Comecemos com uma amostra de diálogo (chamemos-lhe “amostra A”):
“Então… nós vamos almoçar. [Pausa] Alan?”
“Sim?”
“Nós vamos almoçar. [Pausa] Alan?”
“Sim?”
“Consegues ouvir-me?”
“Consigo.”
“Eu disse que nós vamos… isto começa a ficar repetitivo.”
“Isto o quê?”
“Perguntei se querias vir almoçar connosco.”
“Não, não perguntaste. Disseste-me que vocês iam almoçar.”
“Ofendi-te de alguma maneira?”
“Porque é que havias de pensar uma coisa dessas?”
“Gostarias de vir almoçar connosco?”
“A que horas é a hora de almoço?”
“Por amor de Deus, Alan, é só uma sanduíche!”
“O que é que é uma sanduíche?”
“O almoço.”
“Não gosto de sanduíches.”
Embora a dinâmica possa ser familiar a qualquer pessoa que já tenha mantido uma conversa online com um chatbot, este empolgante colóquio surge ao minuto dezassete do filme “O Jogo da Imitação”. Nos dezasseis minutos anteriores, o espectador viu Alan Turing a mostrar-se distraído, inoportuno, mal educado e – por duas vezes – incapaz de compreender uma piada. Na altura em que chega, a metamorfose de um simples convite para almoçar num segmento da Rua Sésamo parece concebida apenas para confirmar uma suspeita: este Alan Turing, criador do Teste de Turing, teria pouquíssimas probabilidades de passar o Teste de Turing.
Fazendo justiça ao argumentista Graham Moore, há evidências suficientes para acreditar que se tratou de uma decisão deliberada e tematicamente justificada; o filme é estruturado como uma sequência de flashbacks durante um interrogatório policial que o próprio interrogado transforma numa versão do Teste de Turing. Mas também há material prévio suficiente para concluir que a fidelidade é menos a necessidades dramáticas (e muito menos à biografia de Turing) do que à gramática específica que o cinema foi desenvolvendo para representar pessoas muito inteligentes.
A tarefa, concede-se, não é fácil; há actividades que simplesmente não se prestam a traduções dramáticas. Martin Amis disse um dia que um biopic literário plausível consistiria num plano-sequência de um homem sentado à secretária durante oito horas – com pausas ocasionais para beber café, esticar os braços, coçar a cabeça e olhar pela janela com uma expressão pensativa. O que uma pessoa muito inteligente faz é pensar de maneira muito inteligente, e não há realizador no mundo capaz de transformar isso numa cena que alguém queira ver.
A solução encontrada acabou por ser uma importação da literatura (ou da para-literatura). Autores como George Eliot, Musil ou, mais recentemente, Foster Wallace e Norman Rush souberam criar personagens plausivelmente brilhantes – em parte porque as mesmas canalizavam o seu próprio brilhantismo. Mas foi Arthur Conan Doyle quem forneceu uma dupla fórmula, simultaneamente apelativa e reutilizável, para representar inteligência na página, e no ecrã. Sherlock Holmes parece um génio não porque o autor era um génio, mas porque as suas proezas são documentadas por um companheiro meramente humano que, tal como o leitor, não tem acesso aos processos internos da mente brilhante do detective, mas apenas aos resultados práticos da sua aplicação. Junte-se a esta receita um repertório de tiques idiossincráticos e um défice de empatia maquilhado de arrogância mecânica, e obtém-se o que podemos chamar o modelo “Rain Man” de dramatização do génio.
Aplicado com brio em “O Jogo da Imitação” (mas também em filmes como “Uma Mente Brilhante”, “A Prova” e “Good Will Hunting”), o modelo postula implicitamente que uma capacidade intelectual estratosférica é tão indissociável de um distúrbio de personalidade que as duas condições parecem directamente responsáveis uma pela outra. Uma pessoa que consegue memorizar sequências inteiras de baralhos de cartas ou elaborar o Teorema de Equilíbrio Cooperativo ao pequeno-almoço é consequentemente incapaz de assimilar um “bom dia”, atar os próprios sapatos, ou pedir um copo de água sem insultar terceiros.
O método tem a elegante simplicidade de uma equação; x = y, em que x “inventa o computador” e y “exibe todo o charme de uma calculadora”. Ser um génio significa nunca fingir que se gosta de sanduíches. Os processos internos de uma inteligência superior podem ser incompreensíveis, mesmo quando solucionam problemas que nos afligem. Mas um tipo esquisito, enfim, seja no ecrã de cinema ou na paragem de autocarro, qualquer pessoa é capaz de identificar um tipo esquisito: é o tipo que ali anda, a fazer coisas esquisitas. E são assim os modernos sucedâneos de Sherlock Holmes, desde o Dr. House a figuras históricas: tipos esquisitos, que fazem coisas esquisitas, mas são muito bons a resolver problemas esquisitos de forma esquisita. Um pouco mais que humanos – e um bocadinho piores no jogo da imitação.
Poucos argumentistas contemporâneos fizeram deste tema uma especialização pessoal tão bem sucedida como Aaron Sorkin. A estreia recente do filme sobre Steve Jobs – três anos depois de um filme sobre Mark Zuckerberg – parecer indicar uma curiosa sub-especialização em retratos do reduzido panteão de visionários que ajudaram a construir a realidade que todos habitamos. As suas obras puramente fictícias, no entanto, fogem um pouco ao padrão: em vez de génios insuportáveis, descemos ao patamar imediatamente inferior, povoado por pessoas que são apenas muito, muito espertas. Independentemente de questões de orientação política, ou de realismo vs. fantasia, se há um elogio quase consensual às quatro primeiras temporadas de “West Wing” (“Os Homens do Presidente”) é que a série era um impressionante repositório de pessoas inteligentes constantemente envolvidas em diálogos inteligentes.
O visionamento repetido desses episódios antigos pode hoje induzir algum cepticismo retroactivo – um cepticismo que, paradoxalmente, torna o feito de Sorkin, alcançado apenas ao nível da superfície verbal, ainda mais notável. A verdade é que a inteligência, na Casa Branca de Bartlet, é mais vezes mencionada do que exibida. As personagens passam uma quantidade indesculpável de tempo a recapitular em voz alta os seus currículos académicos ou a elogiar as faculdades intelectuais uns dos outros (“sempre foste a pessoa mais inteligente em qualquer sítio onde entraste”, “tens uma daquelas mentes que só aparece uma vez em cada geração”, etc.). À excepção do Presidente, que tem o seu repertório sherlockiano autónomo (em vez de cocaína e violino, um tabuleiro de xadrez e a capacidade de ralhar com Deus em latim) a inteligência das personagens é quase sempre representada como uma facilidade natural em reter e repetir factos triviais e estatísticas obscuras. A grande inovação técnica de “West Wing” terá sido a cooptação do diálogo screwball dos filmes de Hawks, Cukor ou Preston Sturges para fins não apenas cómicos, mas também dramáticos e expositivos – pelo que um diálogo típico consiste numa salada de acrónimos, estatísticas e abstrusas regras processuais, temperada com piadas, e regurgitada à velocidade da luz.
O efeito é intoxicante: é como ver Carole Lombard e Doris Day a discutirem os últimos indicadores da OCDE. Mas, já com o ecrã desligado, e os níveis de adrenalina repostos, uma pessoa percebe que nada de muito inteligente foi dito – embora uma quantidade impressionante de coisas simultaneamente correctas e engraçadas tenham sido ditas muito depressa. Numa entrevista de 2012, Sorkin ensaiou uma explicação do seu método que vale a pena transcrever na íntegra: “Escrevo sobre pessoas mais inteligentes que eu, e que sabem muito mais do que eu, e consigo fazê-lo através da simples aprendizagem fonética. Estou habituado. Cresci rodeado de pessoas mais inteligentes do que eu, e gosto do som da inteligência. Consigo imitar esse som, mas não é orgânico. Não é inteligência. É uma capacidade fonética para reproduzir o som da inteligência.”
Ao colocar o problema nestes termos — “imitação” e “reprodução” — Sorkin elucida algumas questões fundamentais sobre mimese e técnicas de composição – ao mesmo tempo que alude, ainda que inadvertidamente, a essa versão artística do Teste de Turing que é a criação de personagens fictícias.
O desafio técnico de representar ficcionalmente aquilo que entendemos definir como inteligência (flexibilidade cognitiva, facilidade de abstracção, capacidade para interpretar mensagens ambíguas e/ou contraditórias, e para encontrar ligações entre elementos aparentemente desconexos) não é muito diferente do desafio tecnológico de criar uma inteligência artificial.
Em Julho de 2014, vários órgãos de comunicação repetiram a notícia de que, num evento realizado na Universidade de Reading, um computador batera pela primeira vez o Teste de Turing. O programa, criado por um engenheiro de software ucraniano, apresentou-se a concurso com o pitoresco nome de Eugene Goostman e, num rodízio de conversas de cinco minutos, cumpriu supostamente o critério articulado por Turing, convencendo um terço dos juízes de que estavam a dialogar com um ser humano.
O truque – e pode legitimamente falar-se em truque – consistiu em fazer o programa passar-se por um jovem ucraniano de 13 anos, estabelecendo assim à partida as atenuantes da idade e do domínio da língua (o teste foi efectuado em inglês). Lendo algumas transcrições das conversas com os juízes, o que salta à vista é a eficácia com que o programa se desdobra em erros ortográficos e sintácticos, non sequiturs, piadas pífias e tiradas pueris.
A proeza de “Eugene Goostman” não representou qualquer avanço no campo da inteligência artificial, mas sim um avanço na inteligência dos programadores, que redefiniram os termos do jogo da imitação para fins práticos. Preparados para encontrar adultos inteligentes ou máquinas a fingir que eram adultos inteligentes, os juízes encontraram uma criança estúpida – e baixaram a guarda. A epifania do programador ucraniano não é muito difícil de calcular: o efeito desejável não era o de pôr uma máquina a raciocinar, mas sim o de transformar o juiz num espectador e criar condições para uma temporária suspensão da descrença.
Consideremos uma nova amostra de diálogo (chamemos-lhe “amostra B”):
“Vou agora almoçar.”
“Vais comer o quê?”
“Uma sanduíche.”
“Gosto de sanduíches. Que tipo de sanduíche vais comer?”
“Ainda não decidi.”
“E és tu quem vai tomar essa decisão?”
“Quem é que havia de ser?”
“Não serei eu, de certeza.”
“Segundo um filme recente, o Alan Turing não gostava de sanduíches.”
“Foi ele quem inventou o teste de Turing.”
“Aposto que tu falhas o teste de Turing todos os dias.”
“Tenho uma t-shirt a dizer isso.”
Em termos formais e até qualitativos, não é fácil encontrar grandes diferenças entre as amostras A e B, quando amputadas do contexto. A deixa sobre a t-shirt não é má; será mais cómica do que qualquer das frases de Turing na amostra A, embora menos fiel a uma personalidade dramática – porque não existe personalidade dramática à qual ser fiel. A amostra B é retirada de um diálogo de sete minutos (que rapidamente descambou para o absurdo) mantido entre o autor do presente texto e uma aplicação online conhecida como Cleverbot.
O programa não é muito sofisticado, mas na altura em que surgiu apresentou uma inovação intrigante: em vez de recorrer apenas a uma base de respostas pré-programadas pelos seus criadores, o bot vai acumulando vocabulário, expressões e tiques retóricos em cada nova interacção com o público em geral, gerando um efeito de auto-correcção semelhante ao do algoritmo do Google. O que é, provavelmente, o equivalente mais próximo a “imitar o som da inteligência”.
Releia-se a frase sobre a t-shirt: concisa, fluindo com naturalidade da conversa mas, ao mesmo tempo, suficientemente inesperada para surpreender. O tipo de deixa que poderia rematar um diálogo de Sorkin, porventura num dia menos inspirado. Não traduz o rápido cintilar de sinapses responsável por esse raro atributo não-mecânico que designamos como timing cómico, mas apenas uma inspiração de baixo calibre, herança efémera de um anónimo interlocutor anterior. Não será o som da inteligência, mas é o som da sitcom – que, no contexto próprio e com a adequada e generosa suspensão da descrença, pode ser a mesma coisa. E é, de facto, uma boa deixa – o tipo de resposta pronta que deixaria qualquer pessoa minimamente satisfeita consigo mesma, mas que normalmente só lhe ocorre minutos depois do estímulo.
Diderot chamou-lhe l’esprit de escalier: a inspiração súbita que nos faz pensar na frase perfeita só depois de o momento perfeito ter passado. A característica crucial daquilo a que os ingleses chamam “wit” é a rapidez; no cânone (quase todo apócrifo) das respostas brilhantes e memoráveis, nenhuma história inclui as palavras “horas depois da festa, Oscar Wilde pensou que devia ter dito…”
O verdadeiro segredo de Aaron Sorkin é que escreve não o que as personagens dizem, mas o que deviam ter dito. Ao contrário do modelo narrativo tradicional, em que os diálogos são um meio para a expressão de carácter, segue o modelo da sitcom, em que as personagens são o veículo para os aforismos cómicos que o autor pretende utilizar. O “som da inteligência” que identificamos nos seus guiões é mais melodia que letra: um efeito manufacturado através da retroversão do esprit de l’escalier, acelerando o ritmo e diminuindo o intervalo entre estímulo e resposta – o intervalo que, no mundo real, faz toda a diferença. O processo de edição é temporalmente obliterado.
Ao rever episódios de “West Wing” é quase impossível não pensar nos protagonistas como refugiados de um filme sobre viagens no tempo: avatares de Bill Murray em “Groundhog Day”, a penarem através da milésima iteração do mesmo dia, até atingirem o pico de articulação, até os próprios equívocos serem brilhantes, até reconstruírem o momento perfeito. Será esta também, aliás, a leitura ideal da memorável primeira cena de “A Rede Social”: o tipo que não gosta de sanduíches preso num loop temporal, a reviver o mesmo diálogo pela enésima vez, cometendo gafes cada vez mais bem articuladas. Alan Turing conseguiu transformar um convite para o almoço num lodaçal semântico; as personagens de Sorkin transformam uma conversa de sobremesa numa competição retórica, que se pode ganhar ou perder.
O desejo de poder reviver o passado com a informação entretanto adquirida é surpreendentemente comum, e poucos adultos não terão já dedicado alguns minutos de vida a editar a sua compilação de momentos. Como quase todas as fantasias, esta esconde impulsos embaraçosos: a ideia de nunca cometer erros, de saber tudo sem ter que aprender nada é, no fundo, uma fantasia de omnisciência indolente; e todas as fantasias de omnisciência são fantasias de poder – e de arrependimento.
Não admira que a hiper-articulada inteligência fictícia aperfeiçoada por Sorkin seja tão instantaneamente apelativa, e tão retroactivamente frustrante: mostra-nos não o que gostaríamos de conseguir pensar, mas o que desejaríamos ter conseguido dizer.