Após uma sucessão de desaires partidários e fracassos eleitorais, a esquerda espanhola chegou ao governo. Desde então fala a duas vozes: a tensão entre o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e o partido populista radical Podemos aumenta a cada decisão do Executivo. Contudo, estão por ora reféns um do outro, sob pena de perder o poder. Esta dependência, assente no apoio de separatistas bascos e catalães, tem custos para o lado esquerdo do espectro partidário, mas sobretudo para o país.
Neste ensaio sobre a esquerda espanhola, o segundo de três sobre a vida política no país vizinho, analisa-se a descaracterização do PSOE e as transformações introduzidas pelo Podemos no movimento social de esquerda. Revisita-se o passado recente para perceber o que mudou e que consequências terá no futuro. Certo é que a esquerda espanhola já não é o que era. Lamentavelmente, Espanha talvez vá pelo mesmo caminho.
Assaltar o sistema
As políticas de austeridade nascidas da crise financeira de 2008 expuseram um cansaço latente nas classes médias que em pouco tempo se transformou em indignação. Nos países onde o controlo orçamental se impôs com maior força, a mobilização social dita orgânica, umas vezes mais espontânea do que outras, reivindicou mudanças no sistema económico, propondo algumas medidas concretas, mas veiculando sempre uma crítica geral à concentração da riqueza nuns poucos e à inexistência de mobilidade social. Em Wall Street ouviu-se “somos os 99%”, mensagem que tinha implícita a censura ao 1% que deterá a imensa maioria dos recursos. Em Portugal, o movimento dos indignados saiu às ruas para se fazer ouvir contra a austeridade exigida pela situação económica e financeira do país.
Em Espanha não foi diferente. O movimento 15M – assim chamado porque germinou a 15 de Março de 2011 – acampou em praças de várias cidades para reverberar o que se ouvia noutros Estados ocidentais. O fosso entre o salário médio e o custo de vida, a elevada carga fiscal, o desemprego, os despejos, a ineficiência dos serviços públicos, os oligopólios empresariais e a falta de oportunidades dominaram o debate nestes acampamentos em pleno espaço público, dos quais o mais célebre – porque mais numeroso e activo – se instalou na Praça do Sol, no centro de Madrid. A experiência comunitária de semanas a fio organizou-se em assembleias de cidadãos, uma espécie de protótipo de democracia directa que recolheu propostas para reparar o que diziam estar a funcionar mal.
Ao contrário do que sucedeu noutras capitais, em Madrid, a crítica ao sistema económico e às suas consequências sociais evoluiu rapidamente para um julgamento desregrado do sistema político. “Não nos representam!” foram as palavras dirigidas vezes sem conta aos titulares de cargos públicos e às instituições do Estado. Mais do que sinalizar as insuficiências e os alçapões do capitalismo, o 15M agitou a frustração – e a revolta – contra os mecanismos de representação democrática. A corrupção, o nepotismo, as portas giratórias entre público e privado, o sistema eleitoral e os políticos profissionais ocuparam os lugares cimeiros na lista de agravos, relegando as maleitas da austeridade para um plano assessório. Eram excrescências indissociáveis ao sistema.
As causas eram locais, mas boa parte da inspiração vinha de fora. Na Grécia, o Syriza oferecia um relato épico de redenção ousada. Já a promessa de primavera no Norte de África, para a qual a ocupação de praças públicas foi um elemento dominante no reportório de protesto, mostrava que era possível derrocar regimes autoritários enquistados no espaço e no tempo. Tudo sugeria que a presença contínua de reivindicações no espaço público tinha o potencial para mudar o mundo. Pelo menos, foi essa a lição aprendida pelos activistas mais empenhados.
Entre outros, os politólogos Pablo Iglesias, Iñigo Errejón e Juan Carlos Monedero, todos associados ao meio universitário e ao activismo da esquerda radical, participantes empenhados nos debates sobre o socialismo do século XXI promovidos na Venezuela e noutros regimes da América Latina, dispuseram-se a dar forma às reivindicações do 15M e, sobretudo, ao espírito daquele tempo. E assim nasceu o Podemos. Havia uma profunda contradição inicial, uma vez que as correntes mais combativas do 15M existiam em oposição aos partidos, razão pela qual o Podemos se fundou com as massas e para as massas, com uma organização horizontal, prometendo assaltar o sistema com o intuito de transformá-lo.
Discípula assumida de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe – também de Gramsci, Derrida, Saussure e dos ‘estudos críticos’ –, a elite académica do Podemos seguiu uma abordagem populista e radical, palavras aliás não enjeitadas. Dividiu a esfera pública em dois campos antagónicos: a gente normal, versão pós-moderna do velho povo; e a casta, minoritária, embora detentora da maioria dos recursos económicos e políticos. Ambos foram definidos de maneira transversal. Ou seja, aceitaram-se as reivindicações da gente normal sem discriminar em função da classe social e tratou-se a casta como uma massa coerente e homogénea, recusando qualquer distinção entre o PSOE e o centro-direita do Partido Popular (PP).
Para Iglesias, uma das premissas do novo partido estava no “reconhecimento da derrota da esquerda durante o século XX”, em parte por cumplicidade activa com o “neoliberalismo” que destruíra o Estado Social. Incapaz de detectar em si o eurocentrismo que tanto criticava, determinou que os “programas de austeridade acabaram com a ideia de Europa como modelo e reserva dos direitos sociais” para depois acentuar a clivagem abrupta nós versus eles: “Em boa parte dos países da europeriferia, a carga e as consequências da crise foram simplesmente transferidas dos bancos para os cidadãos”. No livro Una nueva transición, título nada inocente, identificou os responsáveis: “O nosso país, exemplo de êxito económico citado até há pouco tempo pelos defensores da moeda única e do Tratado de Lisboa, padece de uma situação social humilhante, resultado de um modelo de desenvolvimento fundamentado em bolhas imobiliárias e esquemas urbanísticos, administrados e promovidos pelas elites dos velhos partidos espanhóis, o Partido Popular e o Partido Socialista Operário Espanhol”. Logo, o mal estava no sistema político. Na “velha política”. Os termos da barricada eram claros.
Todo o catecismo partidário alimentava-se de impaciência transformadora e assentava na crença radical de um conflito irremediável entre povo e elites. Via nos consensos promovidos pela democracia liberal e representativa um rolo opressor de opiniões, géneros e etnias, de identidades, donde a solução passava por alcançar o estádio de democracia radical proposto por Laclau e Mouffe. O vento estava a favor: o agravamento das condições de vida, aliado à percepção de sintonia entre os partidos tradicionais a respeito da austeridade, abria uma brecha entre os cidadãos e os seus representantes que se impunha explorar. As divisas “¡A por ellos!” (literalmente, “atrás deles!”) e “El cielo no se toma por consenso; se toma por asalto” foram sintomáticos do fervor radical contra o sistema vigente.
Decorria desta visão uma hostilidade declarada às instituições do Estado de Direito democrático fundado pela Constituição de 1978. O cerco ao parlamento, os escraches – protestos nos quais os manifestantes se concentram junto à residência, local de trabalho ou espaço onde um titular de cargo público proferirá uma palestra com o propósito de o intimidar – e outras formas de acosso público mais não foram do que uma expressão nativa do quadro intelectual abraçado pelo partido.
Mas pressionar o sistema nas ruas era insuficiente. Impunha-se a sua deslegitimação. Regressaram então ao passado para argumentar que a democracia espanhola se resume a um rearranjo pedestre do regime franquista. Em síntese, um revisionismo histórico tosco e enviesado em busca de um pecado original que contaminasse todo o empreendimento democrático: se a democracia se deve a Franco, então não é plena, apenas um sucedâneo que permite a manutenção de práticas autoritárias. Trata-se de um argumento reaquecido, pois foi cavalo de batalha das esquerdas extraparlamentares na segunda metade da década de 1970 e princípios da década de 1980, nomeadamente de movimentos anticapitalistas e de braços partidários de organizações terroristas, como o Herri Batasuna. Agora, graças ao Podemos, o que antes era um argumento obtuso e marginal estava no centro do debate público. Central é também a ironia de ver Franco retirado da tumba para ser posto ao serviço da revolução.
Em livro já citado, Iglesias argumenta que a crise financeira gerou uma crise orgânica, que, segundo Gramsci, se define como “a perda de hegemonia das elites, que costuma manifestar-se na dificuldade das instituições dominadas por elas para manter e renovar a legitimidade de que disfrutam”. Por outras palavras:
“(…) o esgotamento do modelo político e social surgido do processo de transição para a democracia ocorrido depois da morte de Franco em 1975 e o paulatino desmantelamento parcial da ditadura durante os anos seguintes de consolidação democrática. Se a maior expressão social da crise orgânica foi o movimento 15M, a sua maior expressão política foi o Podemos. A denominada Transición [transição democrática] foi um processo político de transformação do franquismo em sistema demoliberal (…). Esse processo caracterizou-se por não afectar a posição das elites económicas espanholas e por favorecer a reciclagem das velhas elites franquistas, que continuaram em posições de poder tanto nos aparelhos do Estado como nas principais instituições, inclusive após a enorme vitória dos socialistas em 1982”.
No léxico do Podemos, a democracia responsável pelo maior período de paz, liberdade e desenvolvimento económico na história de Espanha era, na verdade, o “regime de 78”, expressão que tem implícita a acusação de perpetuidade do franquismo nas instituições. À semelhança dos nacionalismos, adulterou e politizou a história para extremar a sociedade nos planos emocional e ideológico e, dessa forma, usar o ressentimento para agigantar a distância entre gente normal e casta. Como bem resumiu Felipe González, podendo ser filho da transição democrática, o Podemos preferiu ser neto da Guerra Civil.
Esta instrumentalização do passado redundou em desvinculação nacional. O Podemos substituiu a palavra ‘Espanha’ pelo sintagma ‘Estado espanhol’, querendo argumentar que o país não existe enquanto tal. Será apenas um aparelho burocrático, um mero andaime administrativo que Franco quis converter em nação. A exaltação nacional levada a cabo pelo regime autoritário apresenta-se então como prova da artificialidade ilegítima de Espanha, raciocínio que permitiu ao Podemos a aproximação – e a tentativa de apropriação – das reclamações separatistas catalãs e bascas.
Sucede que, do ponto de vista histórico, esta argumentação excomunga a esquerda republicana da qual o Podemos se diz herdeiro. Para o republicanismo, Espanha foi sempre o sujeito político por excelência. Mesmo antes da II República, já era sinónimo de pluralismo popular e de progresso, enquanto ‘Estado espanhol’ foi a locução usada para denominar o centralismo conduzido por elites aristocráticas a partir da capital. Nos termos desta tradição política, o amor à pátria era um assunto da esquerda. Eis a derradeira ironia: Franco apropriou-se do patriotismo, referiu-se à esquerda como a anti-Espanha e décadas mais tarde, em plena democracia, o revisionismo histórico do Podemos comprou-lhe esse relato. Uma vitória póstuma de Franco, cortesia de Pablo Iglesias.
Primeiro em eleições europeias e, depois, em legislativas, a nova esquerda radical populista ajudou a enterrar o bipartidarismo espanhol. Talvez mais importante, rompeu a ideia de esfera pública como espaço de encontro, de debate destinado a consensos. O que antes era comunitário passou a explicar-se com identidades estanques em permanente confronto. Substituiu-se o conceito de cidadania pela ideia de colectivos exclusivos, excludentes e antagónicos.
O esvaziamento do PSOE
O impulso transformador do 15M foi um sério problema para o PSOE. Primeiro, havia uma esquerda mobilizada nas ruas que não se revia no socialismo tradicional. Segundo, o partido deu por si metido no saco fundo da casta, lado a lado com o PP e com os desmandos da banca, sem apelo nem agravo. Terceiro, e talvez mais problemático, as políticas de austeridade foram inauguradas pelo governo socialista de José Luis Rodríguez Zapatero, que antes negara a crise e dissera de todas as formas possíveis e imaginárias que Espanha não precisaria de medidas de contenção orçamental.
Este foi o contexto que Alfredo Pérez Rubalcaba encontrou quando substituiu Zapatero na secretaria-geral socialista. Rubalcaba fora tudo na política espanhola, menos Primeiro-Ministro: ministro da Educação e Ciência e, depois, da Presidência, com Felipe González; deputado e porta-voz da bancada do PSOE; ministro do Interior e Primeiro Vice-Presidente do governo Zapatero, no qual liderou o último processo negocial entre um Executivo e a organização terrorista ETA. Dono de uma inteligência e astúcia invulgares, que lhe valeram o epíteto Maquiavel de Madrid, figura entre as mentes políticas mais esclarecidas e brilhantes das últimas quatro décadas em Espanha – de tal forma que se tornou voz corrente à direita que o mal do PP era não ter um Rubalcaba.
O seu percurso, feito em estreitíssima ligação à história do socialismo democrático, certificava aptidões suficientes para gerir tempos adversos. Mas as bases do PSOE aceitaram o discurso anti-casta vindo das ruas. Sentiam-se embaraçadas ao ver o partido aplicar medidas de austeridade, problema que compensaram com zelo rebelde. Temiam o desaparecimento da sigla socialista, que com Rubalcaba obtivera o pior resultado em eleições legislativas até então.
O líder do PSOE entendia os protestos do 15M. Foi inabalável no apoio aos jovens que clamavam por futuro. Quando sectores importantes da sociedade pediam uma intervenção policial urgente para desocupar as praças e repor a ordem pública, afirmou sem hesitações que a última coisa que os manifestantes precisavam era um porrazo das forças de segurança. Contudo, não aceitou os termos da nova política de esquerda:
“O nosso inimigo não é o Partido Popular nem a direita. O Partido Popular é nosso adversário. Os nossos inimigos, os de ontem, os de hoje e os de sempre são o medo, a insegurança, a injustiça, a intolerância, a desigualdade (…). Temos de recuperar o prestígio do futuro, que o perdeu. Para os progressistas isso é tremendo. Temos de recuperar o prestigio do futuro. É muito importante. Partindo dos nossos princípios, temos de nos adaptar às mudanças. Porque há uma economia 2.0 e comunicação 2.0, mas não há liberdade 2.0 nem justiça 2.0 nem igualdade 2.0. [Sempre] a partir dos nossos princípios.
(…). [P]roponho-vos, proponho-me e proponho aos espanhóis trabalhar conjuntamente, de forma coordenada, a todos aqueles que queiram conciliar, dialogar e trabalhar em conjunto. (…) Convido a partilhar este projecto os muitos cidadãos espanhóis que acreditam que é melhor a conciliação, o pacto, do que o confronto. Aqueles que preferem o sim ao não, aqueles que pensam que, antes de actuar, há que ouvir, e que depois de actuar há que explicar.”
Mudar com princípios, com serenidade e através do debate e do consenso. Mudar dentro das normas democráticas. Mudar sem concepções utópicas de liberdade, justiça e igualdade. Visto de fora, parecia um homem entalado entre o passado e o presente. Mas apenas explicava que as reivindicações, por muito legítimas que fossem, não se podiam traduzir em radicalismos que minassem os pilares do sistema democrático. Antonio Caño, antigo director do El País e biógrafo de Rubalcaba, escreveu que as tensões no espaço público, cujo reflexo no interior do partido era cada vez mais candente, nunca afastaram o líder socialista das suas convicções e, por conseguinte, da colaboração com o PP em assuntos de Estado. Em reunião do PSOE citada por Caño, Rubalcaba vincou o seu lugar: “Não vou ajudar a incendiar o país.”
No fundo, defendia a Constituição de 1978, a primeira verdadeiramente espanhola, pois nela cabem todos, desde os nacionalismos periféricos até à mais liberal das mundivisões. Para Rubalcaba, a Constituição defendia-se por princípio democrático, mas também porque militar na esquerda social-democrata a isso obrigava. Contemporizar com o Podemos redundaria na normalização do ataque despudorado às instituições e na aceitação do PSOE como responsável pelos males estruturais do país. Ou seja, implicaria a extinção do legado socialista.
Entre muitos exemplos possíveis, a abdicação do Rei Juan Carlos talvez seja o caso mais evidente da lealdade de Rubalcaba às instituições. Decidido a abandonar a cúpula do PSOE, atrasou essa saída para garantir o apoio do partido à passagem de testemunho real, missão difícil face aos pedidos de sublevação que vinham das ruas, além da agitação separatista que despontava na Catalunha. Podia ceder à vontade das bases para ganhar popularidade e controlar o partido. Aliás, as eleições europeias de 25 de Maio de 2014 retratavam bem o processo de transformação em curso: pela primeira vez, PP e PSOE não alcançaram juntos os 50% da votação e o Podemos irrompeu na arena partidária com um milhão e duzentos mil votos. Porém, Rubalcaba entendeu que o país estava primeiro. Embora fosse um republicano convicto, via na coroa um garante da democracia, leitura que corresponde à realidade histórica da Transición e que é maioritária na geração socialista que ajudou a desfazer o edifício institucional do franquismo.
Era um homem de Estado, não de aparelho. E, naquela conjuntura, aos olhos das bases mais histriónicas, defender as instituições era uma forma de reaccionarismo. Perdeu o apoio dos militantes, viu-se ultrapassado por facções partidárias e formalizou a demissão. Aberta a luta pela sucessão, Eduardo Madina, continuador da social-democracia que se orgulha da transição democrática, teve pela frente um personagem anódino chamado Pedro Sánchez. O trajecto político exemplar de Madina, o facto de pertencer a uma nova geração e a sua reconhecida capacidade intelectual adivinhavam um caminho simples até ao cimo. O contraste com o anonimato de Sánchez era gritante.
No entanto, tal como Rubalcaba, Madina recusou discursos fáceis de sobrexcitação pueril. Por essa razão, perdeu para Sánchez. O novo secretário-geral socialista chegou ao poder sem um programa claro, sem ideologia, sem biografia e destituído de qualquer compromisso com a história do PSOE. Apenas anunciava vida nova em termos suficientemente dúbios para acomodar as exigências mais radicais, embora sem se comprometer com elas. Com este vazio distanciou-se do passado de pactos e consensos que fundaram a Espanha contemporânea. Estava disposto a ceder o que Rubalcaba se esforçara por preservar.
Manual de Resistência
A falta de convicções aplanou o caminho para ganhar o PSOE, mas não convenceu o país. Em Dezembro de 2015, os socialistas tiveram o pior resultado de sempre em legislativas. O desempenho de Rubalcaba nas eleições anteriores até não fora mau. Ainda assim, sem sinal de desconcerto, Sánchez fez um balanço positivo: “fizemos história”, acrescentando “o futuro é nosso” para o caso de alguém considerar que deveria apresentar a demissão.
Sánchez bloqueou a investidura de um governo minoritário do PP, o partido mais votado, ao mesmo tempo que celebrou um acordo com o partido de centro-liberal Ciudadanos para chegar ao Executivo. Tentara também um entendimento com Iglesias, que lhe respondeu que nunca apoiaria um governo onde estivessem liberais. Convencido que a nova esquerda radical não bloquearia a investidura do governo, pois isso deixaria o país num impasse, o PSOE apresentou-se ao congresso dos deputados apoiado pelo Ciudadanos. Revelou-se um excesso de confiança: o Podemos, cuja abstenção era essencial, uniu-se à casta de direita para votar contra a casta socialista-liberal. De facto, não havia qualquer intenção por parte da esquerda radical em tomar os céus por consenso. Foi a primeira vez que um candidato a presidente de governo não passou no parlamento. Um novo marco histórico do secretário-geral do PSOE.
Espanha viu-se obrigada a regressar às urnas. A 26 de Junho de 2016, Sánchez conseguiu o que parecia impossível, pois levou o partido a novos mínimos: à derrota sem precedentes retirou-lhe ainda cinco deputados e cerca de 156 mil votos. Mais uma vez, não havia sintomas de assombro: “O PSOE reafirmou-se como a força hegemónica da esquerda”, disse Sánchez, satisfeito por continuar à frente do Podemos. Enquanto isso, os populares reforçaram a vitória obtida em Dezembro, angariando mais 600 mil votos e mais 14 mandatos. A direita que implementava medidas de austeridade, leal ao directório Berlim-Bruxelas, e atolada em casos de corrupção, superava os socialistas sem dificuldades.
A hecatombe estendeu-se também a eleições autárquicas e autonómicas. Na Galiza, o PSOE perdeu 5 mandatos e no País Basco, região que chegara a governar, perdeu sete deputados e 40% dos votos. Em ambas as comunidades autónomas foi ultrapassado pelo Podemos. Pelo meio surgiam notícias pouco edificantes, como a criação de uma equipa na sede do PSOE para denegrir e atacar a oposição interna nas redes sociais. O velho socialismo, onde estava Felipe González e outros barões, constava da lista preferida de alvos. Era preciso esvaziar o passado.
A acumular derrotas inauditas, o secretário-geral do PSOE preparava-se para forçar as terceiras legislativas, levando ao limite a resistência das instituições e a paciência dos eleitores. Percebendo que uma aliança à esquerda talvez fosse a única forma de garantir a sua sobrevivência política, ensaiou uma aproximação tímida ao Podemos, à época apostado num referendo inconstitucional à independência da Catalunha. Pablo Iglesias, que dissera do PSOE o que Franco não disse da II República, via com interesse a união de forças, uma vez que os estudos de opinião sugeriam um sorpaso: havendo terceira ronda legislativa, os socialistas seriam ultrapassados pela esquerda e o Podemos assumiria o lugar de principal partido da oposição.
Foi a gota de água para o velho socialismo: González deu uma entrevista onde disse ter sido enganado pelo secretário-geral do PSOE. Em termos práticos, decretou a morte política de Pedro Sánchez, ratificada mais tarde num comité federal do partido marcado por uma tensão indecorosa feita de lágrimas, insultos, votações sem cadernos eleitorais e urnas de voto escondidas atrás de cortinas. Em democracia, nunca o PSOE estivera tão perto de uma ruptura mortal. Mais um marco histórico da lavra de Sánchez.
O agora ex-secretário-geral iniciou então a rodagem do seu Peugeot 407 pelas diversas federações socialistas locais, um périplo absurdo para boa parte da imprensa e da classe política. Deixara o PSOE em escombros, coleccionara todas as derrotas – até as mais inverosímeis – e acabara escorraçado por uma figura tutelar do partido. O regresso era impossível. Contudo, parece que na política ibérica a rodagem de viaturas está destinada a acabar em vitórias partidárias: a 21 de Maio de 2017, as bases elevaram Sánchez novamente ao cargo de secretário-geral. Os seus opositores internos eram vistos como institucionalistas apegados à cultura de consensos; pelo contrário, Sánchez insistia no ‘não’ rotundo ao PP e apostava na ‘via portuguesa’ – uma grande coligação de esquerda que emulasse a geringonça. Continuava sem convicções ideológicas e sem programa próprio, apenas prometia o bloqueio da direita e alianças que oferecessem poder à militância. Foi o suficiente.
Aproveitando os casos de corrupção que fustigavam o PP, a 25 de Maio de 2018 o PSOE apresentou uma moção de censura que reuniu apoios suficientes para acabar com o governo de Mariano Rajoy. Sobreveio desta iniciativa o utilitarismo que domina até hoje a acção política Sánchez, disposto a qualquer acordo que possibilite o êxito. As meias palavras, o dito por não dito, os entendimentos com partidos que horas antes eram inimigos pérfidos, os usos extensivos da adversativa revelaram-se vias eficazes de acesso ao poder.
Nesta etapa foi também evidente a imposição de um cordão sanitário ao centro-direita. Desde a sua chegada à direcção do partido, Sánchez, com o beneplácito activo do Podemos, instalou bloqueios e limites cujo resultado prático era a exclusão do PP do espaço governativo, independentemente das circunstâncias eleitorais. A práxis dos novos protagonistas da esquerda mostrou que os cordões sanitários não eram um instrumento de preservação da democracia, mas simples tácticas de obtenção de poder. Este facto e a proximidade ao Podemos deixaria o socialismo espanhol sem autoridade para pedir um cerco partidário ao VOX.
Porque as moções de censura em Espanha são construtivas, Pedro Sánchez iniciou funções de presidente de governo. Prometera celebrar eleições o antes possível, uma vez que, dizia, não queria que a sua legitimidade se ancorasse num instrumento parlamentar. Cedo se esqueceu do prometido. Até que chegou o momento de colocar a votação a proposta de orçamento de Estado, que acabou chumbada por muitos dos partidos que o apoiaram na censura a Rajoy. Tinha maioria para destruir, não para construir. Portanto, Espanha voltou a eleições legislativas. Sánchez não conseguia formar um governo estável, mas também não permitia que outros o tentassem.
Os equilíbrios de poder saídos da votação de 28 de Abril de 2019 mostravam duas soluções de governo: o PSOE podia aliar-se à esquerda, com o Podemos, ou ao centro-liberal do Ciudadanos. Ambas fracassaram. De um lado, a impaciência revolucionária de Iglesias exigiu pastas e influência muito superiores ao seu peso eleitoral. Reclamou a vice-presidência do governo e cinco ministérios, isto após ter reivindicado o controlo dos serviços de informações. A inflexibilidade socialista para discutir lugares, confortada por sondagens que mostravam o PSOE estável e o Podemos a esboroar-se, deu azo a um dos episódios mais divertidos – e reveladores – da esquerda radical espanhola: o Podemos clamou em público os bons ofícios do Rei Filipe VI para a formação de uma maioria de esquerda. O Iglesias republicano e revolucionário, que descrevia a monarquia como uma instituição ilegítima, corrupta, parte da casta, um mero sucedâneo do franquismo, suplicava agora ao rei que extravasasse as suas funções constitucionais. Este e outros gestos de desespero e soberba apenas fortaleceram a posição do PSOE.
Já o Ciudadanos deu por si numa cela de construção própria. A campanha decorrera num registo de intensa acrimónia contra Sánchez, motivada em grande medida pela contemporização socialista com o separatismo catalão. A arena política ficou condicionada por um ambiente de polarização emocional e política extrema, muito exacerbado pela intentona separatista de 2017 e pela forma como os partidos se posicionaram em relação a ela. Ninguém queria perder a face e Sánchez não queria perder o poder. O impasse lançou o país às quartas eleições legislativas em quatro anos – as segundas num espaço de seis meses.
O PSOE seguiu o itinerário da vitimização, queixando-se de um bloqueio anti-democrático – em tudo semelhante ao que impusera ao PP. Predispôs-se a alianças com todos sem nunca esclarecer os termos desses acordos. No entanto, em relação ao Podemos foi taxativo: o entendimento era impossível. A esquerda populista que aparecera com uma estrutura horizontal, equiparando o poder entre líderes para honrar o espírito do 15M, convertera-se numa organização hierárquica, unipessoal e cesarista, pois Iglesias purgou todos os camaradas que se lhe opuseram ou sugeriram desvios heterodoxos. A radicalização dos radicais fez com que Sánchez afirmasse que nem ele nem 95% dos espanhóis dormiriam tranquilos com Pablo Iglesias no Executivo.
Pior, o Podemos, que após a união com a Izquierda Unida (federação de esquerda que incluía o Partido Comunista de Espanha) assumiu a designação Unidas Podemos, insistia no referendo à independência catalã e descrevia os separatistas condenados como presos políticos. Por outras palavras, atacava a Constituição e deslegitimava o sistema de justiça. “Nem antes nem depois [das eleições] o partido socialista pactuará com o populismo. O objectivo do populismo está na Venezuela de Chávez, na pobreza, nas senhas de racionamento, na falta de democracia e, sobretudo, na desigualdade”, garantiu o secretário-geral do PSOE em vésperas da ida às urnas.
Mas, contados os votos das legislativas de Novembro de 2019, bastaram 48 horas para que Sánchez voltasse com a palavra atrás. PSOE e Podemos formalizaram uma coligação selada com um abraço público e emotivo entre respectivos líderes. Seis meses de bloqueio fundado em críticas ácidas, barreiras inflexíveis e divergências insanáveis resolveram-se em dois dias.
Tudo se explica com pânico e sentido de urgência causados por dois factos eleitorais. Primeiro, o evidente retrocesso da esquerda. O PSOE foi o mais votado, mas perdeu 3 deputados e 750 mil votos; o Podemos manteve-se a quarta força política nacional, apesar de ter perdido 7 mandatos. Feitas as contas, o conjunto da esquerda, que antes estava a 11 deputados da maioria absoluta, ficou a 18 de poder governar sem sobressaltos. Todos os estudos de opinião aventavam que uma nova ida às urnas agravaria esta tendência de recuo.
O segundo factor foi o crescimento do VOX. A direita radical mais do que duplicou a sua presença no congresso dos deputados, transformando 24 mandatos em 52. O separatismo catalão, que fora o tema central da campanha, catapultou o VOX para o lugar de terceiro partido nacional. À esquerda, a conclusão era óbvia: ou bem que se uniam, ou Sánchez acabaria mais uma vez escorraçado da liderança socialista, o Podemos desapareceria e a direita regressaria ao poder. Percebe-se a rapidez com que se entenderam.
Não era difícil adivinhar esta coligação. Desde que chegara à direcção socialista, Sánchez mostrara um pragmatismo a toda a prova. Além do mais, o guião da sua trajectória política estava escrito: logo em Janeiro de 2019, deu à estampa as suas memórias políticas – um acto peculiar, pois será o primeiro chefe de governo a publicá-las no início do mandato –, intitulando-as Manual de Resistência.
Governo Frankenstein
A coligação entre socialistas e Unidas Podemos era importante, mas insuficiente. Sem o apoio da maioria dos deputados no congresso, o governo viveria num estado de precariedade constante. A procura de uma solução à esquerda, a via preferida do Podemos e a mais fácil segundo a aritmética eleitoral, empurrava a coligação para negociações com separatistas bascos e catalães, o que suscitou de imediato preocupações em vários sectores da vida política espanhola, tanto à esquerda como à direita.
Pelo simples facto de serem independentistas, as linhas programáticas dos catalães da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) e dos bascos do Euskal Herria Bildu (E.H. Bildu) são contrárias aos princípios e instituições consagrados na Constituição. Além do mais, transportam com orgulho uma bagagem pesada. Os catalães ensaiaram um corte unilateral com Espanha em 2017, feito de violações deliberadas da Constituição, do estatuto de autonomia da Catalunha, de decisões judiciais, do regimento do parlamento catalão, tudo com recurso indevido a fundos públicos. E mantinham a postura de desafio aberto: continuaram a não acatar decisões de tribunais, prometiam independência em cada esquina, apelidavam o Estado de opressor e, através do controlo do governo regional, prosseguiram políticas públicas de isolamento de cidadãos não-nacionalistas na Catalunha.
O caso do E.H. Bildu é bem mais complexo, desde logo pela relação ambígua que mantém com a violência. Criado com as sobras da ETA, organização terrorista responsável por 850 homicídios, dos quais 95% foram cometidos em período democrático, o Bildu rejeita atentados no presente, mas revê-se nos que foram perpetrados no passado. Entende o legado etarra como um activo político que deve ser aproveitado. De tal forma que recusa a colaborar com a Justiça no esclarecimento dos mais de 300 homicídios ainda sem autores materiais e morais identificados.
Embora insista que a ETA já não existe, conserva nas suas fileiras militantes que integraram a organização terrorista, alguns responsáveis por crimes de sangue pelos quais nunca mostraram arrependimento. Mais grave é o apoio dado às cerimónias de boas-vindas a etarras recém-saídos da prisão, liturgias nacionalistas comemoradas em ambiente festivo por dezenas de pessoas nas ruas e praças do País Basco, à vista de todos, onde os ex-presidiários – especialmente os condenados por múltiplos homicídios – são recebidos como “heróis da pátria”, “guerreiros”, “presos políticos” e “mártires”. Ao glorificar os verdugos, o Bildu menoriza os crimes, humilha as vítimas e mina valores essenciais do Estado de Direito democrático.
Pedro Sánchez tinha consciência da gravidade inerente a acordos com estes partidos. Sabia que cruzaria todas as linhas vermelhas. Tanto assim é que não perdeu uma oportunidade para afirmar que, com ele, não haveria entendimentos. Em 2015, durante a primeira etapa como secretário-geral, disse ao jornalista da televisão navarra que o entrevistava: “Com o Bildu não pactaremos”; “Se quiseres, digo-o cinco ou 20 vezes: com o Bildu não pactaremos”. No ano seguinte, já no parlamento, para que ficasse em acta, insistiu na linha vermelha em relação aos herdeiros da ETA. E, em 2019, voltou a repetir que “com o Bildu não se pacta nada”. A postura face à ERC era decalcada da anterior: não se chega a acordo com quem pretende acabar com Espanha. Sánchez parecia transmitir uma posição de princípio, mas estava certamente a tranquilizar os socialistas assustados com um governo dependente de separatismos – muitos têm bem presente na memória as dezenas de filiados e simpatizantes do PSOE assassinados ou mutilados pela organização terrorista basca.
Não obstante as palavras perentórias de Sánchez, Rubalcaba intuiu que de pouco valiam. Logo em 2016, nos cursos de Verão da Universidade Complutense de Madrid, marcou limites:
“Pablo Iglesias não pode continuar a brincar com as pessoas e dizer que há a possibilidade de um governo de esquerda, quando isso não é verdade. O que ele propõe não é um governo de esquerda porque (…) a Esquerra [catalã] é independentista. Isso não oferece uma maioria, seria uma investidura [de um governo] Frankenstein. Ele tem um partido diverso, com independentistas, anticapitalistas e ecosocialistas; a ele pode ser que não choque ter uma investidura com independentistas, mas o PSOE não pode fazê-lo”.
Em suma, o PSOE não podia estar ao lado daqueles que desejam acabar com a democracia e com Espanha. Rubalcaba voltou a esta mensagem nos anos seguintes, acompanhado por Felipe González e por outras personalidades destacadas do socialismo clássico. Estava cunhado o termo “governo Frankestein”, que entrou no léxico quotidiano. Salvaguardadas as devidas distâncias, que são muitas, é curioso notar que em Espanha o termo pejorativo que caracteriza a frente de esquerda nasceu na própria esquerda, enquanto em Portugal a palavra geringonça foi da autoria de Vasco Pulido Valente, depois popularizada por Paulo Portas. Dito de outra forma, importantes sectores da esquerda espanhola não abdicaram do espírito crítico, mantendo a defesa das instituições e dos valores democráticos acima de qualquer possibilidade de poder.
Nada que assustasse Pedro Sánchez. A coligação PSOE-Unidas Podemos foi investida em 2020 com a imprescindível abstenção dos separatistas catalães e bascos. Os círculos afins ao presidente de governo teorizaram sobre os benefícios de aproximar estas forças nacionalistas do poder, antevendo moderação no horizonte, mas os que deveriam agradecer o acolhimento dissiparam as dúvidas: na sua primeira intervenção no hemiciclo, uma deputada da ERC afirmou que “a governabilidade de Espanha não me interessa nada” para a seguir acusar o PSOE de ser um “verdugo da repressão” na Catalunha; já os bascos do Bildu fizeram saber que o seu apoio existe na justa media em que contribua para debilitar Espanha e alcançar a consequente independência do País Basco.
Nenhuma destas declarações – nem outras de igual teor – afectaram a relação com o governo. Pelo contrário: Pablo Iglesias ascendeu os separatistas ao patamar de “direcção de Estado” e Sánchez tem-se desdobrado em concessões. A lista de cedências é copiosa, mas vale a pena destacar os indultos concedidos aos separatistas catalães –que Sánchez jurou à saciedade nunca aprovar – e o respaldo dado pelo PSOE ao Bildu sempre que se tenta ilegalizar as cerimónias de boas-vindas a etarras saídos da prisão. Em resposta aos incentivos que tem recebido, o Bildu nomeou recentemente para a sua direcção David Pla, um dos últimos comandantes da ETA.
A lista de engulhos causados ao governo é igualmente longa. Nem é preciso olhar para os separatismos, pois o Podemos tudo faz para que o governo fale a duas vozes. Talvez o caso mais evidente se encontre em declarações de Iglesias, que no papel de vice-presidente assegurou não haver uma situação plena de normalidade política e democrática em Espanha, deixando entrever que os independentistas condenados em tribunal serão, na realidade, presos políticos. Portanto, por obstinação ideológica exercida ao arrepio de qualquer facto atendível, chegou-se a um ponto no qual os governantes põem em causa a existência de democracia no país que governam. Outros casos houve. O mais recente fez-se com a oposição do Podemos ao envio de armamento e equipamento para a defesa da Ucrânia, entrave que não foi bem-sucedido, mas que abriu mais tensões no seio do governo e na sociedade espanhola.
Ao trazer estes partidos para a esfera do poder, Sánchez validou forças políticas que comprometem os pilares do Estado de Direito e a salubridade da comunidade política. Como notou um deputado navarro, o presidente de governo jurou lealdade à Constituição e ao Rei apoiado por partidos que trabalham para acabar com ambos. Depende de apoios cuja razão de ser passa por dinamitar as normas, os procedimentos e as instituições que ele, como chefe do Executivo, está obrigado a defender. Numa frase, esvaziou a identidade do socialismo espanhol.
Ouvir a esquerda
Ao ser inédita, a coligação PSOE-UP respaldada por ERC e Bildu suscitou milhares de páginas de análise e comentário nos jornais e vários ensaios publicados sob a forma de livro. De todas as fontes possíveis, as mais interessantes estão à esquerda.
A 19 de Julho de 2019, o jornal El Mundo publicou uma carta aberta intitulada Desde la Izquierda na qual personalidades da esquerda espanhola advertiam para os riscos inerentes aos acordos que Pedro Sánchez se preparava para firmar. Numa defesa serena da esquerda democrática e do quadro institucional que ela ajudou a criar nas décadas de 1970 e 1980, Fernando Savater (filósofo), Fernando Aramburo (escritor), María Elvira Roca Barea (escritora), Eduardo ‘Teo’ Uriarte (histórico membro da ETA, que abandonou a organização durante o período da transição democrática), Ignacio Latierro (livreiro basco e antigo militante comunista), entre outros, começavam por notar que a Constituição é a casa comum que ampara as liberdades cidadãs, chamando a atenção de que em Espanha, como no resto da Europa, os populismos levavam a cabo políticas de divisão que minam a livre convivência e a igualdade.
Continuava o texto lembrando que a pretensão de alcançar acordos “de forma activa ou passiva, com os populismos e os nacionalismos identitários e separatistas (…) contribuirá sem dúvida para debilitar os nossos valores democráticos consagrados na Constituição de 1978”. Como tal, “[n]ão se podem pretender tais alianças, que contaminam a identidade da própria esquerda, [e] conduzem inevitavelmente ao deteriorar da vida pública e trazem mais divisão entre cidadãos”.
Para os signatários, a Constituição, uma “formidável aventura colectiva de paz e liberdade”, garantiu um período de convivência e desenvolvimento sem precedentes, sendo condição necessária à existência de direitos políticos cuja viabilidade ficaria comprometida a verificarem-se – como se verificaram – os acordos de poder gizados pelo PSOE.
Muito mais importante, apresentam o quadro político-institucional de Espanha como sendo património da esquerda. Ao serem oriundos de escolas políticas diferentes, quase todos com um passado de oposição ao regime de Franco, os autores dão à carta uma validade singular. Reivindicam a esquerda como espaço plural e essencialmente democrático, razão pela qual o radicalismo populista do Podemos e os sectarismos étnicos bascos e catalães constituem a negação do campo político ao qual dizem pertencer.
Sobrevêm do texto Desde la Izquierda dois alertas urgentes. Primeiro, a iminente degeneração da esquerda. Segundo, que a vida política deixaria a breve trecho de opôr esquerda e direita, pois os partidos que Sánchez aproximaria do poder reconfigurariam a arena partidária em luta entre democratas e não-democratas. Infere-se uma conclusão: a esquerda vinculada ao Estado de Direito não pode garantir o poder a qualquer preço.
Ignacio Varela é outra fonte de esquerda com autoridade invulgar. Analista político e consultor profissional de campanhas eleitorais, filiou-se no PSOE em 1977 após uma militância fugaz no Partido Comunista. Em governos ou como consultor externo, trabalhou com Felipe González, Joaquín Almunia, José Luis Rodríguez Zapatero e Alfredo Pérez Rubalcaba. Isto é, com todos os secretários-gerais do PSOE desde que há democracia em Espanha. Todos, menos Pedro Sánchez. Em entrevista recente ao jornal digital The Objective traçou as linhas gerais do sanchismo:
“(…) julgo que o que Pedro Sánchez fez com o partido socialista é uma operação de taxidermia política: pegou no animal, abriu-o, esvaziou-o, encheu-o de papel de jornal e cozeu-o. Parece o mesmo animal, mas não é. Alterou a sua substância. Mas o que me preocupa mais no sanchismo não são os seus efeitos sobre o partido, mas um estilo de governo que, primeiro, subordina qualquer critério a um projecto de poder pessoal e, segundo, mostra um desprezo absoluto pelos fundamentos institucionais de um Estado de Direito. É a ruptura dos códigos sobre os quais se sustenta o Estado de Direito”.
Varela destaca um ponto sobre o novo PSOE que é mal compreendido dentro e fora de fronteiras: o partido não se radicalizou. Simplesmente não tem ideologia nem doutrina nem valores. O legado do PSOE espartilhava a ambição de Sánchez e, por isso, destituiu o partido de identidade, o que o deixa livre para celebrar as alianças necessárias, mesmo que atentem contra o quadro democrático que os socialistas ajudaram a fundar. O estado de perpétuo esvaziamento oferece grande amplitude de acção, em particular num contexto de elevada fragmentação partidária. Quando nada se defende, tudo é aceitável.
Sendo certo que a direcção do PSOE não se radicalizou, dificilmente se poderá dizer o mesmo da esquerda enquanto movimento social. Nascido na Catalunha, onde lecciona na Universidade de Barcelona, Félix Ovejero identificou na genealogia da nova esquerda espanhola e, por extensão, da europeia, uma evolução desde o primado da razão iluminista para o império do tudo para todos. Os factos e a argumentação lógica, antes fundamentais para delimitar o espaço público, submetem-se agora a superstições populares manifestadas sob a forma de credos identitários, sejam eles nacionalistas, de género ou outros. A cidadania e a igualdade, resultado de séculos de progresso, dependem hoje da validade atribuída a emoções, nomeadamente do que possa ofender cada um dos membros da comunidade política.
Uma das maiores referências intelectuais da esquerda no país vizinho, Ovejero delata a aceitação de teses identitárias que levam à segregação das sociedades em tribos, um esquema incompatível com o primado da emancipação dos povos que orientou a esquerda socialista democrática. Sem se dedicar em específico ao Podemos e aos separatismos, disseca com acerto as causas e consequências da entrada destas forças na esfera do poder. Quando não há limites, escreve, a política transforma-se na expressão pura de desejos isentos do mais elementar princípio de realidade. E de verdade. Portanto, um novo obscurantismo disfarçado de progressismo, remata Ovejero no livro La deriva reacionária de la izquierda.
Os efeitos reais da transformação da esquerda espanhola apenas serão visíveis uma vez terminado o percurso deste novo arranjo de poder. Mas não será abusivo antever que as instituições do Estado sairão mais frágeis, a ideia de comunidade política mais esbatida e a capacidade para acordos de interesse nacional mais difícil. Isto acontecerá por acção directa do governo e dos partidos que o apoiam, mas também pelos precedentes que abre à direita. Fica por saber se o vazio do PSOE esvaziará os radicalismos ou se serão estes a ocupar o espaço doutrinário que Pedro Sánchez fez questão de vagar.