É um dos novos títulos da coleção “Retratos”, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, e pretende demonstrar como o álcool, e a relação com ele estabelecida, teve um papel decisivo na evolução humana. A autoria é de Afonso Cruz, escritor que também é produtor de cerveja artesanal e que tem na obra feita até agora o romance “Jesus Cristo Bebia Cerveja”, originalmente publicado em 2012.
“O macaco bêbedo foi à ópera” é uma curta história do Homem, relatada a partir de um ponto de vista pouco habitual, “do macaco original à criação da cerveja”. Os estímulos biológicos, em particular o dos frutos caídos, a fermentação e respetivos resultados, levaram os macacos a descer das árvores e a saciar a curiosidade. O resto foi evolução.
O Observador faz a pré-publicação de um excerto de “O macaco bêbedo foi à ópera”:
“O macaco bêbedo ainda não foi à ópera, mas irá”
A questão não é meramente cosmológica e há fortes probabilidades de que, por causa do álcool, nos tenhamos erguido sobre duas patas, perdão, pernas, e nos tenhamos tornado estes afamados bípedes sem penas (enfim, nem todos). A teoria foi designada por “macaco bêbedo” (drunken monkey theory) e diz-nos que um dos nossos antepassados desceu das árvores para comer frutos maduros. Como todos sabemos, os frutos maduros são os que caem e não os que se mantêm agarrados à mãe, à árvore. Veremos adiante que esta questão, a da independência, tem substrato para corroborar uma série de atitudes.
A liberdade parece ser, se ponderada e comparada com outras virtudes, mais desejável, ao ponto de fazermos grandes sacrifícios por ela, sacrifícios que talvez não fizéssemos em situações normais. Mas adiante. O açúcar é raro na natureza (podia ser um axioma) e os seres vivos especializaram-se em encontrá-lo. O motivo é simples: açúcar é energia. O macaco que desceu das árvores para comer frutos com mais açúcar passou a ter à sua disposição mais energia. Isso permitiu-lhe ter um órgão hipertrofiado que gasta a maior parte das nossas calorias: o cérebro (as suas dimensões fazem que seja o órgão que mais energia despende, cerca de setenta por cento do total gasto pelo corpo).
Ter mais energia possibilitou então um cérebro mais activo e competente e eficaz e plástico e maior (salientando que nestas questões, tal como acontece noutros casos, o tamanho não é a única coisa que importa — as baleias têm-no maior do que o nosso). O que também acontece e sustenta a teoria do macaco bêbedo é que o fruto caído e demasiado maduro está em processo de fermentação. Cria etanol. E o etanol viaja pelo ar com facilidade e chega ao nariz de quem procura açúcar.
Resumindo: o macaco desce da árvore porque lhe cheira a álcool e isso significa açúcar, energia, calorias, consequentemente um cérebro maior, e muitos milénios depois a possibilidade de ir à ópera: “Desde que o açúcar e as leveduras estejam presentes na fruta, haverá sempre álcool carregado pelo vento como mensagem a indicar a presença de calorias. Plumas de perfume alcoólico levadas pela brisa podem ser usadas por vários tipos de seres vivos, incluindo primatas, para detectarem fruta madura. Assim como as efémeras voam atraídas pelo cheiro quando sentem o álcool, também os vertebrados poderiam usar esta molécula, dada a sua ligação ao açúcar, como indicador de uma fonte de potenciais calorias. E a grande vantagem do álcool em relação às impressões visuais é o facto de se disseminar por grandes distâncias, assinalando frutas maduras a eventuais consumidores longínquos” (Robert Dudley, The Drunken Monkey — Why We Drink and Abuse Alcohol).
O solo passou a ser um lugar mais prometedor em termos calóricos, ainda que mais arriscado. E as consequências dessa atitude foram determinantes para a evolução do ser humano. O chão tinha álcool, o chão tinha energia, e com ela pudemos deixar crescer o cérebro, deixar que se desenvolvesse a par da libertação das mãos, do polegar oponível e da postura erecta. Mas uma mudança igualmente dramática — e que talvez tenha passado despercebida — foi a própria biologia do macaco bêbedo ter criado um mecanismo que haveria de o obrigar a comer sem detença, criando uma pescadinha de rabo na boca darwinista: ingerir álcool provoca fome, o que nos leva a consumir mais, a ter mais fome, a consumir mais.
Mark Forsyth explica este processo com algum humor, em A Short History of Drunkenness. “Nós evoluímos para beber. Há dez milhões de anos, os nossos antepassados desceram das árvores. Porque o fizeram não é absolutamente claro, mas pode muito bem ter sido para procurar deliciosos frutos, já bastante maduros, que poderiam apanhar do chão da floresta. Os frutos caídos pela maturação têm mais açúcar e mais álcool. Então, desenvolvemos narizes capazes de cheirar o álcool à distância. O álcool era um indício que nos faria chegar ao açúcar.
“Isto leva-nos ao que os cientistas chamam efeito aperitivo. O sabor do álcool, o cheiro do álcool, dá-nos vontade de comer. Isto é, se pensarmos nisso, um pouco estranho. O álcool contém bastantes calorias: por que motivo consumir calorias nos faria querer consumir ainda mais?
“As pessoas alegarão que um pouco de gin tónico estimula o sistema digestivo, mas não é verdade. O álcool consumido por via intravenosa provoca o mesmo efeito. Também não é por os bebedores perderem o controlo. O álcool faz disparar no cérebro um tipo particular de neurónios, os FN1, que provocam uma fome terrível. São os mesmos que são accionados quando passamos fome, quando estamos verdadeiramente famintos. Isto fazia perfeito sentido para quem vivia há dez milhões de anos. Escarafunchava o solo, sentindo algumas saudades das copas das árvores, quando de repente lhe chegava um cheiro delicioso: fruta madura. Seguindo o cheiro encontraria um enorme melão ou algo parecido. Seria mais do que comeria de uma só vez, mas ainda assim prosseguia. Armazenava então todas essas calorias como gordura para usar mais tarde, criando assim um círculo vicioso: cada dentada fornece uma certa quantidade de álcool que aumenta a fome, o que leva a que se coma mais, o que nos torna ainda mais esfaimados e, como resultado, quinhentas mil gerações depois, os descendentes actuais, ao regressarem a casa depois de uma ida ao pub, estão mortos por comer um kebab.”
Esta acumulação viciosa de gordura é o primeiro mecanismo biológico da ganância: para suprir momentos de escassez, era importante, quando o açúcar era de facto raro, garantir que essa gordura pudesse ser reconvertida em energia. A maioria dos seres vivos cria reservas semelhantes, mas não com a imoderação e insaciabilidade com que os nossos antepassados o faziam, e que acabou por ser crucial numa orientação do seu desenvolvimento que se manifestaria mais tarde, com a complexidade da evolução, em propriedades emergentes do mecanismo biológico inicial, sem que a procura e acumulação de energia, na sua forma mais básica (acumulação de açúcar/gordura), tenha desaparecido ou esmorecido, como se pode verificar em sociedades como a dos Estados Unidos da América: “A inclusão dos jovens na obesidade epidémica é uma tragédia nacional e um escândalo nacional. As batatas fritas são o vegetal preferido das crianças, que, como os adultos […] consomem muito mais calorias do que deviam. Uma consequência impressionante é que as crianças estão a desenvolver as mesmas doenças crónicas dos adultos” (Kenneth F. Kiple, Uma História Saborosa do Mundo — Dez Milénios de Globalização Alimentar).
Esta pulsão simples foi-se manifestando de múltiplas formas, e o acúmulo de energias como lenha, carvão, petróleo, bem como as eléctricas e nucleares, corresponde, num patamar mais complexo, ao desejo de açúcar (energia); enquanto, por exemplo, prata, ouro, jóias, finanças, propriedade correspondem ao acúmulo de gordura, que a qualquer momento pode ser revertido em energia.
O que este livro sustenta é que a teoria do macaco bêbedo não foi mero caso episódico na longa evolução do símio que haveria de se tornar humano, mas algo que continua presente no desenrolar emergente das consequências do consumo de álcool.
A insaciabilidade desenvolvida para combater a escassez permitiu o acúmulo muito além da simples reserva de segurança: possibilitou aquilo a que chamamos abundância ou riqueza, com todos os efeitos negativos e positivos inerentes, do pensamento abstracto — uma das suas mais belas consequências — à civilização, às bibliotecas, aos celeiros, ao capitalismo, à propriedade, ao trabalho nas suas diversas formas, à arte, à escravidão e à cultura.
A obsessão pela energia e obtenção de bens, da gordura ao petróleo, manteve a insaciabilidade prístina, apenas se multiplicando em variantes do mesmo excesso que resulta da evolução social: os bibliófilos acumulam livros, os gulosos gordura, os ciumentos pessoas, os agiotas dinheiro, os sábios sabedoria, e nenhum deles se sacia. Se este comportamento pode ser mais ou menos inofensivo (ou até virtuoso e exemplar) no que respeita ao crescimento imaterial ou incorpóreo — relativo ao ser —, no que concerne ao ter pode desembocar num círculo vicioso interminável de ganância, de apropriação e violência sobre o outro. Para defender a acumulação material imoderada, necessitamos de polícia, de exércitos e consequentemente da guerra, seja para defender as nossas reservas, seja para conquistar as dos outros.
Os partidos, de qualquer quadrante político, exigem crescimento. A prosperidade, todavia, não depende desse crescimento e parece-me ingénuo querer crescer indefinidamente num mundo de recursos finitos. A primeira consequência óbvia, a destruição da natureza, é apenas fruto desta monomania que é o crescimento. Podemos defini-lo como obesidade financeira, material, já que não se acumula somente em rabos e barrigas proeminentes, mas em todo o espectro social, sem preocupações com uma vida boa, mas apenas com o irresistível anelo de possuir ilimitadamente. O crescimento contínuo é a insaciabilidade do macaco bêbedo. É o efeito aperitivo em forma de vício.
“O macaco bêbedo deixa crescer o rabo”
Os quadris femininos aumentaram porque o cérebro também aumentou. Uma caixa craniana maior exige ancas mais largas e corrobora a expulsão do Éden em que a mulher, a partir daquele momento, foi condenada a dar à luz com dor. Ser mais inteligente tem consequências dolorosas.
Enfim, uma pequena alteração e traça-se um caminho evolutivo com as suas conquistas e derrotas, mas sempre imprevisível. À primeira vista há pouca relação entre o crescimento do cérebro e o do rabo, mas há relações estreitas entre ambos, ainda que ocupem extremidades opostas no corpo. Um não cresceria sem o outro, ambos resultam de o macaco bêbedo descer das árvores e se endireitar. Foi precisamente a posição erecta que fez as nádegas aumentarem com dramatismo, reinventando pelo caminho a própria sexualidade humana. Ou seja, foi o desejo de beber uma cerveja que fez nascer rabos e, segundo Desmond Morris, mamas (lá chegaremos). O rabo é o nosso maior músculo, o tamanho dos glúteos deve a sua hipertrofia à responsabilidade de manter a verticalidade humana, libertando as mãos e permitindo o uso de ferramentas que, por sua vez, são criações de um cérebro também ele agigantado graças à energia dos frutos fermentados.
Essa rotundidade saliente tornou-se também, compreensivelmente, elemento de sensualidade e atracção, e todos sabemos como o erotismo está ligado à imaginação, à ficção, enfim, o corpo do macaco bêbedo passou a ter, todo ele, na sua total extensão, potencial erótico (os machos, neste capítulo, parecem menos desenvolvidos e a sua capacidade para o prazer háptico é menos evidente e mais localizada). O macaco foi ficando pelado e, graças à verticalidade que o rabo garantiu, foi possível começar a usar as mãos para exploração desse mesmo erotismo: o corpo passou a ser algo que pode ser tocado como tantos outros instrumentos que o cérebro imaginou e continua a imaginar, porque desde então nunca mais parámos de pensar em sexo.
Desmond Morris, demasiado deslumbrado pelo apelo do rabo, em mais de um livro salienta o seu papel erógeno, chegando a sugerir que as mamas hemisféricas não passam de uma imitação do traseiro. Quando o coito é praticado frontalmente, cara a cara, o ser humano precisa de um outro incentivo, a memória da retaguarda que antes servia de estímulo. É possível, mas, se os glúteos se tornaram sexualmente apetecíveis, deve-se sobretudo à postura vertical e não a uma tentativa de apelo sexual. Voltaremos a esta questão, mas, por ora, será importante dizer que o homem vertical tem necessariamente de ter um rabo saliente, poderoso.
Muitas vezes as mudanças têm outras consequências, neste caso hedonistas, e a saliência anterior é um caso a considerar. Mas convém lembrar que não nos erguemos porque tínhamos rabos para isso — pelo contrário, desenvolvemos rabos para poder andar de pé, erguer o nariz para melhor cheirar o álcool dos frutos, ter acesso a mais calorias. Cada vez que admirarmos traseiros (ver o capítulo “O andar do bêbedo”), estamos a admirar o sub-produto de uma espécie de macaco que queria encontrar álcool.
Desmond Morris sabe disto, de que essa questão tão humana que é a verticalidade (que conquistámos fisicamente há tanto tempo, faltando-nos apenas a moral) depende do tamanho e da potência dos glúteos, mas afirma-o de passagem, enquanto o erotismo desses mesmos glúteos o inspira a escrever vários pará- grafos em mais de um livro. Em The Naked Woman encontramos este trecho: “Os poderosos e salientes glúteos aumentaram drasticamente o seu tamanho, possibilitando que o corpo se mantivesse permanente e completamente erecto, sendo esses músculos responsáveis pelo par de curvas hemisféricas na base das costas que nós hoje, com ingratidão, achamos risível.”
A manutenção da postura é essencial, mas para Desmond Morris é apenas uma plataforma de acesso a outra função, estética e erótica, que lhe interessa muito mais: “Voltemos à questão inicial da auto-imitação. Se a fêmea da nossa espécie desviasse o interesse do macho para a frente do corpo, a evolução teria alguma coisa que ver com a criação de mais fontes de estimulação na região frontal. Em dada altura do nosso passado, devíamos estar habituados ao acesso por trás. Suponhamos que nessa fase a fêmea utilizasse o traseiro para chamar a atenção do macho, graças a um par de nádegas carnudas, hemisféricas (que não se encontram em nenhum outro primata), e com um par de lábios genitais vermelho-vivos.
Admitamos que o macho criara uma poderosa resposta sexual a esses sinais específicos. Suponhamos que nessa altura a espécie se tornou progressivamente vertical, com tendência para contactos sociais em posição frontal. Em virtude disso, poderíamos esperar que aparecesse um tipo de auto-imitação frontal semelhante ao que se observa na babuína gelada. […] Olhando para as regiões frontais das fêmeas da nossa espécie, encontraremos algumas estruturas que correspondam a uma imitação dos primitivos atractivos sexuais, as nádegas hemisféricas e os lábios vermelhos?”
“A resposta é evidente, à medida que a fêmea floresce. As mamas salientes, hemisféricas, são decerto réplicas das nádegas carnudas, e os lábios vermelhos, bem definidos, em volta da boca, são réplicas dos lábios vulvares. (Lembremo-nos de que, durante a excitação sexual intensa, tanto os lábios da boca como os vulvares se tornam vermelhos e inchados, de modo que ficam ainda mais parecidos, e que passam pelas mesmas alterações durante a excitação sexual.) Se o macho da nossa espécie já se encontrava preparado para responder sexualmente aos atractivos genitais da retaguarda, estava decerto predisposto para a eles reagir se fossem reproduzidos na frente do corpo da fêmea. E parece que foi justamente o que sucedeu, com as fêmeas portadoras de réplicas das nádegas e dos lábios vulvares nos respectivos peitos e bocas. (Imediatamente nos lembramos do uso de batons e sutiãs, mas estes devem ser deixados para mais tarde, quando tratarmos das técnicas sexuais especiais da civilização moderna)” (Desmond Morris, O Macaco Nu).
O mesmo autor, não se contentando com a sua teoria das mamas enquanto rabo do peito, afirma também que o rabo, versão feminina, é uma bossa de camelo: “Relativamente ao tamanho do corpo, são [as nádegas femininas] maiores do que as dos homens, não por serem mais musculadas, mas por terem mais tecido adiposo. Esta gordura adicional tem sido descrita como armazenamento de comida para emergências — como a bossa de um camelo” (Desmond Morris, The Naked Woman).