Um preparador físico tornado agente de jogadores. A premissa não é recorrente e é precisamente aí que João Lapa coloca a base do projeto que lançou na primeira metade do ano e que está a dar os primeiros passos: a Lapa Football, uma agência de representação e gestão de carreiras de jogadores e treinadores de futebol que pretende mudar o paradigma do universo em que está inserida.
Aos 40 anos e com formação em Educação Física, João Lapa foi preparador físico de clubes de futebol durante uma década. Deu os primeiros passos no Olhanense e no Atlético, foi para a Arábia Saudita com José Gomes e ainda teve uma breve passagem pelos Emirados Árabes Unidos antes de cumprir o sonho de chegar à Premier League à boleia do Wolverhampton de Nuno Espírito Santo. Regressou a Portugal em 2021, ao fim de oito anos consecutivos a trabalhar no estrangeiro e para treinar no Famalicão, e decidiu antecipar o objetivo de abrir a própria agência no final do ano passado.
A trabalhar atualmente com cinco jogadores e um treinador, João Lapa garante que não quer que a Lapa Football se torne “uma agência de massas”. Acredita num agenciamento de alta performance, com uma atenção particular a cada atleta e o foco no crescimento e na longevidade. Afinal, tal como explica em entrevista ao Observador, o jogador é um negócio – “quanto mais cuidado têm com eles, mais cuidado estão a ter com o seu próprio negócio”.
Em que é que consiste o projeto da Lapa Football?
A Lapa Football surge de uma oportunidade que senti que existia no mercado. Era uma coisa a que já tinha planeado dedicar-me mais à frente na minha carreira, mas por circunstância da vida, por timings, achei que o momento certo era agora. Tinha saído do meu último projeto, não estava a trabalhar como preparador físico e achei que era o momento certo para começar e para me dedicar a esta nova função. Surge da necessidade que senti, enquanto preparador físico, de um acompanhamento mais próximo dos jogadores. Uma proximidade não só ao nível do acompanhamento da carreira, a gestão da carreira em si, mas sim a carreira enquanto atleta e enquanto ser humano. Sendo eu da área da performance, do alto rendimento, que é a minha especialização, fui adquirindo conhecimento, experiência e contactos que acho que são fundamentais para o crescimento, o desenvolvimento e a longevidade da carreira de um jogador. Esses são os pilares que me movem, que acho que podem fazer a diferença neste mercado. Acho que poucas pessoas que estejam neste mercado, nesta área, vêm do lado da performance para este lado. Acontece muito no mundo empresarial, ir buscar pessoas com muitas experiências para relatarem um bocadinho o que se passa e o que se faz na área do alto rendimento e do desporto, tentar transportar esse mindset. E aqui acaba por ser um bocadinho parecido, mas mais focado no que pode fazer um jogador crescer e melhorar, potenciar a carreira enquanto atleta e ser humano.
Essa conjugação da condição de atleta com a de ser humano é uma das prioridades?
Não consigo dissociar as duas coisas. Para mim é um todo. Há esta tendência normal de pensar que como tem de existir um resultado, uma performance, olhamos para os jogadores como se fossem máquinas. Têm de ter determinados comportamentos, determinados cuidados e têm de render, seja em que condições for. Estamos a ver isso com os calendários de futebol, que são cada vez mais apertados, há uma congestão de jogos brutal e os jogadores têm de jogar. Mas o jogador é muito mais do que isso, não deixa de ser um ser humano. Temos de respeitar a pessoa que ali está por detrás daquela máquina competitiva. Não podemos só esperar que rendam e pronto, temos de estar aqui para que tenham todas as ferramentas e é aí que acho que trazemos uma mais-valia: munir os jogadores de todos os cuidados que envolvem essa abordagem 360º. Em todas as áreas, desde a psicologia especializada em desporto ao health performance. Há um cuidado com o ser humano, acima de tudo. Considero-me uma pessoa muito próxima dos outros, gosto do contacto, e um jogador que trabalhe comigo faz parte da minha família. Não consigo descurar esse lado humano de todo o processo.
É essa a grande diferença entre a Lapa Football e as restantes agências?
Não conheço todas as outras agências. Conheço algumas, mas acho que a grande diferença é este conhecimento que tenho da performance, do alto rendimento, do que um jogador precisa. Posso ter um input mais concreto, mais por dentro, com mais conhecimento – é a minha área, foi aqui que me formei, foi onde trabalhei ao longo dos anos. Acho que tenho uma consciência maior daquilo que um jogador pode precisar a cada momento da carreira, acho que é essa a grande diferença. Queremos trabalhar com um conjunto de jogadores, ver esse conjunto de jogadores crescer, mas não vamos tornar-nos numa agência de massas. Nunca vamos ter um grande número de jogadores, porque é impossível ter esta proximidade e esta abordagem com um sem fim de jogadores.
Atualmente trabalha com cinco jogadores e um treinador. Até onde é que o leque pode crescer?
Não consigo precisar. A equipa também ainda terá de crescer, mas numa primeira fase e dentro daquilo que considero exequível, acho que podemos ir até aos 15, 20 jogadores. Pode ser mais, pode ser menos, mas também vamos estando atentos ao que acontece. Eu posso achar que a estrutura pode dar assistência a 20 jogadores, por exemplo, mas depois na prática não conseguirmos ter o cuidado que queremos ter com cada um. E aí reduzimos e vamos ajustando. Acima de tudo, temos de garantir que o serviço que damos individualmente tem todo este cuidado em que acreditamos, porque acho que só assim é que faz sentido e só assim é que pode dar resultados.
Parece uma abordagem muito personificada e pormenorizada, quase aquilo que cada jogador tem no próprio clube. Acha que os clubes vão achar piada à ideia?
Quando pensamos em clubes, se calhar, pensamos só nos clubes grandes. E os clubes grandes têm capacidade para dar uma assistência global aos jogadores. Mas existem montes de clubes sem capacidade para dar um atendimento tão específico e tão próximo de cada jogador. Pelas condições que têm, porque têm muitos jogadores, porque não têm estruturas capazes de dar essa resposta. A ideia não é ir contra os clubes, a ideia será sempre trabalhar em prol e em parceria com os clubes. A partir do momento em que o jogador sabe que existe um trabalho que está a ser feito ou que vai ser feito, a ideia é sempre coordenar ao máximo com os clubes, porque só assim é que faz sentido e só assim é que se permite que o jogador saia beneficiado disso. Assim como os clubes: se o jogador estiver melhor, se tiver um acompanhamento melhor e mais cuidado, mais atento, vai render mais. Acredito que é esse o caminho.
Um dos pontos apontados na declaração de intenções da Lapa Football passa pelo media training dos jogadores e a importância da comunicação. É uma característica cada vez mais importante para um jogador de futebol?
Claro. Hoje em dia é inevitável, no mundo em que vivemos. O jogador é um negócio. Eles têm de cuidar deles próprios. Quanto mais cuidado têm com eles, mais cuidado estão a ter com o seu próprio negócio. Têm de ter atenção em todos os campos e esse é um deles, sem dúvida.
A “abordagem 360º” que surge nos planos da Lapa Football também passa por uma espécie de assessoria no que toca à vida pessoal?
Acho que sim, acho que vai um pouco ao encontro da questão do atleta e do ser humano. Não dá para compartimentar tudo, para pôr coisas em gavetas. Esta proximidade que pretendemos exige esse tipo de relação, tem de existir uma confiança muito grande no que está a ser feito e no que é proposto aos jogadores. A abordagem 360º é mesmo estar disponível para conseguir prestar um mundo de serviços que permita ao jogador estar livre de outras preocupações e que lhe permita crescer e render o máximo possível.
Casos como o do Diogo Dalot, que deixou a Seleção Nacional para assistir ao nascimento do filho, não aconteciam há alguns anos.
Antigamente, alguém que colocasse a hipótese de deixar uma equipa para ir assistir ao nascimento do filho podia ser pouco profissional ou algo do género. E ainda bem que mudou. Não deixamos de ser humanos. E acho que estamos no bom caminho se estivermos mesmo a evoluir nesse sentido. As pessoas têm sentimentos. Achamos que os jogadores têm de estar sujeitos a tudo porque ganham muito dinheiro, achamos que não têm mais direitos nenhuns e só têm de competir e ser máquinas competitivas. Não pode ser assim, há mais para além disso, as pessoas têm uma vida, têm uma família. Se abdicarmos de tudo durante a vida toda, quando acabamos a carreira deve existir um vazio… Se calhar até algum arrependimento, porque não viram os filhos crescer ou qualquer coisa. E tudo por essa sensação de profissionalismo, essa ideia de que não se pode falhar com o futebol ou com a profissão e abdicar de coisas. Há sempre um lado que sai mais prejudicado e hoje em dia os jogadores estão mais conscientes, não abdicam disso e ainda bem. E acho que os clubes também vão cedendo e já não encaram essas coisas como falta de profissionalismo, é o lado humano que temos de preservar. Acima de tudo, é tentar perceber que um jogador que esteja bem, que esteja feliz, vai conseguir transportar isso para o rendimento no clube. Um jogador que é constantemente constrangido, que deixa de fazer coisas que são importantes, vai ter a performance influenciada de forma negativa. Acho que os clubes agora olham mais para isso, querem é que os jogadores estejam bem para que consigam render.
Sublinha muito a questão da longevidade do jogador. Esta é uma longevidade física, mas também mental?
Já não conseguimos distinguir a parte mental da parte física. É muito difícil, as duas coisas estão muito interligadas. Se existem coisas que nos limitam e que fazem com que não estejamos a 100%, isso vai notar-se no rendimento, não vamos ter a mesma performance. Mas se a nossa parte física não estiver saudável e otimizada, também não vamos conseguir atingir os objetivos a que nos propomos e isso vai influenciar a nossa felicidade, a nossa ansiedade, todos os comportamentos e emoções que estão associados ao jogador. Uma interfere diretamente com a outra e é por isso que queremos que trabalhem sempre em sinergia. Esse acompanhamento é fundamental e é uma das nossas prioridades.
O João especializou-se na área da preparação física, mas antes de chegar à universidade praticou vela. Alguma vez sonhou com os Jogos Olímpicos?
Cheguei a um Mundial! Mas não me correu da maneira que esperava. Mas para primeira experiência acho que foi muito bom. Eu sou do Algarve e quando fazia vela só treinava aos fins de semana, quando vim estudar para Lisboa tornou-se difícil conciliar Algarve, Lisboa, treinos, estudos. E aí percebi claramente que para conseguirmos chegar a um nível muito alto temos de estar 100% dedicados e só assim é que é possível ter esse tipo de sonhos. Eu sempre fui muito competitivo e gostava muito, mas percebi que quanto menos treinava, menos resultados estava a ter e assim não ia dar. Nunca iria acontecer sem treino e sem dedicação, os resultados iam ser cada vez piores.
A primeira experiência profissional surge no ténis. Como é que aconteceu?
Sim, começo a trabalhar como preparador físico no ténis, ainda na faculdade. Tive um convite para trabalhar numa escola de ténis em Lisboa e foi aí que comecei a conseguir aplicar tudo o que estava a aprender na faculdade. Já tinha aulas práticas na faculdade, mas a minha ideia sempre foi ver resultados a partir da parte teórica. Sempre tive isso ao longo da minha carreira: no meio de tanta informação, de tanta coisa que se faz, perceber o que realmente funciona. O que é ruído e o que realmente funciona. Sou assim com tudo, até comigo próprio, com as dietas, com o cuidado com a saúde. E no rendimento é exatamente a mesma coisa, sempre quis perceber o que realmente funciona. E nesses tempos da faculdade tive logo essa necessidade de começar a trabalhar na área da preparação física e o primeiro convite que apareceu foi esse no ténis, onde aprendi muito. Foi espetacular, permitiu-me ganhar ferramentas para o trabalho individual com o jogador de futebol, porque apesar de serem modalidades completamente distintas dá sempre para fazer paralelismos e transportar ideias e conceitos de treino.
Mas a ideia sempre foi chegar ao futebol?
Sim, o meu sonho sempre foi o futebol. Eu sempre quis ser jogador de futebol, mas nunca se proporcionou. Joguei na escola, mas nunca consegui passar para um nível federado, porque onde eu vivia não existiam clubes perto de casa. Estudava numa escola muito longe e fazia muitas horas de autocarro para ir e voltar todos os dias, já chegava a casa tarde. Mas desde miúdo que sou louco por futebol, adoro ver futebol. E não venho de uma família nada ligada ao desporto e nada ligada ao futebol, sou completamente um outsider, não tenho ninguém na família que tenha uns hábitos desportivos vincados. Toda a gente achar o desporto muito importante, toda a gente acha o desporto um máximo, mas não foi pelo exemplo. Nasceu comigo, é intrínseco. E essa parte da competição, do ganhar, de querer ser melhor, levou-me para esta área da performance. Eu não sou jogador, não posso fazer, mas posso ajudar. E essa é a minha grande paixão: conseguir ajudar os outros. Isso é o que me move, o que me faz querer andar para a frente e acreditar que este projeto vai ter sucesso. Eu não prometo nada a ninguém, trabalho com probabilidades. Tudo o que eu penso, tudo o que eu faço, é para que o jogador nunca pare de crescer. É essa a minha principal vocação. Não estabelecer um teto, não trabalhar com o objetivo único de chegar ali ou chegar acolá. O objetivo é que os jogadores não parem de crescer, essa é a minha grande vontade e é nisso que acredito. E todas estas ferramentas permitem que isso aconteça.
Em 2014 surge a oportunidade de rumar à Arábia Saudita, ao Al Taawon, à boleia da equipa técnica de José Gomes. Pensou muito na ideia de ir para tão longe ou foi uma decisão fácil de tomar pelo desafio?
Pensar, pensei, até porque estava a começar uma relação com a minha atual mulher e namorávamos há muito pouco tempo. E quando comecei a ver as condições de ir para a Arábia Saudita… A coisa começou a complicar-se. Porque a Arábia Saudita de hoje não era a Arábia Saudita de 2014, as coisas ainda eram muito fechadas, os namorados não se podiam visitar, tínhamos de ser casados. A minha mulher tinha de ser casada comigo para poder visitar-me e não era. Nunca foi à Arábia Saudita e ficámos muito tempo sem nos vermos. Foi um risco porque no início de uma relação podia ter corrido mal. Foi arriscado, mas sempre me guiei um bocadinho pelo princípio de ir para os sítios onde me valorizam mais, temos de estar onde nos valorizam mais. E o que a Arábia Saudita ia pagar e a forma como queria valorizar o meu trabalho valia a pena. Tive o convite para ir para lá e pensei que se queria dar continuidade à minha carreira e continuar a crescer este podia ser um bom próximo passo. Aceitei e foi uma experiência ótima.
Como é que foi a adaptação a uma cultura tão diferente?
Muito dura, na altura, porque a cidade onde eu estava [Buraidah] ficava no meio do deserto, não tinha acesso a praticamente nada e é uma das cidades mais conservadoras da Arábia Saudita. Foi uma experiência muito difícil, mas hoje em dia olho para trás e adorei ter passado por aquilo. Adorei conhecer os sauditas, deparei-me com uma realidade em que os jogadores eram super afáveis, super queridos, super hospitaleiros. Sempre a quererem oferecer, sempre a quererem convidar para almoços, para jantares, para estar em casa, para beber o chá com as tâmaras, que é o menu preferido deles. E isso foi espetacular, essa ligação com o povo. Gosto muito de pessoas e acho que o contacto e a relação que tinha com os jogadores era muito gira. Eles já ganhavam muito dinheiro na altura, mas o conceito de profissionalismo era muito volátil. Nós quando fomos para lá, enquanto equipa técnica, tentámos incutir um bocadinho mais essa mentalidade, esse mindset mais profissional, do que é a competição, e acho que isso foi uma das coisas que correu muito bem nesse projeto. E a língua é sempre uma barreira muito grande, muito poucos sauditas falam inglês e é um inglês mais rudimentar. Isso obrigou-me a desenvolver um árabe muito arcaico, mais futebolístico, e fazer paralelismos.
Paralelismos? Como assim?
Por exemplo: para eles é normal beber refrigerantes a toda a hora, Coca-Cola, 7Up, Pepsi e não sei quê, para eles é como quem bebe água. Não conseguem perceber por que é que um atleta não pode beber tantos refrigerantes, não conseguem perceber que aquilo tem uma série de coisas que não são boas para eles. E aí consegui arranjar um paralelismo com o gasóleo, eu dizia que aquilo era diesel e eles precisavam de benzina, de gasolina de aviões, para o motor deles explodir, para andar, para serem mais rápidos, recuperarem mais rápidos. E às vezes encontrava-me com um jogador na rua, apanhava-o a beber uma Pepsi ou assim e dizia-lhe “diesel, diesel”. E pronto, esse tipo de estratégias começou a funcionar para os convencer a tentar perceber o que eu queria.
Existiu um aumento de interesse exponencial a partir do momento em que Cristiano Ronaldo foi para o Al Nassr, mas a verdade é que sempre existiram treinadores portugueses na Arábia Saudita. Como é que se explica?
Atualmente, o treinador português está na moda. E bem e ainda bem e com mérito, porque esse reconhecimento é mundial. Não é por acaso que temos sempre treinadores portugueses a ganhar campeonatos em diferentes ligas no mundo inteiro, temos sempre treinadores nomeados para ganhar prémios. A qualidade do treinador português é uma das razões, sem dúvida. E a segunda razão é a capacidade dos portugueses de se adaptarem, de terem alguma flexibilidade e terem esta ginástica para conseguir perceber aquela cultura. Porque uma coisa é certa: chegar a um clube árabe e tentar entrar em rota de colisão, impor coisas, não funciona. E o treinador português tem esta capacidade de conseguir perceber, entender, tentar levá-los e guiá-los para um caminho que lhes permita ter sucesso. E a partir do momento em que há essa capacidade, o jogador também reconhece e é mais fácil levá-los. O jogador, a estrutura, tudo, quando há sucesso abrem o livro e dizem “é o que vocês precisarem para continuar”. Chegar lá e impor não funciona. Mas chegar lá, perceber, adaptar e conseguir guiar faz toda a diferença.
Chegou ao Wolverhampton em 2017, com Nuno Espírito Santo, e acabou por subir à Premier League. Sentiu que atingiu um objetivo nesse momento?
Sim, sem dúvida. Um dos meus sonhos, a partir do momento em que me tornei preparador físico, era chegar à Premier League. Aliás, eu costumava dizer que mais do que um clube, mais do que aquela coisa de “Quero chegar ao Real Madrid, ao Manchester United, ao Barcelona”, eu queria chegar a um nível. Queria chegar a um nível competitivo, a uma La Liga, a uma Premier League. E felizmente concretizou-se e foi espetacular, o que conseguimos fazer com aquele clube foi espetacular. Foram anos de muita dedicação e muito… Não é bem sofrimento, mas lá está, eu nunca consegui levar a minha família comigo e essa sempre foi uma parte difícil de gerir e de lidar. Por outro lado, houve essa compensação profissional, porque o trabalho deu-me um crescimento espetacular. E foi uma aventura, um sonho que se concretizou.
É muito comum dizer-se que o nível físico dos jogadores da Premier League está a anos-luz do dos jogadores da Primeira Liga, por exemplo. É mesmo assim? Como é que a diferença é tão grande?
Eu acho que não tem tanto a ver com o trabalho que é feito. Quando olhamos para a Premier League, estão lá os melhores jogadores. E não são os melhores jogadores porque são os melhores tecnicamente, são os melhores jogadores porque têm uma série de atributos, incluindo físicos, que lhes permite competir naquele nível. Agora, quando uma liga está recheada desse talento aliado às capacidades físicas que os jogadores têm, porque só os melhores jogam lá, é natural que tudo isso faça com que a liga tenha um nível e um ritmo e uma competitividade muito grande. E noutras ligas isso não se verifica. A Liga portuguesa também tem ótimos jogadores e saem jogadores daqui que vão para lá e singram, mas só vão para lá os melhores jogadores portugueses. E são os melhores porque são melhores tecnicamente e fisicamente e têm capacidades, no seu conjunto, que lhes permitem encaixar naquela liga. Acho que tem muito a ver com isso, com a própria fisionomia, com a capacidade técnica, tática, mental. Não somente com a preparação. Até porque estão lá treinadores que treinaram em clubes portugueses e não mudaram radicalmente a forma de trabalhar. Acredito que tem a ver com a qualidade e as capacidades que estão inerentes a cada jogador, é isso que eleva os níveis de intensidade. Há uma seleção de talento.
Volta a Portugal a 2021, para integrar a equipa técnica de Rui Pedro Silva no Famalicão. O regresso a casa acontece por razões familiares ou existia a vontade de treinar na Primeira Liga?
Foi tudo junto. No Wolverhampton trabalhava como segundo preparador físico e reabilitador físico, fazia a parte de prevenção de lesão e de reabilitação dos jogadores lesionados. Surgiu o convite na altura em que saímos do Wolverhampton, quando não tinha a certeza do que ia acontecer. O mister Rui Pedro Silva, que também trabalhava connosco no Wolverhampton, disse que havia uma oportunidade em Portugal e eu achei que por todas as razões – incluindo familiares, sem dúvida – era o momento de voltar e voltar a ser preparador físico e estar de regresso a Portugal. Foram oito anos fora, já pesava.
Como é que surgiu a decisão de deixar a preparação física e mudar-se para o lado do agenciamento de jogadores?
Apesar de não ser uma pessoa muito crente, gosto de estar atento aos sinais. E tive alguns convites para trabalhar nesta área do agenciamento em tempos anteriores — não sei se pela minha maneira de me relacionar com os jogadores, pela proximidade, de conseguir incentivar e motivar. Sempre que respondi que era uma coisa que ponderava fazer no futuro, mas não já. Quando saí do Famalicão, o convite voltou a aparecer. E aí decidi que era o timing certo, foi uma questão de feeling. Gosto de arriscar e gosto de depender mais de mim, porque quando estou numa equipa técnica dependo sempre das decisões de outras pessoas. Mas estava em casa, era uma coisa que já tinha planeado fazer no futuro e decidi antecipar e apostar tudo aqui.
Não tem saudades de estar em campo, do treino e do trabalho do dia a dia?
Para ser sincero, ainda não tive saudades. Não sei se vou ter daqui a algum tempo, mas a verdade é que continuo muito próximo. Não estou no campo, é diferente, mas não saí da área, continuo a trabalhar no futebol, todos os dias falo com pessoas do futebol. Até agora, para ser sincero, ainda não senti saudades do campo. Sou uma pessoa muito focada, quando meto uma coisa na cabeça, um objetivo, não páro enquanto as coisas não estiverem a rolar. E neste momento é nisto que estou concentrado, é em fazer crescer este projeto e fazer crescer as pessoas que estão comigo. Tentar ajudar. Não deixo de dizer que isto é um negócio, obviamente, mas para mim o negócio é uma consequência do trabalho que quero fazer. O meu foco é fazer crescer, ajudar a fazer crescer. E o negócio é uma consequência desse crescimento, a minha filosofia é essa. Não quero estar tão preocupado com perceber se o jogador vai para ali ou para outro lado qualquer. Claro que faz parte, mas quero muito mais dar ferramentas aos jogadores para que possam estar preparados para corresponder aos diferentes desafios que vão tendo ao longo das carreiras.
O João é pai, tem dois filhos. Gostava de ter um filho jogador de futebol ou preferia que não entrassem nesse mundo?
O meu filho nunca foi assim muito virado para o futebol. A minha filha também não, mas por acaso tem muito jeito! Mas não incentivo nada, eles têm é de fazer aquilo de que gostam e ela gosta é da ginástica acrobática. Não faço nenhum tipo de pressão. Se tivesse um filho que quisesse ser jogador ia ajudar, claro. Mas não tenho filhos, tenho “enteados”, porque vou olhar para estes jogadores que vão trabalhar comigo como se fossem meus filhos. Vou querer o melhor para eles, vou querer que eles sintam que podem contar comigo em todos os momentos. Não só no futebol em si, mas na vida. Ainda ontem disse à mãe de um jogador que ia olhar para o filho dela como se fosse um filho meu. Pode parecer demasiado profundo, mas é assim que olho para as coisas. Acho que esta relação tem muito potencial se soubermos que há aqui alguém pronto para nos ajudar. Gostava de ter isso, coloco-me no papel dos outros e se fosse jogador de futebol gostava de poder contar com alguém que arranjasse solução para os problemas. É esse o meu papel, arranjar soluções em todas as áreas que envolvem a performance e o crescimento do jogador.