Na dúvida, mais vale estar calado. É mais ou menos essa a análise que dirigentes e deputados do PS fazem quanto à polémica que envolveu o ministro da Economia, António Costa Silva, por ter decidido dar em público uma opinião sobre o IRC que o Governo queria manter em privado. Mas o silêncio não será aconselhável apenas para o próprio ministro: no PS, não faltam vozes descontentes com a forma como o caso foi gerido – com vários socialistas a apressarem-se a desautorizar publicamente o ministro – e que admitem que os moldes da descida do IRC devem mesmo ser seriamente ponderados.
No rescaldo do caso que se prolonga há vários dias – e que esta quarta-feira foi comentado pelo próprio Costa Silva –, dirigentes e deputados do PS garantem ao Observador que o ministro não soube gerir o assunto. Há quem diga simplesmente que “não devia ter falado” de uma posição que não foi, pelo menos até ver, assumida pelo Executivo; na direção do partido, admite-se, mesmo “sem dramas”, que “não se expressou bem”; e há quem critique a falta de “sensatez política” de um ministro que chega a parecer um “comentador”.
Mas o incómodo vai para além disso e tem a ver com a própria coordenação do partido e do Governo. Os mesmos dirigentes não gostaram de ver as sucessivas desautorizações ao governante, que vieram criar ainda mais ruído e chamar a atenção para o que poderia não ter passado de um deslize.
“Ter-se deixado que houvesse a multiplicação de intervenções sobre isto é que foi terrível. O primeiro-ministro ou o ministro das Finanças tinham falado e depois era silêncio…”, sugere um dirigente socialista.
Outro vai mais longe: a pressa de membros do partido e governantes em corrigir o tiro de Costa Silva vem demonstrar, mais uma vez, os problemas estruturais de um Governo “sem pesos e contrapesos”, demasiado centrado no primeiro-ministro – uma vez que vários dos responsáveis socialistas que falaram, Fernando Medina à cabeça, fizeram questão de lembrar que a voz que conta no Executivo é a de Costa – e sem capacidade para promover debate interno.
Não seria, de resto, a primeira vez que se tornariam evidentes os choques de um ministro de qualquer pasta setorial com as Finanças, tensão costumeira sobretudo em períodos orçamentais.
“Isto é sinal de um Governo que não está com saúde, em que têm de estar todos completamente alinhados. Tem tudo a ver com organização e com centralismo”, nota o mesmo dirigente. Outro concorda: “Isto não correu bem. É falta de coordenação”.
O mesmo problema que Costa parece ter notado e assumido tacitamente ao decidir, há duas semanas, ir buscar Miguel Alves para recuperar o cargo de secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, de que tinha abdicado ao formar este Governo, precisamente com funções de coordenação.
O resultado, diz um dos deputados e dirigentes já citados, é que se concentra no Governo uma série de figuras que querem “mostrar que são mais costistas do que Costa” – uma questão de “cultura” de origem num Executivo formado à volta do primeiro-ministro e dos seus potenciais sucessores.
Com um ingrediente extra à mistura, recorda-se no PS: a “humilhação” de Pedro Nuno Santos , no seu desentendimento muito público com Costa em que acabou a fazer um mea culpa público por causa do novo aeroporto de Lisboa, ficou na memória como um episódio (traumático) de descoordenação aguda… a não repetir.
No debate bimensal com o primeiro-ministro, esta quinta-feira, Costa acabaria por negar qualquer “desautorização” e elogiar a “excelência” do ministro quase homónimo — até recordou o momento em que o viu a falar na televisão e, agradavelmente surpreendido, o convidou para almoçar, antes de o escolher para fazer o esboço do Plano de Recuperação e Resiliência. E aplaudiu a decisão de ter passado do lado do conhecimento teórico, de quem “escreve livros”, para a política, o lado de quem “faz coisas”.
Mas, quanto à substância, nada feito. Costa falaria quase em uníssono com Medina. Lição 1 para Costa Silva: não há mistério nenhum sobre o que o primeiro-ministro pensa quanto ao IRC, porque consta do programa eleitoral do PS — e ali não se fala em descidas transversais do imposto; lição 2: outras evoluções na posição do Executivo devem ser discutidas com os parceiros sociais e não na praça pública (ou no hemiciclo). Ponto final.
Perante a confusão instalada no PS, um defensor do ministro ironiza: “Deve causar-lhe pouca impressão porem-lhe um alvo em cima, que ele já esteve à frente de um pelotão de fuzilamento a sério“. Na TSF, João Soares solidarizava-se com Costa Silva: mesmo sendo algo “desajeitado” a falar de política, “não merecia uma cena destas em público”.
Na TVI, no programa Princípio da Incerteza, a ex-ministra, agora deputada, Alexandra Leitão também confessava esta semana a sua estranheza perante o caso:”Dois dos três secretários de Estado do ministério da Economia terem vindo a público dizer o oposto do que disse o ministro, isto a mim faz-me muita confusão“.
E até Luís Montenegro aproveitou a deixa para provocar, mostrando-se “solidário” com um ministro “triturado pela máquina socialista”. Mas, publicamente, não houve muito mais vozes que defendessem o ministro — pelo menos no universo do PS.
Do quase fuzilamento em Angola ao fato do Tintim. Quem é António Costa Silva?
Mexidas no IRC? Para PME, pode ser preciso
Entre as altas patentes do PS há ainda quem considere que Costa Silva pode não se ter expressado da melhor forma, mas isso não isenta o ministro de razão na substância. Mesmo que não se esteja a falar propriamente da descida transversal que desejava: “Teremos de mexer no IRC, pelo menos para as PME”, admite ao Observador um alto dirigente.
Esta quarta-feira, o véu começou a ser levantado, mas ainda de forma bastante vaga: na proposta que apresentou aos parceiros sociais, noticiada pela Lusa, o Executivo prevê uma redução seletiva do IRC para empresas que promovam aumentos salariais, que apostem numa “contratação coletiva dinâmica” e que invistam em investigação e desenvolvimento, reforçando as condições do Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial.
Não é o modelo que Costa Silva queria; resta saber se no detalhe das propostas será possível ir mais longe ou não.
Governo propõe descida seletiva do IRC para empresas que aumentem salários
Ministro à espera de deputados: “Não é dos nossos…”
Depois da cacofonia socialista, como fica, então, a cotação de Costa Silva dentro do PS? No partido, apontam-se ainda dois episódios que ajudam a mostrar o suposto “isolamento” a que parece ficar vetado o pai do Plano de Recuperação e Resiliência, um ministro independente visto como uma espécie de corpo estranho.
Desde logo, a reunião que teve com os deputados socialistas, esta terça-feira, para preparar uma audição parlamentar sobre o Banco de Fomento – Costa Silva esteve largos minutos praticamente sozinho, na sala à espera de que quase todos os deputados chegassem, cenário raro para um ministro, ainda para mais da mesma cor política. “Porque não é dos nossos”, ironiza, laconicamente, um deputado.
Já à própria audição, esta quarta-feira, Costa Silva chegaria novamente sozinho – isto é, sem secretários de Estado a acompanhá-lo – e seria questionado sobre isso mesmo pelo PSD. “Não é comum e gera leituras, e quem o pôs cá sabia que ia ser assim. Dá a ideia de um ministro isolado e isso não é desejável, sobretudo se for isolado por ter boas ideias”, atirou o deputado social-democrata Paulo Rios de Oliveira, em jeito de provocação. “De que vale um ministro com boas ideias se elas não chegam cá fora?”.
Por esta altura, já foram pelo menos duas as tais “boas ideias” de Costa Silva que depois se viram aniquiladas ou, pelo menos, corrigidas publicamente por outros membros do Governo: aconteceu logo no arranque deste Executivo, quando apoiou uma “windfall tax”, taxa sobre os “lucros inesperados e aleatórios das empresas” – e acabou por ter de explicar que esta seria uma “solução última” (que o Governo terá mesmo de adotar por decisão europeia, sem saber se resultará em alguma receita).
Depois, é claro, a famigerada descida transversal do IRC, que o ministro-empresário defendeu como sendo “extremamente benéfica” sobretudo em tempos de crise, e na qual disse ter esperança, numa altura de negociações em sede de concertação social.
Seria rapidamente corrigido e desautorizado por um batalhão inédito de responsáveis socialistas e governantes, de Fernando Medina – que avisou contra falar de medidas que estão a ser negociadas à porta fechada “na praça pública” – ao antecessor no cargo, Pedro Siza Vieira (que defendeu a descida mais seletiva prevista no programa do PS) ou até dois dos seus próprios secretários de Estado (João Neves disse que neste contexto a medida seria um “erro” e Rita Marques recordou, numa entrevista à Lusa, que quem decide é o primeiro-ministro).
Costa Silva não está, ainda assim, convencido de que falar em público das suas ambições para o IRC tenha sido um erro. E, ao ser questionado pelo PSD, não se mostrou incomodado: “Não me sinto sozinho nem acompanhado. Tive muitas batalhas na vida em que estive sozinho. Estou habituado a ter razão antes do tempo, que é algo por vezes difícil de sustentar”, atirou na quarta-feira. Com o tempo se verá se o partido concorda e se a proposta ainda tem caminho para fazer.