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A Revolta dos Marinheiros de 8 de Setembro de 1936

Há 84 anos, grupos de opositores ao Estado Novo amutinaram-se em dois navios da Marinha Portuguesa. O que aconteceu e quem foram os protagonistas? Um ensaio histórico de José Luís Andrade.

Como afirma o historiador britânico Tom Gallagher, “o efeito de contágio que a guerra em Espanha poderia ter tido sobre Portugal ficou demonstrado a 9 de Setembro, quando eclodiram motins a bordo de dois dos maiores navios de guerra portugueses, o Dão e o Afonso de Albuquerque, atracados no estuário de o rio Tejo. Os amotinados pretendiam conduzir os navios até um porto espanhol e juntar-se aos republicanos [da Frente Popular]. No entanto, o governo fora alertado antes que os navios pudessem chegar a águas abertas. Os navios amotinados tiveram que navegar ao alcance dos canhões das fortificações que protegiam o interior da foz do rio. Salazar ordenou que os navios fossem destruídos, se necessário, para evitar o sucesso da rebelião. Sobre eles caiu um intenso bombardeamento e o Dão encalhou depois de perder o controlo.”

O relato de Gallagher reflecte a clássica abordagem à Revolta dos Marinheiros de 7-8 de Setembro de 1936 e a narrativa resume sucintamente o que de facto aconteceu. Contudo, na superficialidade da fast History que caracteriza os nossos tempos, nem sempre as narrativas dos episódios revolucionários dessa época nos chegam tão desprendidas de maculação ideológica. Bem pelo contrário; quem como eu consultar a Wikipédia sobre o tema (acedida a 11 de Agosto de 2020) pode ler coisas como estas: “Poucos sabem que Salazar evitou a rebelião matando ele próprio os comunistas”. Creio que os comentários são dispensáveis: nem a revolta foi evitada nem Salazar matou os amotinados. O melhor é mesmo ver o que se passou na realidade com a acção revolucionária dos comunistas. Tentando tirar partido da convulsão da Guerra Civil de Espanha (GCE), o Partido Comunista Português (PCP), por meio da sua organização clandestina na nossa Marinha de Guerra (ORA — Organização Revolucionária da Armada), esteve de facto na génese da revolta.

Talvez por estarem forçosamente encerrados num navio, sujeitos a uma disciplina rígida, os marinheiros sentem a distinção de classes de uma forma mais tangível do que outros militares. A propaganda revolucionária sempre se aproveitou desse facto, vendo nas Marinhas terreno fértil para testar as suas teorias de “luta de classes” e as subsequentes acções subversivas. Acresce que na Marinha portuguesa existia uma particular tradição revolucionária. No século XX, as organizações radicais da Armada estiveram presentes em quase todos os acontecimentos revolucionários mais significativos dos anos vinte e trinta. A sua participação na revolta republicana de 5 de Outubro de 1910 e no sangrento golpe de 14 de Maio de 1915, bem como em todas as explosões revolucionárias outubristas, foi bem significativa.

A proclamação da República, após a revolta de 5 de Outubro de 1910

A icónica rebelião épica de 1905 do couraçado Potyomkin (Потëмкин em russo, geralmente transliterado para Potemkin) estava, sem dúvida, na mente dos cabecilhas da Revolta, juntamente com a sedição ocorrida em dois navios franceses em 19 de Abril de 1919 no Mar Negro. Mais perto de nós no tempo (1933), o motim (comunista ao que tudo indicava) no navio de guerra holandês De Zeven Provinciën, nas águas da sua colónia indonésia, também alimentou seguramente o imaginário radical.

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Os velhos comités de marinheiros, ligados à Carbonária ou às facções anarco-sindicalistas, estavam agora a ser substituídos por células clandestinas pertencentes ao Partido Comunista Português (PCP), a secção local da Komintern. Para melhor cumprir os seus objetivos, o PCP tinha criado em 1932 a ORA, com alguma autonomia operacional, o que lhe permitia poder contar com elementos não formalmente filiados no Partido. Em Junho de 1934, a organização clandestina começara a publicar o jornal O Marinheiro Vermelho, como órgão das células clandestinas do Partido Comunista Português (secção portuguesa da Internacional Comunista) na Armada. Sob a orientação política de Alberto Araújo, o marinheiro Manuel Guedes liderou o cometimento. O jornal teve uma penetração significativa, gozando de alguma circulação entre marinheiros e suboficiais, com largas centenas de exemplares distribuídos. Como recorda o membro da ORA, José Barata, o último sobrevivente da Revolta, “não fora por acaso que o secretário-geral do PCP, Bento Gonçalves, tinha afirmado no VII Congresso da Komintern [em Moscovo] que 20% dos militantes do Partido eram marinheiros”.

As tensas condições políticas internacionais, com um cenário definido pela Grande Depressão e o surgimento de partidos anticomunistas musculados um pouco por toda a parte, incentivaram o apelo do labor revolucionário tanto para intelectuais como por militantes da classe trabalhadora. E a estratégia comunista traçada pelo VII Congresso da Komintern, realizado no verão de 1935, ao endossar oficialmente as “Frentes Populares contra o fascismo” deu-lhe um grande estímulo. A nova política preconizava que os partidos comunistas procurassem formar uma “plataforma política de Frente Popular com todos os partidos que se opunham ao fascismo”, não se restringindo a uma frente única com os partidos de cariz operário.

Sob o impulso da nova doutrina operacional, o número de membros da ORA foi aumentando gradualmente mas esse crescimento, sem a capacidade de enquadramento exigida, acabou por ter o efeito contraproducente de facilitar a infiltração da Polícia, que, por meio de uma razoável teia de informadores, manteve uma estreita vigilância sobre a organização. No final de 1935, Manuel Guedes e Oliver Branco Bártolo, membros da comissão operacional da ORA, foram detidos pela Polícia (PVDE), que prendeu igualmente cerca de trinta marinheiros suspeitos de envolvimento nas actividades subversivas da ORA. Foi um duro golpe e fez com que a ORA perdesse força organizacional, o que o PCP tentou superar estabelecendo uma nova direcção constituída por Fernando Vicente e João Faria Borda. Com a momentânea perda de gestão, a publicação d’O Marinheiro Vermelho foi interrompida, para retornar apenas em Janeiro de 1936.

Nos primórdios da GCE, o aviso de primeira-classe Afonso de Albuquerque fora enviado aos portos da costa sul e oriental da Península para recolher eventuais refugiados. A 25 de Agosto de 1936, às 17h10, o seu Comandante recebeu um radiograma cifrado (n.º 53), ordenando-lhe que “Logo chegar Douro Afonso de Albuquerque ir Valencia recolher refugiados e informações voltar Alicante receber refugiados tenha Douro regressar a Lisboa via Málaga onde recolhe refugiados e informações. Não demorar portos mais de 24 horas. GABINETEMAR”. Nestas condições, apenas alguns marinheiros tinham permissão para desembarcar, e mesmo assim sem tempo para grandes confraternizações com os camaradas locais.

A ideia era deixar o ancoradouro no Tejo e partir com os navios que se juntassem à Rebelião para o alto mar. Anunciaram que, caso as suas reivindicações não viessem a ser satisfeitas, pretendiam ir para os Açores para recolher deportados e presos políticos e, se tudo falhasse, ir para Espanha juntar-se às forças governamentais.

O inesperado embaraço de não poder contactar os seus correligionários espanhóis nos portos onde atracavam, criou um desassossego inusitado na célula comunista do Afonso de Albuquerque. No entanto, os poucos que foram autorizados a desembarcar, em Valência, Alicante ou Málaga, “bastaram para trazer o vírus da insubordinação a bordo”, como relata uma testemunha presencial, José Barata. Tirando partido do descontentamento generalizado da tripulação por não ter tido permissão para desembarcar, os membros da ORA, atraindo a conivência de alguns marinheiros mais excitados, protestaram veementemente a sua insatisfação. Além disso, amplificaram-na ao espalhar a notícia de que o procedimento que os afectara não havia sido usado nos outros navios que haviam ido recolher refugiados em portos dominados pelos rebeldes. A atitude de indisciplina e de desafio fez com que o Comandante notificasse o comportamento insolente por mensagem de rádio para Portugal. Como resultado, quando o navio chegou a Lisboa, 17 marinheiros, incluindo alguns membros da ORA, foram detidos e expulsos da Armada.

Poucos dias depois, um pequeno número de marinheiros, entre os quais alguns dos demitidos do Afonso de Albuquerque, alegadamente em protesto contra essa “injustiça”, decidiu levar a questão para níveis superiores de luta. Assim, procuraram organizar um motim nos navios onde tinham alguma influência ou cúmplices. Parece que o dia previsto para a Rebelião era 7 de Setembro e a meia-noite era a hora combinada para o arranque. Na data prevista, os revoltosos começaram a reunir-se apressadamente pelas 22 horas, para embarcar num rebocador do Arsenal com o intuito de entrar no Bartolomeu Dias, navio gémeo do Afonso de Albuquerque. O navio chegara recentemente da Madeira onde fora para ajudar as autoridades a subjugar uma revolta popular contra as novas regras da comercialização do leite. Uma vez a bordo do Bartolomeu Dias, elementos cúmplices da tripulação do navio juntaram-se ao grupo vindo de fora, informando os restantes membros da guarnição que se estava a levar a cabo uma acção revolucionária em protesto pela expulsão dos 17 marinheiros do Afonso de Albuquerque.

A ideia era deixar o ancoradouro no Tejo e partir com os navios que se juntassem à Rebelião para o alto mar. Anunciaram que, caso as suas reivindicações não viessem a ser satisfeitas, pretendiam ir para os Açores para recolher deportados e presos políticos e, se tudo falhasse, ir para Espanha juntar-se às forças governamentais. Tentaram atrair o oficial de serviço para a sua causa, ou pelo menos para não interferir, mas ele recusou, tendo sido preso de imediato. Para agilizar a operação, começaram a preparar o navio para partir. No entanto, ao constatarem que, supostamente, as “caldeiras” do Bartolomeu Dias tinham uma avaria, as coisas começaram a complicar-se. Os amotinados continuaram a tentar resolver a avaria do sistema de propulsão e, quando perceberam que não seriam capazes de solucionar o problema, optaram por abandonar o navio. Antes, decidiram sabotar a artilharia, levando consigo o armamento portátil para impedir qualquer retaliação por parte dos marinheiros que não tinham aderido à revolta. O inesperado entrave colocara em risco a rebelião e poderia tê-la condenado ao fracasso prematuro, quer pelo tempo gasto nos esforços para fazer os motores funcionar quer pela decisão retardativa de realizar a transferência dos amotinados para as outras embarcações onde a Rebelião estava a ocorrer.

Enquanto isso acontecia, outro incidente contribuía para o fracasso da revolta: o gasolina do Afonso de Albuquerque, que tinha sido enviado ao Cais do Sodré para ir buscar mais rebeldes, avariou-se no meio do rio Tejo e ficou parado por bastante tempo. Quando a lancha motorizada finalmente chegou ao Cais do Sodré, já não havia ninguém para transportar e juntar-se à revolta. Mas apesar das inesperadas dificuldades, os amotinados do Afonso de Albuquerque e do Dão decidiram forçar a saída.

O navio Afonso de Albuquerque

A bordo do Afonso de Albuquerque, o radiotelegrafista Raul Ferreira, com o auxílio do marinheiro Nunes Preto, enviou um radiograma alertando para o que se passava no navio de guerra. Foi recebido na escuta da Estação de Rádio de Monsanto por volta das 2h50, pelo operador Joaquim do Nascimento, mas como não conseguiu apreender o significado da mensagem, não fez nada. Só percebeu o que se passava quando os navios ficaram sob o fogo dos fortes. De qualquer modo, a actividade inusitada, a meio da noite, fora detectada da beira-rio. E a Polícia foi informada pela sua rede de informadores portuários.

Tendo sido avisado das suspeitas da Polícia sobre o que se passava no Tejo, o Ministro da Marinha, Manuel Ortins de Bettencourt, enviou o seu ajudante de campo (Tenente Henrique Tenreiro) para saber in loco o que é que estava a acontecer. Embarcado num rebocador, passou pelo contratorpedeiro Vouga, onde nada notou, e aproximou-se do Afonso de Albuquerque, onde detectou actividade suspeita a bordo. Ao abeirar-se do navio por bombordo, foi atingido por rajadas de tiro automático que feriram o patrão do rebocador; de imediato, voltou ao cais e deu o alarme. Esses atrasos e complicações impediram que os navios controlados pelos amotinados saíssem sob a proteção da noite, conforme planeado originalmente. E só conseguiram largar ferro de madrugada, o que os tornou em alvos fáceis para a artilharia dos fortes circundantes de Almada e Alto do Duque.

Apesar disso, às 7h40, os amotinados do Afonso de Albuquerque, um dos dois navios de guerra ainda controlados pelos rebeldes, esforçaram-se por tentar atingir a foz do rio. Sob instruções do ministro da Guerra, o próprio Oliveira Salazar que desde 11 de Maio acumulava o cargo com o de presidente do Ministério, entraram em funcionamento as baterias de artilharia do Forte de Almada, situado em posição proeminente sobre a parte mais estreita do estuário do Tejo. Segundo os jornais, os artilheiros tiveram especial cuidado com os primeiros tiros, que foram mais um aviso do que uma tentativa real de acertar no alvo, já que o navio estava ainda muito próximo do resto dos navios ancorados e no caminho do tráfego marítimo normal no rio àquela hora.

Os revoltosos tentaram escapar, evitando o bombardeamento, navegando lentamente e encostando-se à margem sul. Apesar de ter estado quase trinta minutos sob fogo de artilharia e ter sido atingido por alguns projécteis, o Afonso de Albuquerque conseguiu, no entanto, descer mais o rio, curvando subitamente em direcção à Torre de Belém. Porém, nessa altura, ficou sob alcance da artilharia do Forte do Alto do Duque, em posição dominante sobre a margem norte. Encurralados entre duas linhas de fogo, e com o navio já em mau estado, os amotinados foram forçados a render-se, içando a bandeira branca.

No último dos barcos rebeldes, o contratorpedeiro Dão, quatro amotinados audaciosos, estranhos ao navio, tinham entrado a bordo ao abrigo da noite. Arregimentando alguns cúmplices da tripulação, tinham conseguido assumir o controlo do navio, pois a esmagadora maioria da guarnição estava a dormir. O Dão começara também a navegar, engenhosamente envolto numa nuvem de fumo e névoa para se dissimular como alvo. Porém, à semelhança do que acontecera com o Afonso de Albuquerque, acabou por ficar entre dois fogos. Navegando muito perto da margem sul do rio para fugir aos canhões do Forte de Almada, foi, no entanto, atingido no convés e no paiol. Por volta das nove horas da manhã, face à desesperada situação em que se encontravam, os revoltados ergueram a bandeira branca, e o navio, gravemente danificado pelas granadas da artilharia dos fortes e de um submarino que se juntara à refrega, adornou para bombordo, encalhando um pouco à frente do Cais do Ginjal. O fogo das peças de artilharia governamental demorou a parar, e, perante a evidente irreversibilidade da situação, alguns marinheiros tentaram escapar saltando para a água ou arriando as baleeiras salva-vidas.

Foram emitidos mandados de prisão e guias de marcha para todos os marinheiros que estiveram ausentes das suas unidades durante a noite da revolta. As autoridades deram conta de apenas dois fugitivos, o marinheiro António Diniz Cabaço, que acabou por se entregar à Polícia, e o membro da ORA conhecido por Peru que conseguiu fugir para Espanha.

Na margem aguardavam-nos um destacamento do Forte de Almada e soldados da GNR. Como é da praxe neste tipo de situações, todas as pessoas (227), directa e indirectamente envolvidas na revolta, desde o grumete ao Comandante, do patrão do gasolina ao operador da estação de rádio, foram detidas e sujeitas a interrogatório por parte da Marinha e da PVDE.

O Decreto-lei nº 26 995, publicado a 11 de Setembro pelo Conselho de Ministros, autorizava “o Ministro da Marinha, sem dependência de qualquer formalidade, a dar baixa às praças e sargentos, e a demitir ou reformar os oficiais que directa ou indirectamente participaram ou são responsáveis pelos acontecimentos ocorridos na manhã de 8 de Setembro de 1936 a bordo do aviso Afonso de Albuquerque e do contratorpedeiro Dão. O disposto neste artigo não prejudica a aplicação das sanções criminais previstas na lei”. O Ministro “está autorizado a passar à reserva os oficiais que o requeiram, mesmo sem as condições exigidas por lei”. Além disso, “o Conselho de Ministros poderá readmitir, mediante requerimento fundamentado dos interessados, aqueles que, demitidos ou abatidos ao efectivo, provem ter cumprido o seu dever militar, resistindo à insubordinação e envidando todos os esforços para dominá-la”.

Foram emitidos mandados de prisão e guias de marcha para todos os marinheiros que estiveram ausentes das suas unidades durante a noite da revolta. As autoridades deram conta de apenas dois fugitivos, o marinheiro António Diniz Cabaço, que acabou por se entregar à Polícia, e o membro da ORA conhecido por Peru que conseguiu fugir para Espanha para se juntar às forças governamentais, acabando por morrer durante o conflito. Na revolta, pereceram 12 marinheiros e cerca de 20 ficaram feridos, em maior ou menor grau. Durante a investigação para determinar o nível de envolvimento e responsabilidades, a maioria deles será gradualmente libertada. Os julgamentos dos 91 considerados incrimináveis pela investigação policial realizaram-se nos dias 13 e 14 de Outubro; destes 91, serão declarados inocentes 43, libertados e posteriormente reintegrados a 13 de Novembro. Dos restantes, 34 serão enviados para o campo do Tarrafal, no vapor Loanda, com penas de 3, 16, 171/2 ou 20 anos de prisão.

Tentando manter a carruagem atrelada ao comboio da luta antisalazarista, a narrativa oficial do PCP sobre a Revolta dos Marinheiros de 1936 procura assimilá-la à corrente de violentas revoltas anti-Ditadura que foram ocorrendo desde Fevereiro de 1927. Mas a realidade é de alguma maneira diferente. A Revolta dos Marinheiros pouco teve que ver com as anteriores insurreições, intrinsecamente militares, embora tivessem sempre arrastado franjas das facções revolucionárias mais radicais. Nem a Revolta dos Marinheiros, nem a que ficou conhecida como Revolta da Marinha Grande, em 1934, estiveram directamente relacionadas com as forças democráticas que empreenderam as anteriores. Já para não falar da intentona do comandante Mendes Norton, em 10 de Setembro de 1935, que foi um autêntico albergue espanhol que tentou reunir todas as facções contrárias ao Estado Novo, desde os para-fascistas nacional-sindicalistas à extrema-esquerda comunista.

Alguns dos líderes dessas revoltas do Reviralho até haviam sido partidários do golpe militar de 28 de Maio de 1926. É fundamental estar ciente de que os grupos que levaram a cabo a insurreição militar de 28 de Maio de 1926 formavam uma mistura ideológica heterogénea. Depois do colapso da República Nova de Sidónio Paes, o que os unia era apenas a rejeição do sistema político que o regresso à República Velha havia permitido, dominado de novo pelas facções jacobinizantes do PRP. Para alguns deles, era necessária apenas uma pequena “correção” do caminho percorrido; para outros, era exactamente esse caminho que devia ser abandonado, pois era a verdadeira causa do infortúnio do país.

As tropas de Gomes da Costa no desfile de vitória de 28 de Maio de 1926

Após a vitória do movimento militar anti-Nova República Velha, as facções lutaram num processo de afinação turbulento que deixará para trás grupos, associações e personalidades. Serão os desapontados, os despeitados ou os que perderam a relevância política ou social que continuarão a conspirar contra a Ditadura, levando a erupções violentas de tentativas de retrocesso ao statu quo ante (conhecido como Reviralhismo). Acumulando malogro sobre malogro, perante a indiferença do povo e a firme resposta do Governo, a revolta fracassada de 26 de Agosto de 1931 foi o canto do cisne do Reviralhismo; com ela, o ciclo de tentativas de restauração do “democratismo republicano” ficará encerrado. Mas de forma quase imperceptível, à medida que o apoio dos oficiais do Exército e da Marinha se ia esvaindo (por desânimo, por medo ou pelo afastamento do exílio), as erupções revolucionárias tornar-se-ão cada vez mais dependentes das manobras tácticas dos chamados avançados.

A chamada Revolta da Marinha Grande, em 18 de Janeiro de 1934, foi de facto uma significativa alteração social a nível quase nacional produzida principalmente pela corrente revolucionária anarco-sindicalista. Forjado sobre um fragmento menor da realidade, o Soviete da Marinha Grande eclipsou mediaticamente a acção principal dos anarco-sindicalistas, que acabariam derrotados na luta pelo controlo da Alameda da Memória. Na Marinha Grande, a acção insurrecional, liderada pelos comunistas, não levou à mobilização de grandes massas e durou pouco mais de duas horas. No entanto, pela capciosa máquina de propaganda comunista, ficaria na história, como “o mito fundador da imagem revolucionária do proletariado português”, como afirma Pacheco Pereira.

Mas a Revolta dos Marinheiros é já outra coisa: foi uma expressão dimitroviana da acção revolucionária dos comunistas. A influência dos factores externos sobre os internos já é muito mais significativa, com a preponderância dos interesses internacionalistas a sobreporem-se às questões de âmbito estritamente nacional. O motim acontece num momento em que, após um forte impulso inicial das forças sublevadas, o governo espanhol consegue suster o seu avanço sobre a capital do país. De facto, em 19 de Agosto, a coluna do tenente-coronel Julio Mangada Rosenörn tinha derrotado as forças do major Lisardo Doval e interrompera a ameaça iminente sobre Madrid vinda dos lados de Ávila e Salamanca. Nas Astúrias, as forças frente-populistas locais tinham sido capazes de repelir os ataques rebeldes nas montanhas. Da mesma forma, não é despiciendo a coincidência da chegada de Vladimir Antonov-Ovseyenko (significativamente conhecido no meio revolucionário como Schtik [Baioneta]) a Barcelona em 25 de Agosto e do embaixador Marcel Rosenberg a Madrid, dois dias depois.

Os estrategas comunistas acreditavam ter uma excelente janela de oportunidade para, pelo menos, abalar os pilares do que se considerava ser a retaguarda dos insurrectos espanhóis, ou até mesmo levar a Península como um todo a um estágio superior da luta revolucionária. No pior dos casos, a Revolta dos Marinheiros foi um balão de ensaio tanto para as reais capacidades do PCP como para a resiliência do regime português. De qualquer forma, qualquer que fosse o desfecho da rebelião, Portugal apareceria sempre diminuído perante os participantes na reunião sobre a Não Intervenção na GCE agendada para 9 de Setembro, em Londres. No fim de contas, o sacrifício de peões era parte do padrão revolucionário para a tomada do poder e, como tal, negligenciável. Como lamentou um dos rebeldes envolvidos, “afinal, em vez de irmos para Espanha, acabámos por ir para o Tarrafal”, o campo-prisão improvisado construído pelo Governo na ilha de Santiago, em Cabo Verde.

Ainda hoje, o relato mais comum é que o protesto pretendia ser pacífico; no entanto, os relatórios e as declarações dos envolvidos apontam para uma realidade ligeiramente diferente. Com efeito, a primeira acção dos rebeldes foi apreender o armamento portátil do navio, para poder controlar os outros marinheiros, oficiais e sargentos que se recusassem a secundá-los, dando origem a várias agressões e ameaças de morte.

A insistência na versão de que tudo se devera à precipitação da iniciativa “feita sob a pressão de marinheiros militantes que só queriam ver reparada a injustiça feita aos 17 camaradas do Afonso de Albuquerque expulsos da Marinha”, marca a narrativa comunista da rebelião dos marinheiros. A responsabilidade histórica pelo insucesso recaiu sobre os ombros da equipa dirigente do PCP da época, liderada por Alberto Araújo, que “não soube controlar os impulsos aventureiros da ORA”. No entanto, como reconheceu Varela Gomes, “a reivindicação visível era a reintegração dos 17, mas pode pensar-se que por trás desta reivindicação havia uma vontade revolucionária mais definida e que havia entre os elementos mais conscientes da revolta alguma inspiração, por exemplo, da revolta que o André Marty tinha dirigido na esquadra francesa no Mar Negro. Isso, aliás, não teria nada de extraordinário. Em quase todas as revoltas existem objetivos estratégicos e reivindicações mais imediatas, que mobilizam sectores menos empenhados na transformação da sociedade ou do regime político.”

José Capinha Henriques, na sua tese A Revolta dos Marinheiros de 1936, “através de uma investigação aprofundada e da leitura atenta de vários documentos do Arquivo Central da Marinha”, procurou esclarecer algumas questões ocultas ou menos conhecidas sobre este episódio revolucionário. Da leitura aturada do Processo e dos depoimentos prestados à Polícia, compreendeu que as adversidades sofridas pelo plano revolucionário, como a inoperância da propulsão do Bartolomeu Dias ou dos sistemas eléctricos de disparo das peças, não teriam sido fruto do acaso, mas da resistência e sabotagem por parte de tripulantes leais ao governo. Capinha Henriques expõe o roteiro inicial, que consistia em esperar que os oficiais de serviço e os aspirantes se deitassem, para reunir então os marinheiros afins a amotinar-se. Tinham tudo previsto para a meia-noite mas os oficiais, ao demorarem-se a recolher aos aposentos, atrasaram a coisa.

Ainda hoje, o relato mais comum é que o protesto pretendia ser pacífico; no entanto, os relatórios e as declarações dos envolvidos apontam para uma realidade ligeiramente diferente. Com efeito, a primeira acção dos rebeldes foi apreender o armamento portátil do navio, para poder controlar os outros marinheiros, oficiais e sargentos que se recusassem a secundá-los, dando origem a várias agressões e ameaças de morte. Como aconteceu quando os marinheiros do Afonso de Albuquerque, incentivados pelo Sargento Vicente Rodrigues, tentaram enfrentar os amotinados; para poderem manter o controlo, os rebeldes contiveram-nos sob ameaça de fuzilamento, agredindo alguns à coronhada. Nos seus depoimentos, alguns dos amotinados indicaram que tinham solicitado a colaboração dos oficiais de serviço, dos aspirantes e de alguns sargentos. No entanto, a partir da maioria dos relatos extraídos dos interrogatórios, parece que os oficiais foram ameaçados e coagidos à mão armada. Houve igualmente notícia de que, no Dão, os canhões antiaéreos dispararam contra uma vedeta da Aviação Naval que transportava o tenente Joaquim Trindade dos Santos.

Bento António Gonçalves, o secretário-geral do PCP entre 1929 e 1942

No Bartolomeu Dias, a manha do sargento Lourenço Cardoso para convencer os amotinados de que o sistema de propulsão tinha uma avaria, foi determinante para atrasar consideravelmente a partida dos navios. Particularmente relevante foi a resistência do tenente Ferreira Diniz no Afonso de Albuquerque, aproveitando-se do facto de os rebeldes saberem que ele era o único oficial a bordo capaz de fazer o navio passar a barra. Astutamente, Ferreira Diniz foi protelando quanto pôde a intervenção exigida, simulando até uma síncope. Vários sargentos e praças, por iniciativa própria, foram sabotando os esforços dos amotinados. Além de alguns fogueiros, foram muito activos o marinheiro Nunes Preto, e o cabo-artilheiro Ramos Domingues, que incapacitaram os principais circuitos de controlo dos canhões.

De acordo com os depoimentos feitos à Polícia, a revolta a bordo do Dão foi mais vigorosa, mas também encontrou oposição mais significativa quando comparada com a dos outros dois navios envolvidos. Vários praças e sargentos referiram ter sido obrigados a agir sob ameaça de morte. Foram particularmente consistentes na indicação dos autores da coacção, nomeando sete pessoas, algumas mais conhecidas pelas suas alcunhas: no Dão, o Negus, o Al Capone e o Peniche; no Afonso de Albuquerque, o Casquinha e o José Neves Amado; no Bartolomeu Dias, o Peru e o Borda. A Polícia e a Marinha consideraram-nos os principais organizadores do motim.

Alguns acreditam que a Rebelião foi uma forma de salto em frente para uma organização que sentia estar a ser dilacerada pela Polícia e que a acção revolucionária teve que ser acelerada para evitar o agravamento da ofensiva. Na verdade, quer as confissões feitas pelos detidos quer a penetração da rede de informadores estavam a aumentar cada vez mais o conhecimento da Polícia sobre a ORA. Outros, para justificar o fiasco da tentativa revolucionária e ajustar as suas perplexidades à narrativa presentista do PCP, concluem que “a direcção então existente no PCP não teve visão suficiente (e audácia) para arriscar um apoio decidido à Revolta dos Marinheiros, enquadrando-a dentro da luta que em Espanha opunham as forças do progresso (da democracia e do socialismo) às forças da reacção mundial”.

De qualquer forma, de acordo com a historiadora britânica Glyn Stone, “embora o motim naval tenha sido facilmente suprimido e permanecido um incidente isolado, e de que nenhuma prova de que se tivesse tratado de uma conspiração comunista internacional houvesse surgido no posterior julgamento dos amotinados, o episódio reforçou a determinação oficial portuguesa de apoiar” os sublevados na GCE. Mais, pelo que pudemos apurar, foi uma oportunidade única de encobrir o fornecimento secreto para a Marinha do bando rebelde de um dispositivo que ajudou a mudar o curso da guerra. Mas isso é já assunto para outra narrativa…

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