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O escritório dos advogados Mónica Quintela e Rui da Silva Leal, que representam Pedro Dias, o fugitivo acusado de vários crimes de homicídio, não podia ter uma localização mais apropriada. Fica no centro de Coimbra, no mesmo edifício do Tribunal de Instrução Criminal — como tantos outros escritórios de advogados — e a dois passos do Palácio da Justiça. O amplo gabinete de Mónica Quintela está rodeado de armários do chão ao teto, repletos de livros e de antigos processos. “Ali está o processo da Máfia de Braga, são mais de 15 mil folhas”, explica Rui da Silva Leal, a apontar para umas caixas no chão da sala de reuniões do escritório. “E este é parte do processo da inspetora Ana Saltão”, referindo-se a mais um molho de pastas em cima da mesa.
Os dois advogados, que são casados, têm em mãos alguns dos processos mais mediáticos em Portugal. No julgamento da Máfia de Braga, defenderam Emanuel Paulino, também conhecido como o bruxo da Areosa, e Luís Filipe Monteiro. São ainda os advogados da inspetora da Polícia Judiciária Ana Saltão, acusada de ter assassinado a avó do marido. E são também os defensores de Pedro Dias, o homem de Arouca acusado do homicídio de um militar da GNR e dois civis, em Aguiar da Beira. “É um caso banal, no sentido em que é um caso de homicídio que tem contornos específicos, mas o que tornou o caso diferente foi a fuga de Pedro Dias e depois a forma como se entregou.”
Como os dois advogados se conheceram e casaram
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Mónica Quintela e Rui da Silva Leal conheceram-se há mais de treze anos, num evento da Ordem dos Advogados, em Cascais. “Conhecemo-nos aí e nunca mais a larguei. Lembro-me que estava a ir-se embora, tinha um recurso para fazer, mas eu não sabia quem era e tinha de saber”, lembra Rui da Silva Leal. “Eu vim para Coimbra, ele ficou lá e contactou-me na semana a seguir”, completa a advogada. Casaram dois anos depois.
“É uma vida alucinante, estamos sempre a trabalhar”, garante Rui da Silva Leal. “Este verão, estivemos no estrangeiro. Pensámos que íamos fazer praia, mas mal chegámos recebemos a notificação do julgamento da Máfia de Braga para o dia 4 de setembro. Estávamos no início de agosto, 15 mil folhas para ler e para estudar, acabaram as férias.”
Esta quinta-feira, no Tribunal da Guarda, Mónica Quintela e Rui da Silva Leal vão estar a acompanhar o testemunho de Pedro Dias ao coletivo de juízes, depois de várias sessões de julgamento onde já foram ouvidas todas as testemunhas. Pedro Dias está preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de Monsanto e na manhã de quinta responderá às perguntas dos juízes, do procurador e dos advogados. A defesa acredita que Pedro Dias não vai ser condenado por todos os crimes de que está acusado: três homicídios, duas tentativas de homicídio, três sequestros, dois roubos e três crimes de detenção de arma proibida.
Apesar de trabalharem juntos e de fazerem várias áreas do direito — desde o civil ao penal, passando pelo administrativo e pela família — também trabalham processos individualmente. Pode ser o cliente a decidir se quer trabalhar com os dois, ou podem ser os próprios advogados a sugerir a parceria — a “complexidade” de um processo pode levar a esta sugestão, explica Rui da Silva Leal. Contudo, é enquanto dupla que são conhecidos e que deram a cara pelos casos mais mediáticos.
A articulação em tribunal, sublinham, vai variando de processo para processo. “No caso da Máfia de Braga, acabámos por definir que o meu marido ficava com o Sr. Emanuel Paulino [bruxo de Areosa] e eu com o Sr. Luís Filipe Monteiro. Aconteceu que, muitas vezes, eu não pude estar presente, e o meu marido fazia o Sr. Paulino e o Sr. Luís Filipe e vice-versa”, adianta Mónica Quintela.
“Quando é só um [cliente], vamos repartindo”, diz Rui da Silva Leal. “Por vezes, sucede que o cliente vem ter com a Mónica. A relação advogado/cliente é muito especial. Quando ela funciona, cria-se uma empatia grande e uma relação de confiança muito especial. Portanto, se vêm contactar com a minha mulher, é normal que a estratégia global seja delineada fundamentalmente por ela.”
Foi precisamente isso que aconteceu com Ana Saltão. “A inspetora é detida numa segunda-feira, contacta-me ainda nesse dia à noite e logo na terça-feira de manhã, eu entro no processo. Fiz o interrogatório e depois entrámos em conjunto”, recorda Mónica Quintela.
Quem são os dois advogados
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Rui da Silva Leal, que é advogado há 35 anos, fez grande parte da carreira no Norte do país. “Trabalhei 17 anos em Matosinhos. Em 2000, fui para o Porto, para a rua Sá da Bandeira, onde ainda temos escritório. Entre 2005 e 2015, fiz Porto-Coimbra praticamente todos os dias de carro. Mas começou a tornar-se insustentável, então centralizámos tudo aqui [em Coimbra] e vou ao Porto duas a três vezes por semana”, conta ao Observador.
Teve ainda vários cargos na Ordem dos Advogados (OA): foi presidente do Conselho Distrital do Porto entre 2005 e 2007; entre 2003 e 2005, foi vice do Conselho de Deontologia do Porto e ainda vice-presidente do Conselho-Geral da Ordem com a ex-bastonária Elina Fraga, entre 2013 e 2016.
Mónica Quintela, que também foi vogal da OA, esteve sempre em Coimbra, ainda que também dê consultas em Albergaria-a-Velha.
Ana Saltão foi absolvida por um tribunal de júri pelo crime de homicídio da avó do marido, mas foi depois condenada a 17 anos de prisão pelo Tribunal da Relação de Coimbra. A condenação foi posteriormente anulada pelo Supremo Tribunal de Justiça. “O Supremo mandou baixar à Relação e a Relação mandou repetir o julgamento. Foi absolvida, mas já há recurso do Ministério Público e nós temos até ao dia 1 de março para responder”, adianta Rui da Silva Leal.
Os advogados destacam a “guerra de bastidores terrível” que tiveram “no Ministério Público e na Polícia Judiciária” com este caso. “O processo da inspetora levantou problemas jurídicos muito complexos, mas foi dos processos que mais gozo nos deu”, ressalva ainda o advogado. “Foi um processo que nos fez pensar que a justiça existe, é engraçado. Eu que advoguei sempre, tenho julgamentos praticamente todos os dias e há dias em que nos sentimos injustiçados, desmotivados, e detesto baixar os braços. No caso da inspetora, era uma injustiça”, acrescenta Mónica Quintela.
Foi com este processo que o casal saltou para as páginas dos jornais e para os ecrãs da televisão. Além da exposição pública, houve também algumas ameaças. “Não respondo a esse tipo de coisas. Primeiro, não tenho medo. Depois, nós só aceitamos os casos que entendemos. Por exemplo, eu não faço crimes sexuais”, explica Mónica Quintela. “Toda a gente tem direito a defesa, não tenho é de ser eu a defendê-lo. Nós só assumimos os processos em que sabemos que temos condições psicológicas e de formação para conseguir perceber o que se passou. O homicídio é o crime mais comum e que qualquer um de nós pode cometer.”
“Ele queria entregar-se porque tinha medo que o matassem”
Lembra-se onde estava quando soube o que se tinha passado em Aguiar da Beira?
Mónica Quintela (MQ): Íamos no IP3 para um jantar de arranque de campanha para as eleições da Ordem dos Advogados. A campanha da bastonária Elina Fraga ia arrancar em Lamego e nós estávamos na lista — o meu marido como primeiro vice e eu como vogal. Isto foi à noite, chovia torrencialmente. Ao longo do dia, fomos recebendo os alertas das notícias e até me convenci que tinha sido um gangue. O meu marido falou nisso e disse: ‘Olha, diz que foi um piloto de aviação, não há-de haver muitos’. Eu respondi que tinha um cliente em Arouca que era piloto e o meu marido disse: ‘Mas é desse que anda toda a gente à procura’.”
Logo nessa altura em que ia no carro com a sua mulher percebeu que era ele?
Rui da Silva Leal (RSL): Sim, logo ali.
MQ: Logo a seguir, telefona-me a mãe dele. Ela estava completamente desfeita.
Já o conhecia? Ele já tinha sido seu cliente?
MQ: Sim, na regulação das responsabilidades parentais da filha mais velha. Os pais de Pedro Dias e ele eram meus clientes. Cerca de três semanas antes, ele tinha ficado com a [guarda da] menina. Fiquei estarrecida quando vi aquilo.
Afinal, Pedro Dias é ou não é piloto?
Mónica Quintela (MQ): Ele era piloto. Não tem o brevet, mas estava a fazer o curso. Estava naquela fase em que tinha de fazer horas de voo para depois conseguir tirar o brevet de aviação civil.
A partir desse momento tornou-se advogada de Pedro Dias neste caso?
MQ: Não, porque não tinha falado com ele, mas os pais pediram-me para acompanhar o caso. Até porque depois houve buscas em casa dos pais.
RSL: Estávamos numa conferência da Ordem em Lisboa, lembras-te? Telefona-me a mãe dele aflita, a dizer que tinha acabado de dar um estalo num inspetor.
MQ: Ela estava nervosíssima.
Portanto, já estavam os dois com o caso?
RSL: Não estávamos, porque não sabíamos dele. Os pais e a irmã é que falavam connosco. Nós só podíamos fazer alguma coisa se ele nos pedisse. Tinha de ser ele. Até que um dia eu venho do Porto, cheguei a casa por volta da uma da manhã e diz-me a minha mulher: “Amanhã vamos entregar o Pedro Dias”.
Mas vocês foram acompanhando o caso ao longo dos 28 dias de fuga?
MQ: Nós não vemos televisão, portanto não acompanhava por aí. Sabíamos mais por aquilo que a família contava e do que eles viam nos jornais.
RSL: A família pouco sabia dele.
MQ: No meio disto tudo, tivemos uma conferência de pais da filha mais velha do senhor Pedro Dias, em Aveiro. Houve um cuidado muito grande por causa das escutas telefónicas — eles estavam sob escuta — para que não se soubesse que iria haver aquela conferência para definição provisória da custódia, porque a menina estava entregue ao pai, mas ele estava fugido. Conseguimos fazer isso com total recato, sem que ela fosse prejudicada. Depois, um dia, a irmã do senhor Pedro Dias ligou-me. Nós tínhamos um sinal: se fosse preciso alguma coisa, ela ligava-me a perguntar se eu tomava um café. Não é hábito dizer-se isso a um advogado.
Soube logo do que se tratava?
MQ: Era de prever. A situação era: ou ele fugia, ou se entregava, e a informação era que ele se queria entregar.
RSL: E queria entregar-se porque tinha medo que o matassem.
O que lhe disse a irmã de Pedro Dias?
MQ: Que ele se queria entregar. Deixou um bilhete dentro do frigorífico de casa da avó, em Arouca. Terá deixado o bilhete num domingo e dizia que, se conseguisse, chegaria nessa terça-feira.
RSL: Porque ele só podia andar de noite…
MQ: …e demorava não sei quanto tempo a fazer a travessia. Portanto, se não fosse nessa terça-feira, seria no sábado a seguir. E a questão era o perigo que isso acarretava. A irmã não sabia como haveria de fazer. Nós não podíamos ir lá e trazê-lo, porque seríamos de imediato interceptados…
RSL:… e ainda nos imputavam um crime.
Vocês não sabiam se ele estava armado.
RSL: Não sabíamos.
MQ: Nem sabíamos como é que ele estava. Quando uma pessoa que está a monte durante 28 dias e está a ser perseguida, obviamente que as próprias faculdades mentais se podem alterar, portanto era uma situação que teria de ser bem ponderada. A irmã disse que não queria que ele fosse abatido. Eles tinham informação de que ele seria abatido, o Correio da Manhã fez várias manchetes com isso e nós sabíamos que eram essas as instruções.
Da polícia?
MQ: Aquilo que a família me dizia dos contactos que teve com a Polícia Judiciária era que teria de haver muito cuidado, porque efetivamente se ele fosse apanhado… Vamos lá ver, os ânimos estavam absolutamente exaltados, tinham sido mortos militares.
RSL: Era considerado um homem perigosíssimo, portanto não se lhe podia dar hipótese nenhuma de nada.
MQ: Não se sabia como é que ele estava, isto é óbvio. Ele queria entregar-se, mas em segurança. Eu presumi — não tinha dúvida nenhuma — que toda a família estava sob escuta, porque o pressuposto era de que ele iria tentar entrar em contacto com a família e a família, falando comigo, eles ouviam as conversas.
E eles sabiam que vocês eram advogados da família?
MQ: Sim, sabiam que éramos os advogados que estávamos no poder paternal. Eles convenceram-se de que muitas das conversas que tínhamos tinham a ver com o senhor Pedro, mas não, era com a menina, porque houve ali um cuidado muito grande para que ela não fosse entregue à mãe. Não se lembraram disso, mas se calhar, se tirassem a menina de Arouca naquela altura, ele teria aparecido. Nós estávamos com muito receio que viesse qualquer coisa cá para fora.
“Disse ao meu marido que íamos entregar o Pedro Dias. Ias tendo um ataque cardíaco”
Então vai tomar o dito café…
MQ: Ela veio aqui ao escritório e eu disse que iria pensar, que iria falar com o meu marido, mas que estaríamos lá na terça-feira às sete horas. “Se houver alguma coisa em contrário, telefone-me”, disse-lhe. Depois de ela falar comigo, vou a correr para Aveiro, porque tinha lá um julgamento, e em seguida vou para Albergaria, porque tinha lá não sei quantas pessoas à minha espera. Não tive tempo, nem podia falar com ninguém. Quando o meu marido chegou a casa — ele dá aulas de Direito Processual Penal na Universidade Católica do Porto –, disse-lhe que íamos entregar o Pedro Dias. Ias tendo um ataque cardíaco [risos].
RSL: Eu disse: “Vamos entregar como? A quem? Onde? Não pode ser assim”.
Como foi montada a estratégia para a entrega de Pedro Dias?
RSL: Eu disse logo que nos matavam, com um tiro perdido.
Quem vos iria matar? A polícia? Pedro Dias?
RSL: A polícia.
MQ: O Pedro Dias não, eu conhecia-o bem.
RSL: O Pedro Dias não nos iria matar, se éramos advogados dele. A polícia é que podia entrar, disparar para o atingir a ele e depois…
MQ: O meu marido disse que seria um perigo e disse para ligar à Sandra Felgueiras.
RSL: Disse que seria melhor que fosse filmado. A ideia era ser filmado só para nossa segurança e para segurança do Pedro Dias. Se estivessem a filmar durante a entrega, ninguém nos iria dar um tiro.
MQ: Um tiro ao engano, até porque nem sabiam quem lá estava.
RSL: Podiam entrar em casa com violência. Violência gera violência e podia dar uma situação muito complicada. O que na altura pensei foi: se durante o momento da entrega a polícia souber que está a televisão presente, isso vai fazer com que a polícia não entre com violência e foi exatamente isto que se passou.
Nessa altura já tinham decidido levar João Luís Campos, diretor-adjunto do Diário de Coimbra — e porquê Sandra Felgueiras?
MQ: Quando foi a condenação da inspetora Ana Saltão pela Relação, a Dra. Sandra Felgueiras contactou-me e eu fui ao programa Sexta às 9. Foi tudo muito rápido, não podia dizer nada ao telefone. Podia ter telefonado a um inspetor da PJ que conhecesse, dizer-lhe que ia entregar o Pedro Dias e pedir-lhe para ir comigo. Mas não tenho dúvida nenhuma que, no trajeto, ele iria contactar os outros colegas. Ou seja, quando fôssemos a caminho, não era o Pedro Dias que se iria entregar, era a PJ que o tinha apreendido. Nem podia dizer: “Vá ter comigo a Arouca que vou entregar-lhe o Pedro Dias”. Era muito complicado.
RSL: Fomos muito criticados por termos feito assim, mas não me arrependo nada. Foi tudo como previsto, com total segurança.
MQ: Liguei à Dra. Sandra e disse-lhe: “Preciso de falar consigo, não lhe posso dizer o que é”.
RSL: Salvo erro disseste-lhe que o assunto era Pedro Dias.
MQ: “Consegue estar no meu escritório às três da tarde? E tragam cameraman”. Duas horas depois já cá estava. Com o Dr. João Campos, pedi-lhe para dar um salto ao meu escritório e disse-lhe que íamos entregar o Pedro Dias.
Foram todos juntos?
MQ: Veio o Dr. João Luís Campos connosco e a nossa estagiária, a Dra. Renata — que também não sabia de nada, só lhe dissemos no caminho. Depois veio a RTP atrás. Não sabíamos que estávamos a ser filmados. Parámos em Vale de Cambra num café, liguei à Dra. Andreia [irmã de Pedro Dias] e disse: “Está tudo bem?”. “Está tudo bem, Dra.”, respondeu-me. Eu disse qualquer coisa como: “Aquela ação da Maria [filha mais velha de Pedro Dias] sempre é para avançar?”, no sentido de perceber. “É para avançar, Dra”.
Quando chegaram…
MQ: Ela já me tinha dito para parar ao pé da Câmara Municipal e, quando parámos, apareceu uma senhora que nos levou para uma casa. Só já depois de estar lá há uma série de tempo é que percebi que não estávamos na casa da avó do senhor Pedro Dias, mas na casa da vizinha. Eram dois apartamentos contíguos e, como a casa estava vazia e fria, a vizinha que o conhecia de pequeno disse para ficarmos lá à espera. Coitada da senhora, depois até foi constituída arguida, sem culpa nenhuma. Chegámos, disse à Dra. Sandra que não podia filmar as pessoas que lá estavam e só depois na entrega é que poderia filmar. Até se vê as câmaras a entrarem para baixo, achava eu desligadas. Estivemos a falar com ele cerca de uma hora e meia.
Quando chegaram ele já lá estava?
RSL: Sim, tinha já tomado banho, tinha feito a barba.
MQ: Devo dizer que me custou muito. Ele é uma pessoa que conheço, com quem me solidarizei numa luta que travou para ficar com a guarda da filha. O senhor Pedro Dias é uma pessoa civilizada, uma pessoa simpática, com quem se pode conversar. Os pais são pessoas civilizadíssimas, educadíssimas, são pessoas boas, a irmã a mesma coisa. E custou-me ver o sofrimento daqueles pais, da filha. É uma situação que nos toca, sabendo o desgosto imenso das vítimas e da família das vítimas. Custou-nos vê-lo ali naquela situação. A mãe tinha pedido: “Doutora, entregue o meu filho vivo”.
RSL: Estávamos muito focados na entrega com segurança. Não sabíamos como é que ele estava emocionalmente, isso era uma coisa que tínhamos ponderado. A única coisa que pretendemos foi ir lá, a televisão filmar a entrega e acabou.
“Ele não fugiu porque não quis. Esteva perto da fronteira, mas voltou para trás”
Quando conversaram com Pedro Dias…
MQ: Ele contou-nos o que se passou. De resto, o que nos contou é o que vai contar na quinta-feira.
A versão mantém-se?
RSL: Exatamente igual.
MQ: Ele quis-se entregar, podia ter só querido falar connosco e nós estamos obrigado ao sigilo profissional. Perguntámos-lhe inclusivamente se ele queria mesmo entregar-se, se ponderou bem e se sabia o que iria acontecer.
RSL: Disse-lhe que iria ser logo preso.
MQ: Ele disse que se queria entregar porque não suportava viver longe dos filhos. “Podia ter fugido, mas quero entregar-me. Quero explicar”. Ele não fugiu porque não quis.
RSL: Ele esteve perto da fronteira, mas voltou para trás.
MQ: Esteve no Porto. Tentou ir-se entregar, mas não conseguiu. Queria chegar a uma cabine telefónica para nos contactar e tentar entregar-se, mas não conseguiu. Teve a noção exata de que, se se entregasse, o abatiam. Depois telefonei ao Dr. Almeida Rodrigues [diretor da PJ], o telefonema não era para ser filmado.
Mas diz a Almeida Rodrigues que a conversa estava a ser gravada…
MQ: Era para ser gravada, mas não era para ser divulgada. E eu tive o cuidado de lhe dizer.
RSL: Não era para passar num programa. Achámos que seria gravada para salvaguarda e para ele [Almeida Rodrigues] saber.
MQ: Entendi que numa situação dessas não deveria passar por nenhuma chefia intermédia, teria de o contactar diretamente e depois ele é que iria indicar quem iria ao local. Esperámos cerca de 35 minutos que chegasse a polícia. A Sandra Felgueiras estava a ligar para a RTP e não a estavam a pôr em direto. Começámos a ficar com medo porque, entretanto, o Dr. Almeida Rodrigues torna a telefonar e disse que iria mandar pessoas. Eu disse que o Pedro Dias estava desarmado, que estava muita gente e ele disse-me para ficar descansada. E os inspetores que lá foram eram absolutamente impecáveis.
O que aconteceu a seguir?
MQ: Dali fomos para a Guarda, pelo meio do monte, atrás do carro da PJ que o levava. Demorámos 2h30 a chegar e, quando chegámos à entrada da Guarda, os agentes mudaram-no de carro. Fomos para a diretoria e ficámos lá até às seis, sete da manhã a cumprir os trâmites legais. Não me apercebi do mediatismo de toda a situação. Viemos para Coimbra e no dia seguinte tínhamos julgamento às 9h30, quando me começo a aperceber da dimensão do que estava a acontecer. E não estava combinado nenhum Sexta às 9 [programa da RTP dirigido por Sandra Felgueiras].
Não estava combinada a entrevista?
MQ: Não, não estava combinada. A jornalista insistiu muito para que ele desse a entrevista. Nós não queríamos, mas acabou por funcionar bem porque era a única oportunidade que as pessoas tinham para o poder ver.
Mas essa entrevista teria de ser transmitida…
RSL: A entrevista sim, mas não algumas coisas que passaram, como o telefonema com o diretor da PJ.
MQ: E outras imagens em que estávamos à espera da polícia. Houve ali um compasso de espera, porque eles nunca mais vinham. Um dia, à hora de almoço, ouvi que estavam a dar o telefonema para o Dr. Almeida Rodrigues, ia tendo um ataque cardíaco. Entretanto, convidam-nos para ir à RTP [ao programa Sexta às 11, que analisa os temas do Sexta às 9]. Decidimos ir para esclarecer o que se tinha passado, porque estávamos em eleição para a Ordem dos Advogados e houve aproveitamento da lista contrária. Acharam que nos tinham dado um protagonismo muito grande e que não era o nosso objetivo. Eu fiquei estupefacta e ainda tenho dificuldade em perceber todo o mediatismo à volta da entrega.
RSL: A questão da filmagem não foi pela questão do mediatismo, foi apenas pela segurança. Foram momentos de tensão muito grande na RTP.
Como assim?
MQ: Nós fomos à RTP, mas não sabíamos o que ia dar. Íamos explicar o que se tinha passado, que não tinha intenção nenhuma de me gravarem a falar com o Dr. Almeida Rodrigues.
RSL: Estávamos à espera de entrar em direto no Sexta às 11 quando a reportagem dá em direto.
MQ: Uma coisa que era seríssima, em que se pretendeu apenas entregar uma pessoa e que a justiça seguisse o seu curso normal, foi um circo. Havia até alguém a analisar a expressão facial de Pedro Dias para ver se ele estaria ou não a mentir. O que nós pensámos que ia acontecer é que iria ser passada a entrevista e que nós iríamos explicar.
RSL: Os momentos foram muito tensos. Acabámos por ficar, mas com exigências. Já não esteve presente quem iria estar…
MQ: Ia estar o senhor da expressão facial, mas ela depois não arriscou pô-lo. Estávamos nós e um psicólogo.
RSL: Aquilo foi mau, senti-me enganado.
MQ: Nós somos advogados de barra, a vida das pessoas passa-nos pelas mãos. Quando alguém me confia um assunto, faço tudo o que esteja ao meu alcance para, dentro da lei, defender essa pessoa e em circunstância alguma traio a confiança de alguém. Não é esse o nosso perfil de advogado, não é isso que nós fazemos. Quisemos prestar um serviço à justiça, quisemos entregar o homem. O meu marido estava furioso…
Sentiram que as pessoas perceberam que o intuito era entregá-lo em segurança?
RSL: Acho que não. O que passou foi que quisemos aproveitar-nos do mediatismo para cativar publicidade e não foi nada disso.
MQ: Isso aconteceu muito porque houve um momento complicado que foram as eleições da Ordem dos Advogados. Foram eleições muito renhidas e, como nós estávamos em lugar de destaque na lista, a parte contrária começou a achar que se estava a dar demasiada publicidade.
“Somos as únicas pessoas do exterior que contactam com Pedro Dias sem vidro”
Pedro Dias está detido há mais de um ano. Como é o seu dia a dia na prisão?
MQ: No estabelecimento prisional de Monsanto, fechado 22 horas por dia, às vezes 23h.
RSL: Almoça e janta na cela.
MQ: O estabelecimento prisional de Monsanto não tem refeitório.
RSL: Ali não há reabilitação possível.
MQ: E não se pode levar nada: se se quiser levar um livro, não se pode. Os reclusos têm de comprar os livros lá dentro. Um chocolate, um livro, uma televisão, roupa, têm de comprar lá. Compram à cadeia por preços bem caros, é um negócio que o estabelecimento faz.
Se ele está 22 horas na cela, o que faz nas restantes duas?
MQ: Tem meia hora de manhã no pátio e outra meia hora no final do almoço. Todas as vezes põem-nos com pessoas diferentes para não conseguirem sequer falar. E depois podem ir meia hora à biblioteca, acho que duas vezes por semana, e outra meia hora ao ginásio.
RSL: O simples facto de estarmos a falar nisto e de isto sair, vai ter consequências para o senhor Pedro Dias. É imediatamente prejudicado.
E as visitas?
MQ: Ele tem visitas duas vezes por semana, à quarta-feira e ao sábado, penso que são visitas de uma hora. Nós podemos estar o tempo todo: das 9h ao meio dia e depois das 14h às 17h. Somos as únicas pessoas do exterior que contactam com ele sem vidro. As visitas são feitas através de um parlatório, ou seja, através de um cubículo com um vidro no meio.
A família vai visitá-lo?
MQ: Sim, a família e os amigos. As pessoas que eram amigas dele são mesmo amigas. Na Guarda, todos os amigos queriam ir ao julgamento — estavam camionetas organizadas para ir — e nós pedimos para não irem, porque estavam lá as famílias das vítimas e não queríamos que houvesse nenhum tipo de confronto nem de susceptibilidade. Porque ele podia ter uma claque.
RSL: Estamos a falar de um preso preventivo, presumivelmente inocente.
MQ: Ele não devia estar ali.
E porque é que ele está em Monsanto?
RSL: Porque é que os da chamada Máfia de Braga estão em estabelecimentos prisionais normalíssimos…
MQ: …quando até estão acusados de associação criminosa e ele não? Sabe porque é que ele está ali? Porque está acusado de matar militares da GNR. Ele entregou-se, não é perigoso. Quantos homicidas estão [noutras prisões]? O Rei Ghob não está lá, há uma série deles que cometeram homicídios em série — ele está acusado de cinco, três morreram e outros dois por tentativa — e que estão em estabelecimentos prisionais de regime comum.
Não terá a ver com a fuga?
RSL: Não, tem a ver com os militares.
MQ: Estou absolutamente convencida disso. São os chamados crimes de farda. Quando estão envolvidas pessoas dessas, o sistema prisional é mais punitivo. Numa situação normal ele estaria ao pé da família. Foi pai no ano passado outra vez, pode ter uma visita anual de duas horas sem vidro em que, se não me engano, podem ir cinco adultos e as crianças não contam. Ele conheceu o bebé com quatro meses e outro já tem dois anos.
A opinião pública é muito desfavorável ao caso Pedro Dias. São abordados na rua?
RSL: Ainda no outro dia ouvimos “assassinos”.
MQ: No julgamento, já ouvimos “advogados do assassino”, mas não nos dizem na cara. Recebi uns emails anónimos a dizer que devia ser proibido defender assassinos.
E como lidam com isso?
MQ: Nem respondemos. Agora, há pessoas que têm abordagens simpáticas.
RSL: As pessoas que dizem isso, se fosse o filho deles que estivesse no lugar do Pedro Dias, também quereriam que ele estivesse a ser defendido por um advogado. Se eu me colocar no lugar do outro, percebo logo, mas as pessoas ficam de tal maneira ofuscadas com a gravidade dos factos — sobretudo aquilo que vem na comunicação social — que não conseguem raciocinar.
MQ: E eu percebo também que os familiares das vítimas se virem contra nós. Curiosamente, quando vínhamos a sair do tribunal de Trancoso, no debate instrutório, a mãe de Liliane [a mulher assassinada em Aguiar da Beira] vinha a descer as escadas, olhou para mim e disse: “Dra., se foi ele tem de pagar”. E eu disse: “Tem toda a razão, se foi ele tem de pagar”. Por isso é que não se pode fazer justiça pelas próprias mãos. Eu percebo que uma mãe, a quem lhe morre uma filha brutalmente assassinada e que ela não sabe ainda como é que ela morreu — só sabe o que tem vindo a ser veiculado –, tenha uma raiva contra tudo e contra todos, e que não consiga fazer a destrinça entre o agente que está acusado da prática dos factos e os advogados que o estão a defender. Isso não me choca. Assim como se falarem com os pais do senhor Pedro Dias ou com os pais da inspetora Ana Saltão ou com a família do senhor Emanuel Paulino, conseguem também perceber que há o lado de cá. As pessoas têm direito a ser defendidas com seriedade, com dignidade e dentro das normas legais.
“Há crimes que ele não pratica”
E como é que os próprios advogados mantêm a imparcialidade?
MQ: Um ser humano é confrontado com determinadas circunstâncias e não sabemos como reagimos. Eu sei que nunca vou violar, nunca vou roubar, mas há determinadas circunstâncias que efetivamente só estando ali é que se consegue perceber porque é que a pessoa, naquelas concretas circunstâncias e movendo-se com aqueles quadros mentais, reagiu daquela forma. Se me perguntar se eu aceito e se concordo, não aceito e não concordo, critico. Mas consigo perceber e conseguindo perceber porque é que agiu daquela forma, então tem direito a ter essa defesa.
É o caso de Pedro Dias?
RSL: O que nos é pedido é que conheçamos muito bem o caso contado por ele. O que ele nos conta depois tem que ser conjugado com o que está no processo, para não ser contrariado. E se o que ele nos conta se conjuga com o que está no processo, no caso do Pedro Dias…
MQ: Ou de outro qualquer…
RSL: Há casos em que há explicações. Ou seja, eu matei porque isto aconteceu desta maneira. Se isto não tivesse acontecido desta maneira, eu não teria matado com toda a certeza. Não inocenta, mas explica e é por isso que as penas têm um mínimo e um máximo. Se há explicações, nós não temos de estar ali a pedir absolvições.
Portanto acha que no caso do Pedro Dias há…
RSL: Há uma explicação.
MQ: Nós achamos que ele tem de ser condenado por aquilo que fez e absolvido pelo que não fez.
O que é que isso quer dizer?
RSL: Que ele não pode ser condenado pelo que não fez. Há ali crimes que ele não pratica e há ali crimes que ele explica. [O JN avançou esta quarta-feira que Pedro Dias vai negar qualquer envolvimento na morte do casal de Trancoso]
MQ: Que pratica em determinadas circunstâncias, como todas as pessoas.
Diz que há ali crimes que ele não cometeu. Estamos a falar do quê?
RSL: Não lhe posso dizer. Ele é que tem de explicar. Aquilo que lhe digo é: desde a primeira hora que ele nos conta sempre a mesma coisa.
Ele é consistente naquilo que diz?
RSL: É.
Acha que houve inconsistências nas várias testemunhas que foram ouvidas no julgamento?
RSL: Temos que ser objetivos: das várias testemunhas que ouvimos, o que é que tem ali? Tem o guarda Ferreira [militar da GNR alegadamente baleado por Pedro Dias]…
Mas há provas…
MQ: No caso da inspetora Ana Saltão, por exemplo, em termos de avaliação e valoração da prova, as coisas não foram bem feitas. Aqui não é o caso. Podíamos ter ido por aí, porque ficou claro que a prova foi destruída, mas nós entendemos que neste caso não tem relevância.
Aquilo que vamos ouvir na quinta-feira…
MQ: É a versão do senhor Pedro Dias.
E vai fazer a diferença?
RSL/MQ: Tem que fazer.
RSL: Ele é que esteve lá.
Mas vai causar uma dúvida de tal ordem que possa levar o coletivo de juízes a atenuar a pena ou a absolver?
RSL: Depende dos crimes que estão em causa. Ele vai contar o que se passou desde o início. Vai contar a história toda e vai responder às perguntas que lhe vão ser feitas.
As declarações dele poderão inocentá-lo de alguns dos crimes de que de está acusado?
RSL: Sim, sim. Se o tribunal encontrar a consistência que nós encontrámos, acho que sim. E aqueles que praticou, têm uma explicação. Não é de inocentá-lo, mas têm uma explicação.
Há meses que se esperam as declarações de Pedro Dias.
RSL: Ele não falou porque nós não deixámos.
Porquê?
MQ: Porque queríamos que as pessoas ouvissem as testemunhas e se interrogassem.
RSL: E porque estão militares em causa. O processo estava em segredo de justiça e quando ele está em segredo de justiça, não sabemos o que lá está, portanto achámos que seria de uma irresponsabilidade total permitir que o nosso cliente falasse.
Qual é o estado de espírito dele?
MQ: Sereno e triste. É como o tenho visto ao longo do tempo. Encontrámo-lo sempre muito triste com tudo o que aconteceu. Teve momentos com raiva…
Ele até se exaltou durante o julgamento.
MQ: Porque o advogado estava a insultá-lo. Ele já nos tinha dito isso e nós não quisemos levantar problemas. Estão a picá-lo…
RSL: … com comentários.
Ele passou as sessões a tirar apontamentos.
RSL: Ele escreve para nos dar as dicas todas, para nos explicar “este disse isto, mas cuidado que não é isto, é aquilo”.
MQ: É um hábito nosso. Para quem está a ser julgado é muito penoso estar ali sentado e não ter sequer o que fazer às mãos.
Qual é a vossa expectativa em relação ao julgamento, que já está na reta final?
MQ: Que ele fale. Que conte o que quer contar, que isso o pacifique, que pacifique também os pais das vítimas. A nossa expectativa é que seja feita justiça, sabendo que aqui não pode haver uma absolvição total.
RSL: Haverá alguns crimes em que poderá ser assim…
E ele tem essa consciência?
MQ: Tem.