“Não fiques parado a fingir que não vês / Esta luta é de todos não de dois ou três/ Agora a hora é de lutar”.
Foi o céu que pôs Carlos Libo, 59 anos, de piquete a impedir as máquinas da empresa Savannah Resources de avançar sobre um terreno baldio. “Em dias de chuva e vento as abelhas não trabalham”, explica ao Observador. “Aproveito e estou aqui hoje. Há meio ano que ando andamos nisto”. Por “isto”, Carlos refere-se aos turnos que a população de Covas do Barroso, aldeia em Vila Real, faz há vários meses para impedir que a empresa britânica Savannah Resources galgue o território onde jaz o metal que promete revolucionar a região: o lítio. São dele os versos da canção Hora de Lutar.
A luta dos habitantes da aldeia nortenha contra a exploração de lítio na região chega esta semana ao Festival de Cinema de Cannes, em França, na forma de um filme. A Savana e a Montanha, do realizador Paulo Carneiro, mostra-se pela primeira vez no próximo dia 18 na Quinzena dos Cineastas, uma secção alternativa daquele que é um dos mais importantes festivais de cinema do mundo. A expectativa é que o mediatismo permita “dar mais visibilidade à nossa luta”, diz Carlos. “Isto nem ao diabo lembra.”
O caso remonta há meia dúzia de anos, quando a comunidade de Covas do Barroso descobriu que a empresa britânica Savannah Resources planeava construir uma das maiores minas de lítio a céu aberto da Europa junto às suas casas. Em maio de 2023, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) viabilizou ambientalmente a exploração de lítio no Barroso, concelho de Boticas, emitindo uma Declaração de Impacte Ambiental (DIA) favorável, mas com algumas condições que a Savannah teria de cumprir. Segundo a APA, a mina do Barroso tinha de obedecer “a exigentes requisitos ambientais” e incluir “um pacote de compensações socioeconómicas”.
A população não ficou convencida, o que levou a freguesia de Covas do Barroso a mover um processo judicial contra a Agência Portuguesa do Ambiente e contra o Ministério do Ambiente e Ação Climática, por terem aprovado a respetiva DIA. A mina que a empresa britânica pretende explorar tem uma duração estimada de 17 anos e a área de concessão prevista é de 593 hectares. Em fevereiro, o Ministério Público defendeu que a DIA deveria ser anulada, alegando que o parecer “padece de vício de violação de lei” por vários motivos e que não tem em conta o impacto do projeto nas populações. Um dos aspetos destacados pelo MP é o risco que a ampliação da atividade mineira representa para o Sistema Importante do Património Agrícola Mundial (SIPAM) do Barroso, descaracterizando-o e podendo mesmo levar à sua desclassificação — o que viola os compromissos internacionais que o Estado português assumiu com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) de proteger, apoiar e aumentar a qualidade de vida na região.
[Já saiu o primeiro episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui.]
Enquanto o braço de ferro continua, a luz verde da APA levou a Savannah a reiniciar as atividades de prospeção, mas a comunidade respondeu bloqueando o acesso à terra. Nos últimos meses, aqueles que vivem em Covas do Barroso desdobram-se em turnos, todos os dias, para que nenhum trabalhador da empresa avance sobre o terreno em causa. “A máquina está aqui sempre. Se não estiver ninguém a impedir, têm ordem de avançar para o baldio. Se nós estivermos eles não avançam. Se os deixarmos entrar eles nunca mais param”, conta Carlos Libo. Até o tribunal decidir a quem dá razão, por ali continuam. “O processo está em tribunal. Mas a justiça portuguesa é como as tartarugas. Mas não quebramos. A empresa quer que nós cedamos, mas nós não cedemos”, garante o apicultor, que tem 500 colmeias que estarão em risco caso a mina se concretize. “Eles querem açambarcar 800 hectares de baldio, é mais de metade do que temos. Se eles me dão cabo do baldio, dão-me cabo das abelhas. Vou com elas para onde? Elas têm de ter flores para fazer o néctar. O baldio faz me muita falta. É uma luta, o baldio é indispensável para a região do Barroso”, alerta.
“A luta faz-se nas ruas, A hora é de lutar/ de defender o que é nosso/ e que nos querem roubar/ e não há lei que me obrigue/ a ser fodido e a calar”. A canção Brigada da foice espelha bem a resistência da população. É mais um dos temas que Carlos Libo compôs e escreveu para dar voz aos corpos que enfrentam uma ameaça ao seu modo de vida e ao equilíbrio ambiental do território. Canta Libo em Exploração: “Barroso, Barroso, o povo tem de se ouvir. Querem dar cabo das terras, Barroso, não podemos permitir. Tua terra dá fartura, sustento para o ano inteiro. A alegria de quem vive em Barroso não se compra com dinheiro.”
“Tenho um pouco de jeito, não sou aquele compositor de grande sabedoria, mas faço umas musicas”, admite. No Youtube estão cinco delas. “Refletem aquilo que nós sentimos, que sinto eu e a maioria do povo que é contra isto e que não é tido nem achado. É este desassossego que andamos nisto.”
“Quando é que acaba todo este desassossego. Esta angústia, este medo, esta vida em sobressalto”, escuta-se em A Voz do Povo. “A voz do povo é a vontade de Deus. Cantai: Não passarão”.
Algumas das canções de protesto ouvem-se no novo filme de Paulo Carneiro, que descobriu este inesperado cantautor, motivando-o a escrever e a gravar as canções, quando decidiu filmar o que se passava na região. “O povo tem que se ouvir”, diz Carlos, que também entra no filme. “Não foi preciso representar nada, ele filmou o nosso dia a dia”. E chegou a Cannes.
A terceira longa-metragem do cineasta, que sucede a Bostofrio, où le ciel rejoint la terre (2018) e Via Norte (2022), começou por ser um documentário, um filme feito com os habitantes de Covas do Barroso, que preferem proteção ambiental a promessas de riqueza e empregos. “Neste tom mais documental o que aconteceu é que as pessoas mostravam um lado triste, deprimido, muito para dentro delas. Eu não queria nada disso”, recorda ao Observador. “Não servia porque não mostrava a força deles efetiva”, comenta. “A ficção dá mais justiça à luta e àquilo que as pessoas efetivamente são.”
Acabou por descartar o documentário e envolver a comunidade na escrita de uma ficção que concretizasse aquilo que não conseguiram ainda na realidade: impedir o projeto mineiro. “O filme tenta encenar, inspirado no que se passa em Covas do Barroso, de que forma é que eles se organizam para fazer frente ao inimigo.” Numa encenação de um faroeste, a população mobiliza-se envergando as armas de que dispõe, sejam tratores, enxadas ou cantigas de protesto, contra um inimigo invisível e distante: a empresa britânica e o Governo que concedeu o projeto de exploração.
A longa-metragem em formato western, rodada integralmente em Covas do Barroso, entre 2020 e 2023, acabaria por ser selecionada para a secção Quinzena dos Cineastas do Festival de Cannes, que decorre de 15 a 23 de Maio naquela cidade francesa. É uma vitória para um filme sem financiamento do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), que, de resto, à terceira tentativa de conseguir um apoio para a sua finalização, em 2023, foi atirado para o 92º lugar da tabela. “Ou seja, existem 92 filmes em Portugal de pessoas que filmaram sem apoio à produção melhores do que aquele que está na Quinzena“, ironiza. Paulo Carneiro reclamou junto do ICA e subiu sete lugares, mas não foi o suficiente para receber a verba que poderia chegar aos 40 mil euros.
Sem o financiamento do ICA, foi graças ao apoio da Câmara Municipal de Boticas e da ACAU (Agencia del Cine y Audiovisual del Uruguay), que o filme produzido pela BAM BAM Cinema (de Paulo Carneiro), e pela La Pobladora Cine (de Alex Piperno, Uruguai), chegou a ver a luz do dia.
A Cannes, onde se estreia mundialmente (a chegada às salas de cinema portuguesas só deve acontecer no final do ano), o filme chega com uma missão. “Tenho expectativa que a discussão saia da região, porque nas cidades ninguém sabe o que se está a passar e o que se quer fazer dali. Muita gente não tem noção, não conhece o território”, lamenta Paulo Carneiro. “É importante que esta discussão chegue às cidades e que também vão ficar prejudicados se isto acontecer ali. O Porto não ache que não fica prejudicado se existir uma mina do Barroso”.
“Esta luta é de todos, não de dois ou três”, canta Carlos Libo, e a luta de Savana e a Montanha está plasmada a cada plano. “O cinema escolhe sempre um lado. Por isso é que todo o cinema é político”, torna o realizador.
Será este um filme justiceiro? Hesita. “O cinema não tem a possibilidade de mudar nada. Mas tem a possibilidade de dar voz a quem não tem voz. Através de mim. Através do filme. Se é justiceiro… Não sei.”