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Portugal é um festival e, este ano em particular, não faltam temas: da TAP à crise na habitação, das greves dos transportes às manifs dos professores, dos abusos na igreja aos casos e casinhos no governo, dos Leopard avariados aos ovos e legumes ao preço de metais raros preciosos.
Neste país onde quase nada funciona, não surpreende, portanto, que uma falha da empresa de telecomunicações responsável tenha impossibilitado a votação num dos semifinalistas, assim automaticamente apurado para a final e aumentando para o eloquente 13 o número das sortes a concurso.
E assim, eis-nos chegados a mais uma final do Festival RTP da Canção, era da ressurreição segundo Nuno Galopim. E, portanto, também a este duro exercício de ficar no sofá a mandar palpites, enquanto outros têm a audácia bela de pôr em palco o seu talento e o seu coração.
21h07: À hora marcada, os Jesus Quisto vêm de “Pôr-do-Sol” instalar o festival deste ano. Há aparições especiais de Serenella Andrade, Júlio Isidro, Lenka e acaba tudo em palco num épico acompanhado pelo Coro de Santo Amaro de Oeiras. É o mote que dá o tom para tudo o que se passará a seguir: muito mais do que uma “gala” armada ao pretenso glamour, um encontro boa onda de músicos, TV e público.
“Nasci Maria”
Cláudia Pascoal
Num estilo que tem feito escola na Eurovisão, tudo começa bastante calmo e inocente, qual lobo disfarçado de avozinha, para, de repente, artista e bailarinos atacarem o operador de câmara e fazer-nos dar uma cabeçada no bibelot que em má hora pusemos atrás do sofá. Para quem, como nós, conhece Cláudia Pascoal de “O Jardim” e daquele infeliz, porém, didático último lugar na Eurovisão de 2018, ela surge agora como um Gremlin que alguém esqueceu à chuva: consideravelmente mais zangada. “Nasci Maria” fala da condição feminina e do que se espera ou exige de uma mulher, mal ela nasce, com ecos de um folclore português a que não falta, às tantas, um sample de “Oliveirinha da Serra”. A paleta de cores Stabilo Boss dos figurinos sublinha aqui uma canção bem intencionada, mas que, rapidamente, se esgota num loop, não particularmente hipnótico, de um refrão repetido até à náusea.
“Encruzilhada”
Churky
Continuando na temática dos bonecos aparentemente inofensivos, mas que, na verdade, escondiam o demo, chega-nos Churky, ligeiramente diferente de Chucky, o Boneco Diabólico, mas não necessariamente menos assustador. Depende da clientela. A nós, por exemplo, assusta bastante que alguém comece um poema com um verso da originalidade de um “Na encruzilhada da vida”. Churky diz que quer “encontrar alguém” e pergunta “De que vale a minha espera se ninguém esperar por mim / De que vale a Primavera se eu não tiver um jardim?”, e nós respondemos que, ao preço a que está o metro quadrado e com a subida da Euribor, se ele tiver um T2 com marquise, já é um partidaço. Não recomendaríamos esta música a um em cada dez amigos, mas tem um trompete. E um trompete é uma coisa que daria dignidade ao “Cá em cima está o Tiro Liro Liro”.
“Sapatos de cimento”
Esse Povo
A tal em que ninguém pôde votar na meia-final. Depois de uma canção sobre o problema do imobiliário, uma dedicada ao fisco: “Nada, eu não devo nada a ninguém”, cantam repetidamente os Esse Povo, liderados por Quim Albergaria, figura dos Bateu Matou, Paus e tantas coisas boas, que é também o autor da praga eficaz “Quem trouxe, quem trouxe, foi o Pingo Doce” e que aqui volta a mostrar a extraordinária e cada vez mais rara circunstância de ser um indivíduo talentoso que não se leva muito a sério. “Sapatos de Cimento” é a chamada canção festivaleira, único subgénero musical que pede, por nenhuma razão evidente, conjuntos de rapazes e raparigas a cantarem para cá e para lá com roupas iguais. “Eu só presto contas ao infinito”, dizem, num verso feliz de que nos tentaremos lembrar em várias circunstâncias, quem sabe até na próxima inspeção das Finanças.
“Goodnight”
Bárbara Tinoco
É a primeira finalista a cantar em língua inglesa, assunto que nos aborrece até ao exato instante em que começa, realmente, a cantar. Bárbara Tinoco canta tão bem que, basicamente, pode fazê-lo na língua que lhe apetecer. De resto, decorou o palco com pessoas com-ar-de-boas-pessoas, incluindo um rapaz que aproveitou este bocadinho para ler a antologia poética de Adília Lopes (na meia-final, tinha sido a de Al Berto. É preciso aproveitar estes bocadinhos livres ao fim-de-semana, não é, camarada? Estamos solidários com a tua luta). Talvez merecesse um final com mais punch que não apenas aquele encostar-se ao ombro do tipo-com-ar-de-ombro-amigo e excelente cabelo.
“Contraste Mudo”
You Can’t Win, Charlie Brown
Voltamos às personagens da infância, mas esta sem mais terror do que a melancolia. Há xilofones, guitarras clássicas, belas vozes com cicatrizes, o talento e bom-gosto que conhecemos a estes Charlie Brown. Em certo sentido, é o oposto da tal “canção festivaleira”. É uma canção bonita ponto – que se cruzou com o festival. E nós gostamos delas assim.
“Tormento”
Voodoo Marmalade
Felizmente, têm mais jeito para as canções do que para os nomes de bandas. Armados com ukuleles, guitaleles e um baixo afim, os Voodoo Marmalade trazem a canção que os caretos devem dançar quando tiram a máscara. Têm em fundo vitrais com calaveritas e parecem vir de Trás-os-Montes na Idade Média, mas são rapazes novos que lemos serem de Lisboa. “Dizem hoje em dia que quando a mente está vazia o diabo pode entrar”. Um exorcismo cheio de pinta de que vamos tentar saber mais,
“Fim do Mundo”
Inês Apenas
Parafraseia Camões, mas a rima não é o ponto mais forte em Inês. “Dizem que o amor é fogo e arde” rima com “não apague”, “agora” com “história” e outros matches imperfeitos. Mas a cantiga é pop redonda bem acabada e mete um piano de cauda que é coisa que impõe respeito em qualquer festival. E o verso “Porque contigo o fim do mundo não interessa” tem uma audácia, diríamos, sérgiogodinhesca.
“Ai Coração”
Mimicat
Cabaré meets Kusturika. Ainda não vimos o filme de que saiu esta música, mas, por favor, alguém o produza depressa. Marisa tem um vozeirão e uma pinta que, somadas ao detalhe de ser uma das candidatas autopropostas ao festival e não uma consagrada convidada, nos fazem torcer secretamente por ela. Secretamente.
“World needs Therapy”
Dapunksportif
Segundo tema em inglês, mas este sem a voz de Bárbara Tinoco. Aqueles que serão, aparentemente, os Deep Purple de Peniche trazem-nos guitarras e cortes de cabelo de outras eras, ato de resistência que aqui o júri reunido num primeiro direito algures em Alvalade muito respeita, mas a canção, que é o que importa, não é melhor do que o título antecipa. “I don’t want to live in a world full of hate / I think I’m not the only one who thinks the same”. Não. De facto, há escolas preparatórias inteiras cheias de pessoas a pensar e a escrever o mesmo nas suas redações de tema livre – para já não falar de tantas candidatas a Miss Mundo injustamente esquecidas.
“Endless World”
Neon Soho
Há imensas canções sobre “o mundo” neste festival. Uma dica interessante a eventuais interessados: para a próxima, pensar em fazer canções sobre coisas um nadinha menos genéricas. O tema é um pop eletrónico competente, mas a que parecem faltar alguns volts de alma. Porém, cita o “Anthem”, de Leonard Cohen, e isso, por si só, vale pelo menos uns cinco pontos cá de casa.
“Povo”
Ivandro
Povo. Ora aqui está outro conceito pouco amplo. Mas Ivandro canta com tal verdade que enche a palavra, de outro modo vazia, de memória e intenção. Filomena Cautela tinha acabado de alertar quem não soubesse (era o caso, aqui) que estávamos perante o cantor português mais ouvido no Spotify em 2022. A canção traz Angola em guitarra portuguesa e não é um assunto de fusão; é identidade mesmo. Dos vários versos memoráveis da canção, que fala de um povo que ainda procura a paz, ecoam por agora estes: “até no alcatrão nascem flores / A vida custa menos se encontrares amores”.
“A Festa”
Edmundo Inácio
Diz-vos uma pessoa que não acompanha talent shows desde o Sequim de Ouro de 1988: este rapaz é uma estrela. As reinterpretações audazes de clássicos que fez num “The Voice” foram tão poderosas que até aqui chegaram. Apresenta-se neste festival com um figurino extraordinário, entre o vestido e a batina (neste caso, diremos que é a série. É a série a que esta personagem pertence que queremos ver urgentemente produzida) e, algures na letra, diz que veio “para vencer”. Não sabemos se será hoje. O tema, não sendo de deitar fora, também não é aquela malha. Mas que o Edmundo vai vencer, em geral, é óbvio. É só uma questão de tempo.
“Viver”
SAL
Um trabalho de colagem de estilos musicais, estéticas visuais e até dos instrumentos que construíram propositadamente para o festival, entre os quais se conta o fruto do amor proibido entre uma viola clássica, uma guitarra elétrica e um naperon. Têm um elemento que migra de outra banda a concurso (João Gil, dos You Can’t Win, Charlie Brown) e um record de citações: António Variações, Xutos & Pontapés, Zeca Afonso, “Coimbra” e até um eco (voluntário?) da tradicional “Laurindinha”. Ironicamente, a canção fala de deixar o passado ir.
23h00: Começa aquele momento anual em que assistimos à nobre arte do Grande Enchimento do Chouriço enquanto se dá tempo às votações e contagens. Confirmando a impressão geral de boa onda dentro e fora de palco, todos os concorrentes juntam-se num “Hey Jude”, transformado em irónico “Ajude” de apelo ao voto. Mais à frente, vem Salvador Sobral fazer um medley dos santos Beatles em cujo sagrado solo-natal terá lugar a Eurovisão deste ano. Um pouco mais e chega Maro, com a recordação desse belo “Saudade, Saudade” que venceu no ano passado.
23h55: David Fonseca faz agora um medley de tudo o que é música de Liverpool além dos Beatles. E há “Wonderful Life”, dos Black, “There She Goes Again”, The La’s, “Enola Gay”, OMD, “You Spin Me Round”, Dead OR Alive, e “Relax”, dos Frankie Goes to Hollywood, comprovando que, frequentemente, quanto mais deprimente o clima, melhor o álcool. Perdão, a música.
00h11: Tiago Albuquerque, dos Voodoo Marmalade, fez desenhos de toda a malta a concurso. Não era falsa impressão a da boa onda sentida desde início nisto tudo.
00h30: O porta-voz açoriano encerra a votação do júri, saldada num empate entre Edmundo Inácio e Mimicat, duas pessoas vestidas de uma cor habituada a vencer em Liverpool.
00h37: O voto do público tem algumas orientações profundamente diferentes das do júri, mas concorda no essencial: os dois primeiros. Edmundo (isto previmos bem) ainda não vencia hoje; ganha Mimicat, em lágrimas e com estas palavras: “Eu sou uma underdog. Ninguém me conhece. Esta canção é por todos os underdogs, os que andam há séculos a tentar ter uma oportunidade e não conseguem.”
00h45: Fim de festa com a atuação da vencedora. “Ai, Coração”. Já não queremos só ver o filme; queremos a sequela.