Quando no final do primeiro episódio de “The Last Of Us” vemos ao fundo a cidade de Boston e os seus edifícios, perdura uma sensação de desconforto. Mais do que a destruição, o que ganha protagonismo é a imagem de um mundo sem nós, sem os humanos. Ao longo da série, à medida que as personagens chegam a diferentes cidades, há a noção de que a natureza tomou conta do mundo durante a nossa ausência e é esse o tema do livro O Mundo Sem Nós (publicado em Portugal pela Estrela Polar, mas entretanto esgotado), de Alan Weisman.
O livro foi lançado originalmente em 2007. Alan Weisman imaginou o que seria o mundo sem pessoas. O que aconteceria às cidades, ao planeta e à vida selvagem se os humanos simplesmente desaparecessem. Duas das imagens mais imediatas e perenes revelam-se logo no início do livro: uma é a ideia de que quando compramos uma casa, estamos a comprar algo que eventualmente será destruído (e o que isso faz à auto-estima de quem tem um crédito à habitação). A outra é o que aconteceria a Nova Iorque se ficasse deserta de gente.
O livro foi um sucesso imediato e tornou-se uma referência, não apenas por alimentar a ideia (será inevitabilidade?) que a vida continuará sem nós, mas também pela reflexão que lança: o que podemos fazer para evitar isso? Além disto, O Mundo Sem Nós também se debruça sobre outra área de fascínio generoso: como era o mundo antes de nós? A investigação de Weisman é profunda, a leitura acalma mais do que alarma: não que estejamos a fazer as coisas bem para garantir a nossa sobrevivência, mas a ideia de que tudo continuará é, apesar de tudo, tranquilizadora.
Baseado em ciência e não em ficção científica, O Mundo Sem Nós tornou-se rapidamente numa influência para a forma como diferentes criadores de ficção foram construindo os seus mundos pós-apocalípticos e outras distopias. Ao longo da última década, o livro tem sido uma influência silenciosa. No caso de “The Last Of Us”, é assumida por um dos seus criadores, Neil Druckmann, que também teve mão no videojogo que deu origem à série da HBO Max. Falámos com o jornalista e escritor Alan Weisman via Zoom, a propósito da influência de O Mundo Sem Nós, sobre a pandemia e sobre o futuro.
[o trailer de “The Last of Us”:]
Quando a pandemia começou, recebeu imensos relatos de pessoas que voltaram a ouvir pássaros nas rua. O que é que esses relatos o fizeram sentir?
Essa foi a parte boa da pandemia. Um pouco depois do confinamento, estava num local onde estava prestes a acontecer uma tempestade. E estava a ouvir um programa na NPR em que faziam uma sondagem de todas as pessoas que deixaram os empregos que tinham depois de trabalhar remotamente, porque não queriam voltar para os escritórios. E, passado um ano, fizeram outra sondagem, para perceber como estavam, e no geral estavam bem. A pandemia causou muitas restrições na nossa vida e foi perigosa, todos perdemos alguém. Em simultâneo, permitiu parar, fez com que estivéssemos mais próximos de nós próprios, da família. Para alguns não foi bom, porque estiveram de estar fechados com pessoas com quem não queriam viver, também conhecemos histórias de divórcio que ocorreram por causa da pandemia. Mas muita gente fala em como foi ótimo abrandar e sem o som dos motores nas ruas foi possível ouvir e também ver animais. Alguns deles começaram a aventurar-se por sítios onde antes não iam. Onde eu vivo [Massachussets] vejo ursos, raposas e guaxinins com regularidade. Houve uma altura que se falou disso nas notícias, em Veneza os canais estavam tão limpos que se conseguia ver o peixe na água. Os cisnes estavam de volta, porque não havia nada a afugentá-los. Foi um bom lembrete para as pessoas daquilo que perdemos com o mundo que escrevemos.
Uma década antes, falava exactamente disso em O Mundo Sem Nós.
Não escrevi esse livro porque queria que fossemos uma dessas espécies que se extingue prematuramente. Quero um mundo do qual fazemos parte, mas um que encontra a relação apropriada com a natureza, onde todas as criaturas podem fazer parte e ter uma vida digna. E, assim, ter uma vida mais preenchida, por estarmos rodeados pelo tipo de natureza que até existia há cinquenta anos. Há cinquenta anos havia mais vida selvagem, muito mais, e estamos a perder isso.
A pandemia deu-lhe alguma esperança de que as coisas podem mudar?
Quando a pandemia começou, fui entrevistado por muitos jornalistas. Até estive na televisão iraniana – o meu país não tem relações diplomáticas com o Irão. Nunca quis assustar os leitores, mas também não queria dar uma ideia de ficção científica. Então, no início do livro coloquei um parágrafo que oferece várias possibilidades para o desaparecimento definitivo dos humanos. Uma das hipóteses era algo que podia geneticamente modificar-nos, ficávamos estéreis e em 100 anos desaparecíamos. Ou um vírus que poderia só afetar os humanos. E ei-lo, um vírus que nos infetava por estarmos em contacto próximo com um animal. Inicialmente, ninguém sabia o quão sério isto iria ser. Por causa da pesquisa que fiz para o esse livro – e por causa do seguinte, Countdown: Our Last, Best Hope for a Future on Earth? – sabia algumas coisas. E até deixava uma questão no final de O Mundo Sem Nós: seria possível ter uma relação harmoniosa com a natureza com tantos de nós, por causa da explosão de população no século XX? Descobri que as pandemias acontecem com frequência, é uma forma da natureza limpar a casa, quando uma espécie é demasiado numerosa. Já passámos por várias, tu és europeu, o meu pai nasceu na Ucrânia, por isso eu também sou europeu, isso significa que os teus antepassados e os meus sobreviveram à Peste Negra e também sobreviveram à Gripe Espanhola. Muita gente morreu nessas pandemias. E há outro fenómeno: depois destas pandemias, há uma vontade de apressar a reprodução e preencher o espaço vazio. Há algo de cultural nisso, há muitos judeus que estão a sobrepovoar Israel porque acham que têm uma obrigação de substituir todos os judeus que morreram durante a Segunda Guerra Mundial e todos os filhos e netos que nunca tiveram.
Acha então que não aprendemos a lição com a pandemia?
É possível que não. Uma coisa é certa, enganámos a morte novamente, inventámos uma série de vacinas que eliminam ou conseguem controlar este vírus. Chegámos a um empate. Tu vês isto na natureza, uma planta desenvolve uma toxina para matar uma criatura que a come demasiado; a criatura depois desenvolve uma tolerância pela evolução (alguns morrem, mas alguns sofrem uma mutação). É assim que ocorre a evolução. E estamos com numa interessante dança evolutiva com este vírus. E haverá mais e mais. E um deles pode ser “aquele”. Simplesmente, não sabemos.
Voltando aos pássaros…
Uma coisa maravilhosa disso é que algumas pessoas perceberam que eles estiveram aqui sempre, não os afugentámos. Só tivemos de ficar calados para os ouvir. Não é bonito? A ciência entende os pássaros como uma forma de dinossauros. Eles são os únicos dinossauros que sobreviveram à última extinção do planeta. Apesar desta extinção que estamos a causar agora, temos exemplos no passado – cinco! – que nos dizem que a vida continua. Pode continuar sem os humanos, mas continua. Há muita gente que me diz que O Mundo Sem Nós lhes deu uma certa paz, porque lhes permitiu perceber isso.
Quando lhe escrevi há uns dias foi a propósito de um programa de televisão chamado “The Last Of Us”. O seu livro é uma influência para a forma como os autores da série imaginam as cidades naquele universo. Desde que li o seu livro, em 2009, que reparo na influência que teve nas representações destes mundo pós-apocalípticos…
Estou a tentar lembrar-me… alguns criadores de videojogos falaram comigo, entrevistaram-me. Dei-lhes algum feedback, mas nunca fui oficialmente um conselheiro.
Mas queria perguntar-lhe se tem noção da influência que o seu livro tem tido na cultura popular?
A ideia de tirar os seres humanos do mundo e ver o que acontece depois surgiu ao falar com uma editora minha. Surgiu por causa de um artigo que escrevi sobre Chernobyl para a [revista[ Harper’s [Bazaar]. Ela disse-me que foi das coisas mais deprimentes que leu. Mas após alguns anos, percebeu que as imagens que descrevi de Chernobyl, de ser tão radioativa, com toda a gente desaparecer, tinham um outro lado. Os animais voltaram, as plantas cresciam selvaticamente e as árvores cobriam as casas. Ela disse: “que imagem bonita, o que aconteceria se desaparecêssemos de todo?”. Era uma questão interessante para pensar e percebi que era a forma de escrever o livro que procurava. Quando entreguei o livro, o meu editor disse-me que tinham decidido contratar uma agência de comunicação independente. Isso significa que têm nas mãos algo que é especial. Essa pessoa fez um trabalho ótimo, no dia em que o livro saiu, eu estava a ser entrevistado pelas revistas mais importantes. Não se limitaram a escrever críticas, mas artigos sobre o livro. Em dez dias estava na lista de best sellers do New York Times. Quando dou por mim, estou a fazer uma digressão mundial. Mas pronto, nunca imaginei que isto iria acontecer.
O que aconteceu a seguir?
Houve uma explosão de programas de televisão inspirados no meu livro. Todas as estações — Discovery, Canal História, National Geographic, a BBC — fizeram programas à volta do livro. Eu não tive nada a ver com isso. Cheguei a ter conversas com a National Geographic, mas aquilo estava a ficar estranho e saímos à última. Também se falou em fazer um filme, falámos com uma produtora francesa, mas o argumentista nunca conseguiu fazer um filme do livro. Era o argumentista do “A Marcha dos Penguins”. O encontro até foi em Lisboa… mas nunca deu em nada.
E o salto para a distopia na ficção?
Isso é diferente. Começou a surgir há uns anos porque o mundo está a prestar atenção ao que os escritores sobre o ambiente e ciência, como eu, têm escrito desde os 1980s. Temos uma crise nas mãos. Mas pareceu sempre muito distante no futuro para as pessoas perceberem isso, agora é que estão a sentir as coisas na pele. Confesso que não leio muita ficção sobre isso, li o Station Eleven [Estação Onze, de Emily St. John Mandel, publicado entre nós pela Presença]. A minha cabeça agora não está numa terra devastada, mas em 2023. Estou no mundo em que estou agora e estou interessado no que vamos fazer neste momento na História. Este momento é crucial para a nossa espécie, é um momento existencial. Ou fazemos mudanças rápidas, ou o nosso futuro está em perigo. Evoluímos graças a uma série de coisas – animais, plantas, micróbios, vírus –, por vezes de forma impercetível, porque o ecossistema é tão grande que não conseguimos ver tudo. Só quando começarmos a perder coisas, quando as extinções forem ameaças reais ou se concretizarem de facto, é que se calhar iremos perceber que isto vai ser a sério. Não sei se isto, por exemplo, é a sério, mas há uma crise de ovos nos Estados Unidos, porque um vírus que afeta pássaros encontrou um alvo fácil nestas fábricas de fazer ovos americanas. As galinhas nesses sítios são próximas de clones, e se um vírus afeta uma, afeta todas. É mais um exemplo destas coisas que iremos continuar a sentir. A não ser que façamos grandes mudanças. E será que as conseguimos fazer a tempo? Esse é o tema do livro para o qual estou a investigar.
Facto curioso, um dos realizadores de “The Last Of Us” é o criador da série “Chernobyl”. Quando é que esteve em Chernobyl?
Em 1993, sete anos depois do fogo no reator. Na altura não havia turistas, ainda era radioativo. Creio que ainda é, porque há pó de plutónio no chão. Mas quando fui ver, ainda estava debaixo do sarcófago, o primeiro que fizeram. Era uma central nuclear que não tinha uma cúpula para conter uma situação assim. Construíram uma muito rapidamente, muita gente morreu a fazê-lo. Os números não são oficiais… entrevistei várias pessoas que trabalharam lá que estavam a morrer quando os entrevistei. Essa primeira cúpula foi pouco eficaz, porque a radiação estava a fazer buracos. Não podíamos ficar em Chernobyl durante muito tempo.
Escreveu um artigo sobre o tempo que passou no Iraque. É muito alarmante e parece preocupado, porque parece que nada muda. Vê sinais de mudança?
Vejo, mas também vejo muita resistência a essa mudança. A resistência vem das pessoas com poder. Ganham muito dinheiro a vender coisas para queimar, para manter as luzes ligadas. É graças a isso que estamos onde estamos, é por queimar coisas. Mas desde os 1970s que se sabe dos problemas que isso causa. E os responsáveis não querem parar de fazer dinheiro. A Royal Dutch Shell foi processada e perdeu um caso nos Países Baixos. Foi provado que danificaram a vida das pessoas e foram obrigados a cortar as emissões em metade até certa data. O que é que a Royal Dutch Shell fez? Saiu do país. Mas ao mesmo tempo, compraram uma companhia que faz estações de carregamento para veículos eléctricos. Também estão a perceber que isso fará parte do futuro. Algumas coisas que investiguei para o meu livro são fantásticas e podem vir a criar uma quantidade imensa de energia sem usar petróleo ou energia nuclear. Mas só acredito quando existirem.
E poderá de facto acontecer, essa mudança?
Há uma corrida em busca dessas alternativas. Por exemplo, os painéis solares estão a crescer de uma forma muito mais rápida do que há uma década. No Bangladesh, numa área onde não há nenhuma infraestrutura mas onde existe um campo de refugiados, não há qualquer fonte de electricidade. Até que uma companhia com fundos das Nações Unidas decidiu colocar painéis solares nas casas. Cada grupo de habitações netsas condições transforma-se numa espécie de bateria para eletrificar o grupo de painéis seguinte, e depois o seguinte. Se uma casa não usa energia suficiente, pode vender para outra que precisa mais. Estão a criar esta rede e a espalhá-la. Há um milhão de pessoas neste campo. As pessoas estão a tentar mudar as coisas e é excitante ver isto a acontecer, mesmo sabendo que estamos numa crise existencial da qual não sei se, como espécie, sobreviveremos. Mas o planeta sim, sairá vivo de certeza, já passou por isto outra vezes e volta sempre mais forte.