seriam cinco longos anos de interação conturbada. Um rancor que é “incompreensível” aos olhos de uma fonte, próxima de Carlos Costa, que acompanhou o processo de perto: “Não faz sentido. O que o governador [Carlos Costa] lhe ofereceu até foi uma coisa simpática”.
Centeno não viu as coisas dessa forma. Mas aceitou, porém, passar para o oitavo andar, onde estão os consultores da administração. Até passou a ter uma vida mais calma e mais tempo livre, porque “um diretor do departamento de estudos trabalha que se farta, muito mais do que um consultor da administração, que normalmente recebe uma tarefa mais a la longue como organizar uma conferência, por exemplo [foi esse um dos trabalhos de Centeno nas novas funções]”, diz essa fonte próxima do Banco de Portugal.
“Centeno é um tipo inteligente, muito competente mas com uma ponta de vaidade”, acrescenta essa mesma fonte. Mas o novo governador não é descrito como conflituoso – embora tenha sido nessa “primeira vida” no banco central que ganhou um arqui-inimigo: Pedro Portugal, a par de Centeno um dos autores mais respeitados e citados na pesquisa económica na área do mercado de trabalho. Era, tal como Centeno, doutorado numa universidade dos EUA (University of South Carolina) mas, no seu caso, vinha da Faculdade de Economia da Universidade do Porto.
Os dois incompatibilizaram-se. Terá sido uma questão de “quebra de lealdade” que esteve na base desse caso, após uma publicação de Pedro Portugal numa revista científica prestigiada. Emergiu um conflito intelectual que rapidamente escalou para o conflito pessoal – a dada altura o “ódio visceral era tanto” que um deles nem se referia ao outro pelo primeiro e último nome, mas sim pelo segundo nome próprio e pelo penúltimo sobrenome, recorda uma fonte.
Pedro Portugal, que continua ligado ao Banco de Portugal, não quis falar com o Observador sobre essa incompatibilização que foi bem conhecida de todos os que passavam os dias nos gabinetes do Banco de Portugal tanto na Avenida Almirante Reis como na baixa pombalina.
Num edifício e no outro, agora, as fontes contactadas pelo Observador indicam que os funcionários estão divididos entre aqueles que confiam que Mário Centeno irá cortar com alguns dos métodos de Carlos Costa, na liderança da organização, e outros que… estão precisamente com medo de algumas dessas mudanças que aí podem vir.
Há, também, aqueles que dizem esperar para ver – alguns dos quais que ficaram pouco agradados com as ideias de reforma da supervisão financeira que Centeno-ministro quis implementar, que foram duramente criticadas pelo BCE e que acabaram por ficar na gaveta.
BCE arrasa propostas de Centeno para a reforma da supervisão financeira
Porém, mesmo entre os críticos mais acérrimos de Centeno, incluindo aqueles que não concordam com a passagem (quase) imediata de ministro das Finanças para o Banco de Portugal, parece reunir consenso a ideia transmitida por um deles: “irá fazê-lo à sua maneira”, é certo, “mas não tenho dúvidas de que Mário Centeno vai vestir a camisola do Banco de Portugal como poucos o fariam”.