Em tempos de pandemia e confinamento não é difícil adivinhar onde estará Albano Jerónimo. Em casa, a falar para a câmara do telemóvel, numa conversa por Zoom, o ator de 40 anos conta como encarnar João Fernandes, o protagonista de “A Herdade”, foi também um regresso às origens – mas do outro lado da história.
O filme de Tiago Guedes, que se estrou o ano passado e foi distinguido com o prémio Bisato D’Oro no Festival de Veneza, salta esta quinta-feira para a RTP1. Quatro episódios exibidos em horário nobre em dois dias consecutivos, 30 de abril e 1 de maio (e a 26 de maio chega à HBO). A data não será inocente. Este drama familiar de um latifundiário ribatejano desenrola-se ao longo de quase 50 anos de história, incluindo o 25 de Abril e os tempos da reforma agrária. Na opinião de Albano Jerónimo, vem desafiar os espectadores a mergulharem num outro tipo de tempo, com uma fotografia, direção de actores e edição excecionais. Uma pausa em tempo de pandemónio
[o trailer de “A Herdade”:]
Este é filme é o sobre o quê?
É sobre o erro, a falha, as escolhas que nos definem. Gosto de pensar neste João Fernandes e neste filme como algo imperfeito. Histórias que carecem de uma opinião do público para se completarem. Gosto muito de criar objetos quebrados, porque pode surgir a possibilidade de entrar luz através dessas rachas.
Numa história inacabada, o público tem uma possibilidade maior de se encontrar nela?
Penso que sim. Quisemos criar um objeto que comunicasse. É algo que se vai construindo e precisa da atenção delicada do espectador. A duração do filme é um exemplo disso. É uma partitura do silêncio. Com este formato, temos a possibilidade de contrariar o timing atual das coisas. Não atual, atual, porque agora estamos em casa. Mas este filme implica outra atenção, outro tempo. A arte no seu todo obriga-nos a isso, a mudar o tempo que dedicamos às coisas.
A sua personagem é o protagonista da história, um grande latifundiário do Ribatejo. O que quis comunicar com ele?
Exatamente essa imperfeição. É uma personagem baseada em factos concretos e reais do nosso país. Que construiu um império, com escola, hospital, um posto de GNR, em pleno Estado Novo. Uma mini-cidade paralela ao país. Isto revela muito deste homem gigante, que abraça aquilo que faz na vida de uma forma egoísta e poderosa. Um homem incapaz de mudar e incapaz de comunicar. Construir isto em plateau, com o Tiago [Guedes], com os meus colegas, foi de uma delicadeza incrível. Foi fazer coisas que eu não sei…
Como por exemplo?
Um exemplo rápido: andar a cavalo eu já sabia, mas não sabia como cuidar do animal. Este filme implicava ter outro tipo de relação com o animal. Estive três meses com um professor. Hoje sei tratar de um cavalo do princípio ao fim. E roubei um bocadinho dele para criar o lado imprevisível do João Fernandes. Deste animal indomável, que se deixa domar quando lhe convém, mas sobretudo em proveito próprio. Estamos a falar de um egocêntrico, de uma trip de ego total que culmina na total solidão. No fundo, é alguém imperfeito. E volto a esta palavra.
Cresceu no Ribatejo. Na construção da personagem foi buscar alguma coisa às suas vivências e memórias?
Sim, sim, sim. Ainda hoje estou a digerir isso. Toda a minha família vem do Alto Minho, mas eu fui criado no Ribatejo. Brincava na lezíria, ia à amêijoa no Tejo, mergulhava no rio, convivi com aquelas pessoas e com aquelas dificuldades. Venho de um meio pobre. Está-me no corpo, está-me no sangue. Há uma necessidade de nos agarrarmos àquilo que temos. O campo, a terra, tudo isso é meu. E de repente, quando percebi qual era o décor do filme… Dei por mim a fazer uma espécie de regresso. Quando acabei a rodagem senti que foi o culminar de uma parte do meu percurso e o início de outra etapa. Ainda estou a tentar perceber qual é. O facto de ter vibrações da minha infância ali no meio potenciou isto.
Também tornou tudo mais coeso.
Posso dar outro detalhe: o meu pai era talhante e lembro-me de ir com ele a touradas – que é uma coisa que eu abomino – porque ele era a pessoa que matava o toiro a seguir. Por mais que se trabalhe a coisa tecnicamente, há elementos que têm a ver com a nossa memória afetiva e que nos dão um sentimento de pertença. Vêm à superfície coisas de que não se está à espera: o vento nas árvores, o tipo de calor, a brisa, os sons. Um conjunto de sensibilidades que se relacionam com o filme.
Cresceu num meio humilde. Como é que se passa para o lado de lá, o lado do patrão?
Observando. Passei muito tempo do outro lado. E ou se cresce com raiva ou se decide trabalhar para alcançar outras coisas. Fui estimulado desde muito cedo a olhar para os outros, a tentar percebê-los. Cresci com muitas pessoas a mandar. Aqui foi dar azo a esse espaço que não tem quase nada a ver comigo. Há ali uma luta que tem a ver comigo: se houver necessidade, levar tudo à frente. É dos poucos pontos em que eu e o João Fernandes nos tocamos. Como dizia a minha mãe: “se queres a bolota, trepa”.
Uma provocação: o João Fernandes de alguma forma será vítima da sua circunstância? A primeira cena do filme, mostra-o num momento trágico e traumático.
Aquilo por que passamos em criança é fundamental para nos definir como adultos. O João Fernandes nessa perspetiva é vítima da sua educação, da sua família. Agora, a partir de determinada altura, ele ganha asas. Ele é o macho alfa, maior que a vida, que escolheu ser um predador. Podia interromper o ciclo e não o fez. Poderá ter sido por cobardia, por inaptidão… deixo ao público essa decisão.
Onde se guardam as personagens depois dos filmes? Ainda convive com o João Fernandes?
Entre rodagem e preparação, estive a trabalhar neste filme quase sete meses. Foi a primeira vez que tive o luxo do tempo. Dei-me ao luxo de por vezes não desligar quando acabava um dia de rodagem. Dei-me ao luxo de ir por métodos “stanislavskianos”. Isto vai ficando. Entre muitas outras coisas, a [atriz] Manuela de Freitas diz que temos todas as personagens dentro de nós; só temos de encontrar o caminho para elas saírem. O João Fernandes está aqui. Volta e meia vem: numa reação ou outra, num pensamento, numa coisa mais brusca, impulsiva.
À parte a qualidade, a que acha que se deve o sucesso do filme, mesmo a nível internacional?
Em Veneza tivemos uma standing ovation [ovação de pé] de três minutos. Pessoas que não nos conheciam de lado nenhum. Tivemos reações incríveis: pessoas a chorar, a levantar-se, a mandar cartas… O filme consegue o equilíbrio entre o cinema de autor e de massas. Fundamentalmente, é uma história portuguesa.
Como assim, “cartas”?
A produção do filme recebeu cartas do Alentejo, de Trás-os-Montes, de pessoas que não têm acesso a redes sociais, que viveram o 25 de Abril, e que a única forma que têm de comunicar são as cartas. A agradecer. Eu e o Tiago Guedes fizemos uma ronda por cineclubes de todo o país e tínhamos autocarros de pessoas a chegar para assistir.
Falou dos silêncios, mas outro elemento muito presente é o “calar”. Não só a nível pessoal mas também social. As pessoas não levantarem a voz. Viverem décadas em relações não desejadas ou que não lhes fazem bem. Mesmo a ideia do líder forte, que nos vai destruindo, mas que toleramos. As explosões são para dentro.
Há uma implosão das coisas que não são ditas. Nós trabalhámos isso. A rudeza. O que não se diz.
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Na sua opinião, é uma coisa mais portuguesa ou universal?
Acho que é universal. Contudo a forma como a mulher reage é muito portuguesa. Aquela coisa do cala e consente. O “vamos manter a fachada”. Todos nós vimos isso acontecer. Em pais, tios, avós.
Ainda somos assim?
Acho que sim. Estamos a entrar num tema delicado, mas há muitas coisas patentes no filme que se veem hoje em dia. E essa é uma delas. Há uma paz podre.
O filme atravessa vários momentos de transformação social e pessoal. Com esta pandemia, estamos também a passar por uma fase de mudança. Como está a viver isto?
Daqui a uns anos um sociólogo vai deleitar-se com estes anos. Sendo específico na minha profissão, é um momento bastante delicado, para não dizer horrível. Tive dois filmes e uma série que foram cancelados, quatro espectáculos de teatro, tudo o que é locuções. Não tenho rendimentos concretos e mensais. Foi uma mudança radical. Dentro da minha educação fui obrigado a lutar pelo que quero e acredito. Neste momento estou a usar a mesma receita para me reinventar. Tenho a minha companhia profissional, o Teatro Nacional 21, e já fizemos um espectáculo online. No fundo é arranjar novas dinâmicas: “É por aqui que dá para fazer? ‘bora lá!’.” Depois, voltar a ler – imenso –, ver filmes, voltar a brincar com a minha filha. Tem que ver, uma vez mais, com o conhecimento.
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Como assim, “conhecimento”?
Para me reinventar tenho de ter património interior para espremer, para fazer sumo. Tudo isto que estamos a viver é um melting pot do caraças. Esfera pessoal, profissional, tudo misturado. Como é que se gere? É complicado. Sou, como o Jorge Palma diria, um otimista cético, mas espero que este momento nos sirva para reavaliarmos o que é de facto essencial. Fomos confrontados com as nossas escolhas de vida.
Há muitos altos e baixos?
Isto é hormonal [ri-se]. Há coisas maiores do que nós. Tenho aqui esta piolha [aponta para a filha]. Claro que há dias em que só apetece partir tudo. Está-se preocupado, ansioso, não se tem perspetivas de trabalho. Arruma-se a casa. Entra-se em tantos processos de reinvenção. Momentos de aprendizagem intensa. Mas é horrível ouvir diariamente casos de atores que não têm nada. Há uma associação neste momento a dar cabazes aos artistas e que privilegia o contacto sem nome, para que as pessoas não tenham vergonha. Temos de reagir. Carregar no botão. Se explodir, ao menos tentámos.
Reagir como?
Elaborar projetos, convencer canais, marcas… Em caso de dúvida, continuar a mexer. Porque é isso que nos vai definir. É o nosso caminho. Não é aquilo que alcançamos; é a atitude que tivemos para chegar a essas coisas. Eu acredito nisso. Agora, nem que seja por uma questão de exemplo para a minha filha.
De qualquer forma, está para breve a estreia de uma série na Netflix.
Foi o meu terceiro projeto internacional. O primeiro em Espanha, o segundo na Irlanda, e agora uma série com a Netflix inglesa, “The One”, baseada num livro com o mesmo nome. Vai estrear em setembro, outubro, em todo o mundo. É incrível dizer isto, “em todo o mundo”.
É essa a tal nova etapa de que falava?
Talvez. Estou a educar-me nesse sentido. A dedicar mais tempo às línguas: inglês, francês, espanhol, alemão. Apontar as armas para outro lado. Não é um sonho de vida, mas são novos desafios. Quando se trabalha com orçamentos incríveis, a equipa faz 70% do nosso trabalho, desde guarda-roupa a caracterização. Há dinheiro, há tempo, está toda a gente feliz. Então soltamo-nos. O nosso trabalho é potenciado. Tenho vontade de trabalhar assim.
Também pagará melhor.
Claro. Passa-se mais tempo fora de casa, mas dá recuo para em momentos de confinamento, caos mundial, se poder estar um bocadinho menos aflito.
E falando em confinamento, como tem sido participar no “Como é que o Bicho Mexe” do Bruno Nogueira, no Instagram [onde tem aparecido a encarnar diferentes personagens]?
Ah, tem sido incrível! Tem sido um recreio. Começou de forma muito informal e de repente dou por mim a criar uma imagem, um conflito e uma dramaturgia. E começa-se a subir a fasquia e a subir a fasquia e a subir a fasquia… E agora como é que entro outra vez na roda? Estamos a preparar o comeback e vai acontecer esta semana ainda. Ainda não sabemos bem o que é: meio documental, meio big brother, meio verdade, meio mentira, meio íntimo… Essa barreira, o melhor é que não se defina. Deixar sempre a dúvida.
É uma terapia, faz bem?
Faz bem porque aquilo que se imprime em quem assiste àqueles diretos é impagável. Recebi duas mensagens de médicos e uma de uma enfermeira a dizer coisas tocantes como, “chegar a casa depois de horas de trabalho, não saber bem onde estou, cansado, comer qualquer coisa, pôr isto e rir-me, já vale. Obrigado.” Pessoal que está na linha da frente a agradecer? Esqueçam lá o budget da Netflix – este é “o” budget!
Uma das coisas boas que saíram da quarentena.
Sim. Nem nós percebemos o que está aqui a surgir. Mas pode ganhar contornos diferentes daqui a uns tempos. Vamos ver…
Vêm aí coisas?
Vêm aí coisas.