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Paulo Carneiro, 33 anos, realizador de "Bostofrio" (2018) e "Via Norte" que se estreia esta semana nos cinemas portugueses
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Paulo Carneiro, 33 anos, realizador de "Bostofrio" (2018) e "Via Norte" que se estreia esta semana nos cinemas portugueses

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Paulo Carneiro, 33 anos, realizador de "Bostofrio" (2018) e "Via Norte" que se estreia esta semana nos cinemas portugueses

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Paulo Carneiro não fez um filme sobre carros, fez um filme sobre emigrantes: "Se o cinema tiver força, podemo-nos servir da palavra"

O autor de "Bostofrio" regressa com "Via Norte", filme-viagem que tem como destino o elogio à emigração portuguesa. Em entrevista, sublinha a vontade de fazer "um cinema que inventa geografias".

“— É hoje?”
“— O quê?”
“— O teu filme”
“— Não, é amanhã”

Numa pastelaria no centro da Pontinha, uma entrevista a Paulo Carneiro revela-se um desafio. O cineasta, nascido e criado nos subúrbios de Lisboa, vai sendo interpelado, com perguntas e respostas a atropelarem-se por parabenizações e sorrisos. Novos e velhos, muitos lhe perguntam onde podem ver Via Norte, o seu novo filme, que se estreou esta quinta-feira, 11 de janeiro. “A sala mais próxima é em Loures”, diz com um amargo de boca, logo elevando o espírito com a notícia que acaba de receber: o filme vai estar em 25 salas de cinema no país. “É incrível para um filme português, são 20 cidades”.

Foi em 2018, depois de alguns anos a trabalhar como assistente de realização, que Paulo Carneiro se afirmou com Bostofrio — où le ciel rejoint la terre, filme de estreia que logo deu que falar. Foi à procura do avô, mas encontrou um país inteiro numa aldeia, revelando um Portugal da ditadura, do medo, da miséria, da fé. A obra foi aclamada pela crítica portuguesa, correu festivais internacionais e criou considerável expectativa para o que viria depois. Surge agora Périphérique Nord (Via Norte), um retrato sobre a emigração portuguesa a partir de conversas com emigrantes portugueses ou luso-descendentes na Suíça. A linguagem mantém-se, tal qual o filme anterior: há um plano fixo aberto e o cineasta conversa com aqueles que filma. Só que o que começa por ser uma conversa sobre a paixão que os une, os carros, logo resvala para uma coleção de gente que fala de outras urgências, como a saudade, o dinheiro, o trabalho, o preconceito. O carro é o ponto de partida para uma discussão sobre simbolismo, identidade e comunidade. Pese embora as imagens de divulgação e o cartaz, “não é um filme sobre carros”, como explica em entrevista ao Observador..

Bostofrio — où le ciel rejoint la terre (2018), a sua primeira longa-metragem, correu festivais, foi bem recebido pela crítica, deu muito que falar. Como se lida com a expectativa ao avançar para um filme seguinte?
Há esta ideia de que quando se faz o primeiro filme há sempre aquele lado mais autobiográfico, de falar da família… Somos um bocado ingénuos. O Bostofrio veio tarde para mim, tinha 28 anos, mas já trabalhava em cinema há algum tempo e havia uma tentativa de maturar uma ideia de cinema, não só da história. Para mim era importante fazer um primeiro filme em que tivesse controlo perfeito da forma cinematográfica. O Bostofrio quando aparece é muito falado também por isso, pela singularidade da forma, da maneira como é filmado, em que apareço no próprio filme. Em relação às expectativas, na altura as pessoas perguntavam-me, porque tinha feito um filme na aldeia, e diz-se sempre que filmar no interior é lindo, há aquela ideia do telúrico, do pitoresco… Então havia já um auto-desafio para este filme de virar a coisa, filmando na cidade, à noite, em ambientes completamente diferentes, mas a trabalhar dentro das mesmas regras. Acho que o Via Norte segue as mesmas regras do Bostofrio em termos de ideia de cinema. Mas não vale a pena ter grandes expectativas, porque o cinema é tão efémero… Hoje as pessoas lembram-se de nós, fizemos um filme que lhes agradou, amanhã fazemos um filme que não lhes agradou e já foi. A arte é assim.

O Bostofrio partiu de urgência muito pessoal. Numa cena do filme deixa a declaração de intenções clara, subindo a palco e dizendo: “Estou aqui porque estamos a fazer um filme em que o objetivo é eu conhecer o meu avô porque o meu pai é filho de pai incógnito. Estou aqui para perguntar se alguém conhece o meu avô”. Em Via Norte a declaração de intenções é menos clara. O que diria, se tivesse de fazer esse mesmo exercício e subir a palco?
Apesar de o filme ser muito freestyle, muito livre na forma como abordo as pessoas, os meus filmes são todos muito escritos. Ou seja, existe efetivamente uma nota de intenções de realização. Este filme vem do imaginário de criança na aldeia, tanto em Bostofrio como na aldeia da minha mãe, na Beira Baixa, interior de Portugal, em que via os emigrantes a chegarem com grandes carros. Enquanto criança, para mim, o carro era uma coisa muito criticada. Para quem tinha ficado era uma espécie de frustração, de certa maneira mostrava a coragem daqueles que se foram. O carro é o objeto que de certa maneira representa o sucesso. Estas pessoas vinham com grandes carros e eu que era pequeno gostava de ver, até porque via modelos que não havia em Portugal. O que procuro com este filme é legitimar essa valorização do carro e esta ideia de que cada um gosta do que gosta. Gosto de livros e de cinema e gosto de carros e de futebol. E então? Mas há sempre este preconceito de que as pessoas devem estar divididas. Quando comecei a pensar em fazer este filme a ideia foi sempre de fazer um filme que não só legitimasse esta ideia como de certa forma desse um lado heroico à emigração. Porque é muito difícil estar fora. Estive só sete ou oito meses na Suíça no contexto de fazer este filme, mas tenho amigos que foram para fora e é muito difícil. Muitos dos emigrantes que foram, foram sem estudos. Este é um filme que não fala desta geração dos anos 50, 60, 70, e posterior 25 de abril, 80, mas também fala. Há um realizador português que é o José Vieira que é o chamado realizador da emigração, e que vive em França. Somos amigos e ele uma vez disse-me uma coisa que assino por baixo, que é: o sentimento é sempre igual. Aquilo que sente quem está fora é sempre igual, seja um emigrante do norte da África seja um emigrante da América do Sul, esta questão de identidade, de estar no limbo de não pertencer a lado nenhum. É para todos mais ou menos a mesma coisa.

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Paulo Carneiro filma emigrantes e luso-descendentes na Suíça com uma paixão comum: os carros. O que descobre é que "os carros são o reflexo do seu dono, refletem a sua personalidade"

Neste caso, o carro é apenas um veículo para falar de uma série de coisas.
Claro. O filme não é sobre carros, isso é uma mentira. O carro existe como ponto de partida para falar de outras coisas. É esse o cinema que me interessa, que se foca sobre uma coisa mais pequena para universalizar. Para fazer uma história de amor não se vai falar de um casal de namorados, tem de se falar de outra coisa. Esse é o cinema que nos faz pensar.

Não sendo sobre carros, uma das surpresas do filme é perceber como estes são o reflexo da personalidade de quem os conduz, sem nunca resvalar para a caricatura.
Nem pode ser.

Um dos protagonistas têm vários exemplares do Volkswagen Polo G40, outro diz que lava o carro duas a três vezes por semana só porque sim. Houve alguma histórica com particular graça que não acabou no filme?
Graça não, porque vou com o chip de fazer um elogio a esta gente, nunca vou com o chip de achar graça.

Nem quando há um carro cor-de-laranja elétrico com o logótipo enorme da Fanta?
[risos] Pronto, ia falar disso. Nessa conversa com o Nelson [dono do carro] há uma parte, que até aparece no filme, em que lhe pergunto: “mas porquê Fanta?”. E ele diz: “fresquinho, calor, verão”. Ou seja, calor, verão, fresquinho… Portugal. Ou seja, é mesmo isso, os carros são um reflexo não só dessas pessoas, mas dos sentimentos. Não só características físicas, mas também acho que há isso. Quem for mais rebelde vai ter o carro mais de uma maneira, isso nota-se no filme. O casal, a Eunice e o Bruno, que têm um Lamborghini, veste-se de uma maneira mais formal. Há um realizador finlandês que vive seis meses em Portugal e seis meses na Finlândia que é o [Aki] Kaurismaki que diz que os carros contemporâneos não têm personalidade e que os carros são o reflexo do seu dono, refletem a personalidade do seu dono. O [Toyota] Celica é o meu carro. É mesmo o meu carro. Acho que o Celica reflete um bocado aquilo que eu sou. Agora desconstróis isso como quiseres.

Entre as histórias retratadas em "Via Norte" está a de um emigrante (à esquerda) que tem vários exemplares de um Volkswagen Golf G40.

No filme há um grande contraste entre a potência das viaturas e até a força visual que estas imprimem nas imagens e a fragilidade de algumas histórias e relatos. Isso foi visível logo nas primeiras conversas?
Eu procurava isso. O filme é trabalhado cronologicamente. A maior parte das conversas são montadas na cronologia em que foram filmadas. A minha cabeça está a mudar conforme a conversa anterior, por isso é que o filme tem uma evolução narrativa, porque há esse jogo.

No discurso rapidamente se ultrapassa o universo geek das especificidades do carro…
É, hoje até mandei uma piada sobre isto ser um filme com carros, mas que uma pessoa que goste de bicicletas pode ir ver e pode encontrar uma relação. É um tema sensível e ao qual também sou sensível, a emigração. Ouvi tantas histórias, há tanta coisa off the record que as pessoas quiseram contar e não quiseram que aparecesse no filme… Mas sempre senti que eles eram todos uns sensíveis. Para aceitar entrar num filme é preciso ter alguma sensibilidade. Mesmo aqueles que mostravam uma maior dureza, com o andamento da conversa e com os temas. Isso fez com que o filme fosse tomando esse lado e tentando criar essa empatia.

"Não vale a pena ter grandes expectativas, porque o cinema é tão efémero... Hoje as pessoas lembram-se de nós, fizemos um filme que lhes agradou, amanhã fazemos um filme que não lhes agradou e já foi. A arte é assim"

É fácil fazê-lo enquanto realizador, encontrar essa sensibilidade?
Não sei se é fácil, mas é natural. E é natural porque também é um posicionamento. Agora se fosse um crítico de cinema dizia ‘ah, porque há um olhar ao mesmo nível’. Talvez seja isso. Venho de uma família de pessoas humildes e que migraram dentro do próprio país. Para mim é uma coisa de valores. A partir do momento em que se respeita a personagem e que não nos sentimos acima dela… Apesar de estar numa posição de poder porque tenho uma câmara. O jogo do filme é um bocado esse: também me meto perante a câmara, também digo estupidez, mando calinadas, engano-me a dizer coisas. Estou também numa posição de fragilidade. Auto-imponho essa posição de fragilidade porque quem sou eu e que direito tenho de apontar uma câmara e ficar atrás dela escondido e protegido na ideia de criar uma carreira? Porque é isso, não é?

O quê?
O cinema. As pessoas fazem filmes a pensar como é que vão fazer o segundo. Aqui não, fiz um filme porque efetivamente queria fazer uma elegia a estas pessoas e faço filmes porque gosto das pessoas que estou a filmar. E se gosto das pessoas que estou a filmar, não tenho o direito de estar escondido atrás de uma câmara, de resguardar a minha personalidade enquanto artista e submeter os outros à fragilidade que é estar diante de uma câmara. Porque estar diante de uma câmara é estar diante de uma arma, não é? Acho que o [realizador Jean-Luc] Godard é que dizia essa tanga. É isso um bocado que dirige a minha maneira de fazer filmes. Tenho algumas regras e uma delas é essa. Se estamos a tentar explorar um discurso mais frágil, mais humano, temos de tentar minimizar a posição de poder. Neste caso ponho-me diante da câmara e também cometo erros, falo mal, digo coisas erradas em português.

Na montagem não há a tentação de as retirar?
Pode pode haver, mas trabalho com outras pessoas. O mais difícil na montagem é depois lidar com a nossa própria imagem, a forma como falamos. Vamos percebendo umas coisas, mas depois é o filme que dita. É importante manter essa empatia e manter a força nas personagens. A questão de não haver caricatura, isso para mim e para a equipa sempre foi um assunto, mas com naturalidade passou a ser um não-assunto. Seria se efetivamente eu tivesse um olhar de cima sobre estas pessoas e acho que não tenho. Ou acredito que não tenho, depois o espectador é que vai avaliar.

Na Pontinha, onde viveu desde sempre, Paulo Carneiro é interpelado diversas vezes ao longo da entrevista por quem o reconhece

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Para grande parte dos documentários é essencial ganhar a confiança dos sujeitos que se está a filmar. Se em Bostofrio se sentia muita relutância das personagens em falar sobre determinados assunto, em Via Norte verifica-se o oposto, há uma entrega e disponibilidade imediata. Algumas pessoas parecem ter estado só à espera que alguém lhes perguntasse alguma coisa, lhes desse um minuto de atenção. Penso, por exemplo, no homem que tem os filhos e a mulher em Portugal e que relata a discriminação que sente enquanto português. Como foi diferente a abordagem de um filme para o outro?
São meios muito diferentes. Ter um carro…

Foi um desbloqueador, colocou-o dentro da comunidade.
Claro. Fui de carro [para a Suíça], isso aconteceu. Todos queremos pertencer a grupos. Muitos deles têm carros para pertencer a um grupo, que ajuda à integração naquela sociedade, o que é difícil. Os suíços são muito difíceis, vivi lá. Aliás, o filme não teve estreia comercial na Suíça, o que é incrível. O filme estreou-se comercialmente na Argentina e no Uruguai. Nós portugueses temos a capacidade de olhar para nós próprios e de fazer autocrítica, mas sinto que o povo suíço ainda tem alguma relutância em relação a isso.

Mas houve uma tentativa para que estreasse na Suíça?
Sim, sim, tentámos. “Ah, o filme não faz espectadores”, “ah, a comunidade não é assim tão grande”. Mentira. Enfim, efetivamente estas pessoas querem falar, foi fácil ganhar a confiança porque foi completamente natural. Disse logo ao que ia, o que é que ia fazer. Disse-lhes que queria fazer uma elegia à emigração, que achava que emigrar era um ato de coragem, que gostava de carros e, talvez tenha exagerado um bocado, mas disse-lhes muito convencido que queria fazer um grande filme.

O cineasta viajou 2000 km em direção a Norte para fazer um retrato da emigração portuguesa. "O carro é mesmo só um veículo para depois falar sobre uma série de coisas", explica

Porque escolheu filmar na Suíça?
A Suíça foi um facilitismo de produção. O filme era para ser em França, concorri a apoios em Portugal e não ganhei. Não me estou a desculpar com isso, não ganhei e não tentei mais. Escrevi o filme para mim. Não sou intocável, ninguém é intocável, todos temos os nossos erros. Não se ganha, não se tem acesso a subsídio e a culpa é do ICA? Não é nada disso. Não ganhei apoio para fazer o filme, quis fazer na mesma. Tinha feito o Bostofrio, inscrevi-me na escola de cinema porque era a única escola que me dava a possibilidade de fazer um filme. O filme foi feito com um financiamento da escola para uma curta-metragem, depois fui para a Suíça porque tive uma bolsa da [Fundação Calouste] Gulbenkian e foi meio um esquema para conseguir fazer o filme. Foi [na Suíça] por isso, por questões de produção.

Foi um financiamento na base do “desenrasca”, portanto.
Bem, nem imaginam, tivemos coisas de estarmos a dormir três pessoas no mesmo quarto… Como já trabalho há algum tempo é sempre mais ou menos o mesmo grupo de pessoas. Somos poucos. São rodagens sempre de três ou quatro pessoas. O diretor de som é um amigo e também é o maior desenrascado. Ia fazer um outro filme grande com um grande financiamento e tinha os microfones e disse-lhes que queria testar os microfones antes. Ligou-me já estava eu na Suíça para aí há uma semana, e disse-me “tenho os microfones, prepara lá isso, vamos arrancar”. É difícil se calhar perceber em termos técnicos, mas a forma como o filme foi rodado… O som é absolutamente incrível. Há ali microfones de lapela que custam 5 mil euros. É impossível ter aquilo com alugueres. Não vou entrar em detalhes, mas o filme tem um monte de esquemas para conseguirmos que se veja o filme e não se sinta pobreza. Acho que o filme não tem pobreza visual ou sonora. Foi muito bem misturado também, num estúdio incrível em Portugal, tudo na tanga, à noite, ao fim-de-semana [risos]. Agora felizmente tenho um outro filme pronto para estrear, primeiro para os festivais e depois cinemas.

Nha Terra Nha Força, filmado em Cabo Verde?
Não, é o A Savana e a Montanha. É um filme de cowboys. O filme de Cabo Verde é um filme de detetives, é outra coisa. É um bocado jogar com esta ideia: para uns filmes conseguimos financiamento, para outros não. No início há dificuldades. Também sou da periferia, os meus conhecimentos estão aqui, nunca tive muita a coisa de ter influência de pessoas do cinema… Fui descobrindo o meu caminho sozinho aos bocados.

É essa a regra no cinema português?
Claro que não. Quantos realizadores do subúrbio com pais com a quarta classe conhece? Nenhum. Mas não é desculpa nenhuma. Acho que que essa também é a força dos meus filmes.

Como é que alguém da periferia sem os tais “conhecimentos” acaba numa oficina na Suíça com um português especialista em tuning?
Na periferia, “n” gajos quitam carros. Fui para a Suíça lá com essa bolsa para estudar, tinha de fazer uma curta, depois eles gostaram muito do filme já queriam que o filme estreasse e eu disse: não, este é o meu filme, os direitos tenho eu, disse sempre desde o início que íamos fazer uma longa metragem que vai estrear no cinema. Disse sempre isso a toda a gente e o pessoal achava: este gajo é maluco. Estava convencido. Já tinha feito o filme anterior…

"O jogo do filme é um bocado esse: também me meto perante a câmara, digo estupidezes, mando calinadas, engano-me a dizer coisas. Auto-imponho essa posição de fragilidade porque quem sou eu e que direito tenho de apontar uma câmara e ficar atrás dela escondido e protegido na ideia de criar uma carreira?"

Como encontrou as pessoas que queria filmar?
Foi tudo muito rápido. Começámos a rodar dez dias depois de chegar à Suíça. Nunca tinha ido à Suíça. Mas o Ricardo diz-me essa coisa [dos microfones] e como para mim o som é muito mais importante do que a imagem, foi só arranjar um gajo que soubesse filmar.

No cinema o som é muito mais importante do que a imagem?
Sim, sim, muito mais. Se eu tiver uma câmara de merda com uma imagem de merda e o som for muito bom ninguém sai da sala. Se eu tiver uma câmara com 8K e o som for “rrrrr”, vento, muito mau, saem muito rápido, pode ter a certeza. O som é muito mais importante. Depois foi muito rápido, grupos de Facebook, amigos de amigos, encontrar carros na rua, deixar bilhetes para eles me contactarem. Foi tudo assim. É fácil perceber qual é que é o carro do português, há o cachecol de um clube de futebol, uma nossa senhora de Fátima… Foi assim que conheci as pessoas e a rodagem também foi muito rápida. Uma coisa que é importante e de que se fala muito pouco é que o cinema que tenho estado a fazer — são quatro filmes, mas só dois é que já se estrearam — é um cinema que inventa geografias que não existem. O filme não é todo filmado na Suíça, isso é mentira.

Percebi que a última cena é aqui na Pontinha.
Sim, mas há mais. Há no Porto também e há noutros sítios. É um cinema que inventa geografias. Mesmo os gajos lá acham que aquilo é tudo em Genéve. É mentira, são várias cidades na Suíça, também na França, o Porto, a Pontinha, o centro de Lisboa.

Mas quem vemos são de facto emigrantes ou luso-descendentes na Suíça?
Mais ou menos [sorri]. Lá está, o Godard diz que todo o grande documentário tende à ficção e toda a grande ficção tende ao documentário. É um bocado isso. Quando dizem: o filme é um documentário… Mais ou menos. É um bocado essa a magia.

"Quantos realizadores do subúrbio com pais com a quarta classe conhece? Nenhum. Mas não é desculpa nenhuma. Acho que que essa também é a força dos meus filmes"

Sobre essa fronteira entre realidade e ficção, li uma entrevista em que dizia: “Ficava muito fascinado com os carros que os emigrantes traziam a Portugal [nas férias de verão] e já se falava de mitos que algumas pessoas alugavam carros para voltar a Portugal e para mostrar que tinham sucesso” [Agência Lusa]. Ao ver este filme essas histórias permanecem como mitos. Conta-se a história de um português que vendeu tudo para ter um Ferrari e que dormia e comia no carro, mas é, uma vez mais, a história que alguém ouviu dizer, não conhecemos essas figuras. As que o filme nos dás a conhecer são muito menos excêntricas e mais reais, de certa forma.
A partir do momento que se põe uma câmara a pessoa já não é a mesma pessoa, é outra pessoa, é a pessoa que está ali a fazer o filme comigo. Eu acho que eles são excêntricos. Só que… Apesar de tudo, quando se mete uma câmara, acabou-se. É outra coisa. Até tenho um filme mais antigo, que já estou a filmar para aí há 10 anos, que fala sobre isso. Temos um poder, que neste caso é o poder da presença diante da câmara, e passamos a ser outra pessoa.

Há sempre um lado performativo.
Exatamente. Há ali muitas histórias que não não quiseram contar no filme, mas que me contaram. Aquelas pessoas que estão ali são os carinhosos, os empáticos, os sensíveis. Mas há ali vidas muito duras.

Este filme acontece em garagens de estacionamento, bombas de combustível, na estrada e quase sempre à noite. O ambiente é muito diferente do último filme, que é muito luminoso e passado quase sempre no exterior. Que desafios é que isso colocou ao nível da produção?
O filme não é à noite só porque à noite é pop ou fixe. Até porque sou muito clássico. O filme é à noite por causa do trabalho. O cinema de emigração quase todo se foca no trabalho, a vida dura destas pessoas. Mostro isso não mostrando. Como é que faço? Com o carro, que é o objeto, o investimento, e filmo à noite, que é quando estas pessoas têm o tempo disponível para falar comigo. Não é à noite só porque à noite é cool. É porque, efetivamente, é quando eles tinham tempo, depois do trabalho. Para se ver o trabalho. É um layer. Há pessoas que entram nisso, há outras pessoas que não. É uma coisa que é importante no cinema, cada vez que vemos um filme podermos descodificar novas coisas. Se perguntar se foi difícil filmar à noite, tecnicamente… Tínhamos uma câmara de merda, Full HD, lentes analógicas. A única coisa era procurar sítios já iluminados, que fizessem sentido. E posição de câmara, ter uma lente com uma boa abertura. Mas no nosso material nada era extraordinário. O material de som, esse sim, era extraordinário. Tínhamos poucas luzes, um projetor que é tipo um LED, e depois era aproveitar um bocado a luz do espaço, a própria luz dos carros. O filme foi muito feito assim. Também escolhi sítios que tivessem uma iluminação que já fosse interessante desde o princípio. Muito improvisado, porque às vezes chegávamos aos sítios e já tínhamos visto o sítio, mas depois no dia a seguir a luz já não era a mesma. Apesar daquilo que estou a dizer, [o filme] é muito cuidado e pensado. Não é chegar e filmar,  porque eu também não acredito nisso. Não chego, meto a câmara, carrego no REC e começo a filmar. Não é assim.

Quando é que percebe que é a altura de começar a filmar?
Primeiro é definir o enquadramento. Depois, como este é um filme que busca uma empatia muito grande com as personagens, já ia falando com as pessoas, mesmo fora do quadro, porque também existo dentro do filme para criar esta encenação, esta mise en scène para as pessoas se deslocarem. O plano é fixo e nós próprios estamo-nos a movimentar para criar uma dinâmica. Tentava perceber quais eram os limites do quadro, começava a falar com eles, sem os protagonistas perceberem fazia um sinal à nossa diretora de fotografia e ela começava a filmar. Quando me perguntavam quando é que começava a filmar eu dizia: já está. Aconteceu assim várias vezes. E as pessoas sentiam-se à vontade. É uma estratégia. Mas demorava, porque demora a fazer um bom enquadramento, há coisas para pôr, projetor, microfones. Estávamos ali sempre na conversa. Tudo uma coisa muito documental. Mas o momento de escolher o sítio da câmara é importante, porque o cinema não é o tema, não é as histórias que contam, é saber o lugar onde se vai meter a câmara. Aí é que se vê: ou há cinema ou não há cinema. Isso é que é difícil.

Com dois filmes estreados, o cineasta tem mais dois a caminho: "Nha Terra Nha Força", filmado na Ilha do Fogo, em Cabo Verde, e "A Savana e a Montanha", rodado em Covas do Barroso, em Trás-os-Montes

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Sobre a abordagem cinematográfica de se colocar em cena, o que é que isso implica ao nível da perda do controlo da imagem, enquanto cineasta? Porque não está propriamente a ver o que se passa no ecrã.
Para mim o enquadramento é super importante. A partir do momento que defino o enquadramento sei mais ou menos os meus limites. Há uma linguagem que já é natural, que vou tendo principalmente com o Ricardo Leal, diretor de som com quem trabalho em todos os meus filmes. Não sinto que estou a perder o controlo porque o meu controlo está no enquadramento. Sou um realizador de enquadramento. Também acredito que plano fixo nada tem a ver com dinâmica. A dinâmica é definida pela montagem. Se aquilo que se está a passar em frente da câmara é interessante, se aquilo que está a ser dito é interessante, se o som é bom, não importa se o plano está fixo, se não se aproxima. Pode-se ter empatia com as pessoas e estar próximo através do som. É isso que este filme propõe. Propõe uma mise-en-scène, uma espécie de coreografia dentro do quadro para criar essa dinâmica. É o som que nos aproxima daquelas pessoas porque a câmara nunca fecha o quadro. A minha proposta é trazer essa ideia de proximidade com os personagens através do som e não através de imagem, que é o que normalmente costuma acontecer quando se fecha [o plano] num rosto, por exemplo. Não queria isso. Também para não ser muito invasivo para as pessoas.

Recuperando a ideia de cinema como arma, há uns anos numa entrevista, o João Salaviza dizia assim: “o cinema tem esta coisa incrível que é podermos ir para um lugar sem as coisas ficarem envenenadas pela condição de turista porque temos um ofício” [Público, 2018]. Gostava de lhe perguntar como é que observa o seu papel no espaço das comunidades em que filma. Se acha que é o ofício que também o iliba de ficar nesta posição de turista, à margem.
A última cena do filme deixa isso muito claro e sublinhado. Diz: eu estou aqui, eu também sou. Também sou um gajo que gosta de carros e não tem mal nenhum nisso. Agora, pode haver esta ideia, de um olhar antropológico. Duvido. É difícil. Quando se olhas as pessoas ao mesmo nível, é difícil que isso aconteça.

Pensa no impacto que o filme pode ter para quem está a filmar?
Como nunca há uma má uma intenção, de denegrir a imagem do outro, não me preocupa muito. Talvez noutros filmes, sim, nos próximos (sorri).

Isso lembra-me um diálogo em Bostofrio, logo ao princípio, que tem com uma senhora sobre o quanto se importam um com o outro.
A Casimira é lixada [risos].

Ela diz que não se importa com o que o Paulo quer, e responde-lhe que, por sua vez, se importa com ela. É então que ela diz: “Importas-te para ganhar dinheiro. Andas a filmar e depois ganhas dinheiro”.
Exato [sorri]. Ela está a gozar comigo, a seguir está a dizer “Olha aí, Paulo, cuidado, não molhes os pés”. A Casimira é… Quando o meu pai passava fome, ela é que lhe dava pão. Estou logo ilibado na continuação da cena, quando ela mostra preocupação comigo. Está a gozar comigo. Acho que estou ilibado a partir do momento em que o objetivo é fazer um elogio ao lugar. Também por isso é que chamei Bostofrio ao filme, para tentar ter um impacto na região e infelizmente acabou por ter.

“Bostofrio, ou le Ciel Rejoint la Terre” (2018), filme de estreia de Paulo Carneiro, foi rodado na aldeia transmontana de Bostofrio, de onde o pai do realizador é originário

Com a A Savana e a Montanha — que conta a história da luta da população de Covas do Barroso contra a implementação de uma mina de lítio — também espera fazer o mesmo?
Sim, mas nesse filme é um bocado difícil, porque é uma empresa que quer fazer uma mina ali na aldeia. Vamos ter problemas judiciais, mas que se lixe, estou com o povo, o meu pai é dali.

Estreia este ano?
Sim, o objetivo é estrear nos cinemas no segundo semestre e não ter uma janela de espera tão grande, até porque o tema é super atual. É uma coboiada em Trás-os-Montes contra aquela que eles dizem vir a ser a maior mina de lítio da Europa. Numa região que é património mundial agrícola pelas Nações Unidas. É um filme que acompanha a luta das pessoas dali de Covas do Barroso contra a instalação de uma empresa de mineração multinacional.

Dada a atualidade, é inevitável não pensar, ou desejar, um impacto no desfecho?
Sim, estou sempre a pensar nisso. Para mim, quanto mais se falar melhor, até porque estou a tentar dar visibilidade ao que se passa ali porque ainda é um assunto muito pouco conhecido nas cidades. Diga-se o que se disser, o poder central, o lugar das decisões, é nas grandes cidades. É aí que tem de chegar a voz daquelas pessoas. Apesar das manifestações, acho que um filme pode ter o poder de conseguir chamar mais a atenção para aquele lugar. É uma coisa fixe que o cinema nos dá. Se o cinema tiver força, podemo-nos servir da palavra para atingir. São balas. Temos voz. Nesta entrevista, posso usar o meu poder, o poder da minha voz, como individual, mas como artista, para tocar em pontos que outras pessoas que têm outros ofícios não têm. Para mim, isso é importante enquanto cineasta, ter essa possibilidade. Agora, A Savana e a Montanha é um filme, é um filme-arma, mas não chega. O objetivo é conseguir fazer um cinema que interesse às pessoas, àquelas pessoas que filmamos, mas que tenha um olhar próprio e que assim se destaque. Fazer uma coisa que seja que só sirva como arma, a mim não me interessa muito.

Artisticamente?
Sim, porque é importante ter esse lado artístico. Não me interessam filmes que durem um ano. Já é tão efémero esta importância que temos no trabalho… Gostava que os meus filmes pudessem ser vistos daqui a 20 anos, pensando num arco quase arquivista. Bostofrio é uma aldeia que não vai morrer porque Bostofrio foi filmado. Se existe um olhar e se esse olhar tem a capacidade de resistir ao tempo? Isso é o que vamos ver.

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