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Adriana Calcanhotto: “Se o artista não é marginal, o que ele faz não é arte”

Em entrevista, a brasileira diz que não se considera uma grande cantora e assume não ter disciplina para compor todos os dias. O novo disco sai a 7 de junho e há dois concertos marcados em Portugal.

O novo álbum de Adriana Calcanhotto chama-se Margem e rompe um ciclo de sete anos em que não gravou originais. O disco tem sido revelado aos poucos nas redes sociais e no YouTube e conhece edição a 7 de junho. Fecha uma trilogia dedicada ao mar, onde se incluem o álbum Marítimo, de 1998 (que a tornou muito conhecida em Portugal, graças ao tema “Vambora”), e Maré, de 2008. Eis o motivo para uma conversa com a cantora brasileira, que se encontrou com o Observador esta semana na Livraria da Travessa – casa emblemática do Rio de Janeiro que agora abriu portas em Lisboa, na zona do Príncipe Real.

Na véspera, tinha participado na conferência Encontros do Estoril, onde debateu os “desafios da lusofonia” ao lado do escritor angolano José Eduardo Agualusa e do autarca Carlos Carreiras – o que que lhe valeu críticas, por no mesmo fórum estar o ministro brasileiro da Justiça Sérgio Moro, antigo juiz que condenou Lula da Silva a pena de prisão. Foi um dos temas abordados nesta conversa, com a artista a mostrar-se avessa a discussões partidárias mais intensas.

Embaixadora da Universidade de Coimbra desde 2015 e ali professora num curso livro sobre escrita de canções, Adriana Calcanhotto, de 53 anos, é também prosadora e ilustradora, assumindo-se como ativista ambiental através do novo álbum. Mas ressalva que há mais do que ecologia nas nove canções que agora gravou. Há, por exemplo, as inéditas “Meu Bonde” e “Dessa Vez”, ao lado de composições que fez para outros, como “Era para Ser”, que Maria Bethânia já interpretou. Serão apresentadas ao vivo a 6 de novembro no Teatro Tivoli, em Lisboa, e a 19 na Casa da Música, no Porto.

Consta que o novo disco faz parte de uma trilogia que a própria Adriana não imaginou que fosse uma trilogia. É mesmo assim?
Quando lancei o primeiro disco da trilogia, em 1998, ela não existia, de facto. Era um disco sobre o mar, apenas, e não pensei que haveria outros. Depois, percebi que tinha repertório para fazer um segundo disco sobre o mar. Quando vi que tinha o segundo, em 2008, percebi que esse também não esgotaria o assunto e estabeleci a possibilidade de fazer uma trilogia, sim. Uma possibilidade de futuro. Ou um terceiro disco ou então deixar a trilogia incompleta, para não criar uma expectativa. Criar expectativas é criar a possibilidade de as pessoas dizerem “ah, mas então o terceiro era isto?”.

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Lida mal com as expectativas do público?
Não. Estou a brincar, na verdade. Poderia não ter tido vontade de fazer o terceiro. Enfim, não quis estabelecer logo que era uma trilogia, porque poderia não a completar. Mas este último começou a brotar.

E assim sendo temos um terceiro disco sobre o mar. Que mar é este?
Tenho dito que não é tanto um disco de contestação quanto é um disco de constatação. É o mar como ele está neste momento.

É um disco ecologista?
Dos três, é o mais político. Lembro-me de que no primeiro as questões eram, por exemplo, o Greenpeace que denunciava barcos japoneses camuflados de barcos de investigação, quando, na verdade, caçavam baleias. Hoje, as questões são mais urgentes e mais graves.

A poluição do plástico nos oceanos está bem espelhada na capa do álbum. Sempre esteve atenta a este assunto?
Sempre, sou ativista, preocupo-me há muito tempo. E acho que hoje há uma consciência no público em geral, que se deu a partir do momento em que as pessoas entenderam que o plástico que atiram ao mar volta para o nosso prato. Nós comemos o plástico. É como se o mar fosse uma lixeira situada lá fora – o que é que é o mar? o mar é lá, joga o sofá no mar, joga o plástico. Quando as pessoas perceberam isto, pessoas que não são ativistas, foi quando, como se diz no Brasil, o bicho pegou. Há uma consciência nova, porque agora este assunto está em toda a parte. As imagens estão a correr nas redes sociais e as pessoas podem ver. Não seria possível fazer um terceiro disco sobre o mar, hoje, e aparecer na capa como num mar idílico, irreal.

Faz sentido descrever “Margem” como um álbum ambientalista ou ecologista?
Acho que seria redutor.

Também há canções de amor.
Há. E há um poema do António Cícero musicado pelo José Miguel Wisnik [“Os Ilhéus”]. O poema diz que estará uma civilização acima de nós, maravilhada com o mar e com as mesmas dúvidas que temos agora. Acho esta imagem impressionante. Ou seja, o disco tem outras questões, questões filosóficas.

[“La, La, La”, segundo single do álbum “Margem”]

A relação entre Portugal e o Brasil, com o mar pelo meio, também surge no álbum.
Muito já se questionou sobre se este mar nos separa ou une. Mas está entre nós.

Qual é a sua opinião?
Separa-nos tanto quanto nos une. Há duas margens e exatamente por causa da maré a margem não é fixa, vai e vem. Mas Margem também se refere à condição marginal do artista.

O artista deve estar à margem?
Se a condição do artista não é marginal, o que ele faz não é arte. Mas… O que eu gosto é da ideia de que a margem não me fixa e, portanto, estou em terra de ninguém. Mesmo o tipo de artistas que sempre admirei são os artistas da margem, na poesia, na música.

À margem do sistema ou à margem do gosto do momento?
É mais ou menos a mesma coisa. Há uma frase de John Cage: se duas pessoas no mundo fazem a mesma música, já é demais. Adoro isto. É uma frase tão simples e tão profunda ao mesmo tempo. Como artista, quero dizer as coisas que só eu posso dizer. Não posso dizer as coisas que só você pode dizer. É isso.

Como se consegue isso ao fim de 30 anos de carreira, como é o seu caso?
É um exercício diário, nem sempre se consegue. É um exercício diário de me questionar sobre se é isto mesmo, se vale a pena, se estou no caminho certo, o que é que me move. Dou um curso na Universidade de Coimbra, “Como Escrever Canções”. Como escrever, é uma coisa; para quê escrever, é outra coisa e para isso não há curso.

Também não tem resposta?
Vou tendo.

"Gal Costa, quando era criança, lá na Bahia, pegava numa panela de feijão e punha na cabeça e cantava para ouvir a própria voz. Se eu tivesse a voz da Gal Costa, talvez fizesse a mesma coisa, mas a minha relação com o canto não é essa."

É uma artista à procura de se reinventar a todo o tempo?
Não me quero reinventar, quero-me inventar constantemente.

Toca todos os dias, escreve canções todos os dias?
Quem me dera ter essa disciplina. Não tenho, mas tenho inveja dos artistas que conseguem. Como faço muitas coisas diferentes e tenho uma falta de jeito para… Há artistas, compositores brasileiros, que há anos dizem em entrevistas que fazem uma canção por dia. Boa, média, péssima, um “hit”, um clássico.

Acredita neles?
Acredito! Não vejo porque é que inventariam. Dizem isto há anos. Pode acreditar em mim: eu não consigo.

Como é o seu ritmo de criação?
Acontece muito por inércia. É quando tenho que ensaiar um concerto, quando tenho que estar em contacto com o instrumento, quando tenho mesmo que fazer. É muito mais fácil que aconteçam canções nesse contexto do que eu estar no meio dos livros, a pesquisar, a fazer investigação para as aulas, e ir buscar a guitarra. Dificilmente acontece.

Isso quer dizer que a maioria das suas canções nasce quando anda em digressão?
Sim, ou então no estúdio, porque no estúdio é a mesma situação: tenho que estar lá agravar, a tocar, aquilo é um condicionamento, uma ambiência que permite acontecer. Antigamente, tinha mais espaço na vida para acordar, tomar o pequeno-almoço e pegar na guitarra que estava ali no sofá, mas com o tempo fui tendo cada vez mais apelos, coisas que aceito porque quero aceitar. Não sou obrigada, claro. É também do meu temperamento, do próprio funcionamento do cérebro: se a guitarra está aqui, toco, se não, não toco.

[“Margem”, tema-título do novo álbum:]

É uma criadora repentista?
Acho que sim.

Mas gosta de tocar?
Faço “loops” pequenos, porque me escapa a linguagem da guitarra, não posso ir por alguns caminhos melódicos.

Que importância tem o poema numa canção?
Quase tão importante como na Grécia Antiga, onde a melodia servia para guardar o poema.

Qual o critério quando escolhe cantar canções de outros?
Aí as melodias são importantes. Não sou uma grande cantora, mas aprecio belas melodias, como esta do José Miguel, para um poema lindíssimo. Quando as duas coisas se juntam, há uma soma de belezas e aí nasce uma grande canção.

Não se considera uma grande cantora?
Canto, mas, exatamente porque eu mesma não faço melodias rebuscadas, porque não sei fazer, não exercito muito o canto.

Convive bem com isso?
Muito bem, muito bem. Já dei muitas vezes este exemplo: Gal Costa, quando era criança, lá na Bahia, pegava numa panela de feijão e punha na cabeça e cantava para ouvir a própria voz. Se eu tivesse a voz da Gal Costa, talvez fizesse a mesma coisa, mas a minha relação com o canto não é essa. Gal Costa pode cantar qualquer coisa, mas não é assim que me sinto, estou antes de tudo ligada ao que estou a dizer, antes de estar ligada à voz. Não posso cantar uma coisa qualquer. Como hei-de dizer? O que estou a cantar vem antes da minha voz como cantora. Não sei se fui clara.

Está a dizer que usa a voz para cantar poesia?
Canto as coisas nas quais vejo beleza. De alguma maneira, isso passa credibilidade. Uma grande cantora pode cantar uma coisa na qual não acredite, na qual não veja muita beleza. Pode gravar por causa da melodia, apenas, e de qualquer forma aquilo é uma beleza. Acho que é isso. Estou a falar de forma tão afirmativa e talvez isto transcrito na entrevista não faça sentido.

"A lei que rege a sobrevivência de uma língua é a lei do menor esforço. É assim que funciona o cérebro humano. De vez em quando, há acordos. Com o Acordo Ortográfico de 1911 houve a mesma gritaria, a reação é sempre a mesma, mas é preciso haver um acordo."

Participou esta semana nas Conferência do Estoril e falou dos desafios da lusofonia. O que é que disse?
No fundo, o tema era o que pode a lusofonia fazer pelo mundo, no estado em que o mundo está. A resposta é educação, de um modo geral, educar pessoas. Não é só ensinar tarefas, matemática, linguística. Não, é ensinar pessoas, ensinar o pensamento crítico. Temos uma urgência: se os algoritmos descobrirem antes de nós quem somos nós, o que será de nós? Num piscar de olhos, as crianças que nasceram neste tempo dominado por algoritmos, e que têm já uma maneira diferente de pensar, estarão a comandar o mundo. Nós é que ainda estamos a dar aulas, mas num piscar de olhos são eles que estarão no nosso lugar. Olhar a lusofonia como um bloco separado do mundo não é a minha maneira de pensar, mas estar ali, ao lado do Agualusa, foi muito bom. Por incrível que pareça, veio do público uma pergunta sobre o Acordo Ortográfico, inclusive mal formulada, dizendo que no Brasil o Acordo Ortográfico não está em vigor. Perdeu-se tempo a responder, mas não deixa de ser útil que o Agualusa e eu respondamos a essa questão.

O Acordo Ortográfico é uma questão irrelevante?
É lateral aos desafios da lusofonia e ao futuro do mundo.

Concorda com o AO? Adotou-o?
Adotei pelo seguinte: a lei que rege a sobrevivência de uma língua é a lei do menor esforço. É assim que funciona o cérebro humano. De vez em quando, há acordos. Com o Acordo Ortográfico de 1911 houve a mesma gritaria, a reação é sempre a mesma, mas é preciso haver um acordo. Não estou a dizer que o Acordo Ortográfico de 1990 é ótimo e perfeito, mas não interessa, vamos adiante. Esta questão já passou, está quase na hora de fazermos o próximo acordo.

No seu Facebook alguém criticou o facto de ter aceitado participar numa conferência em que também estaria o ministro Sérgio Moro. Que opinião tem sobre ele?
Não tenho opinião formada sobre Sérgio Moro.

Nem sobre a passagem dele de juiz a político?
Não.

Prefere não entrar em questões político-partidárias?
Não é o meu assunto. Não iria às conferências do Estoril discutir a lusofonia porque o Sérgio Moro também iria estar no mesmo local? É um argumento que não qualifica a discussão.

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