Quando Novak Djokovic conquistou o Open da Austrália pela primeira de nove vezes, em 2008, Carlos Alcaraz tinha cinco anos. Quando Rafa Nadal conquistou Roland Garros pela primeira vez, em 2005, Carlos Alcaraz tinha dois anos. Quando Roger Federer conquistou o primeiro Grand Slam, em Wimbledon e em 2003, Carlos Alcaraz tinha dois meses.
O tenista espanhol, que acabou de completar 19 anos, é a nova coqueluche do ténis internacional – mas é muito mais do que isso. Escolhido pelo destino para ser o herdeiro de Nadal mas com Federer como ídolo, tem acumulado recordes que têm como título “o mais novo a” ou “o primeiro a”. Alcaraz chegou aos quartos de final do US Open no ano passado, venceu o Open de Madrid no início do mês e está a ir atrás do sonho em Roland Garros. Um sonho que pode ser bem mais tangível do que alguma vez imaginado.
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— Eurosport (@eurosport) May 26, 2022
Em Paris, o espanhol ultrapassou Juan Ignacio Londero na primeira ronda, afastou o compatriota Albert Ramos-Viñolas na segunda (com direito a uma reviravolta extraordinária depois de perder dois sets nos três iniciais) e eliminou Sebastian Korda na terceira. Na próxima fase, já este domingo, enfrenta o russo Karen Khachanov. E prossegue um caminho que tem como destino a conquista do primeiro Grand Slam da carreira – e o carimbo final na ideia de que é o próximo grande nome do ténis.
Uma ida à Croácia que mudou tudo e a escolha do treinador
“Projeto Carlos”. Foi assim, com um título simples e previsível, que a carreira de Carlos Alcaraz começou a ser desenhada, construída e planeada ao pormenor. Nada do que o tenista espanhol tem alcançado foi um acaso ou uma simples obra do destino – contudo, sempre existiu espaço para adaptações, readaptações e reconfigurações ao texto original. O “Projeto Carlos” é um work in progress. E esse progress dificilmente terá um teto máximo.
Nascido em maio de 2003 em El Palmar, uma localidade de Murcia, o atleta de 19 anos é o segundo mais velho de quatro irmãos. Começou a jogar ténis ainda criança, no clube local onde o pai era diretor, e acabou por ser uma viagem à Croácia a despoletar tudo o que se seguiria. Com 10 anos, Alcaraz participou no primeiro torneio no estrangeiro e decidiu que não queria fazer absolutamente mais nada. Até à Croácia, era um miúdo que ia à escola, fazia os trabalhos de casa, jogava ténis e tinha um poster de Roger Federer na parede do quarto; a partir da Croácia, era um miúdo que queria ser tenista profissional.
“Apaixonei-me pelo jogo ali”, confessou, em várias entrevistas. O pai, também Carlos, percebeu rapidamente que não existia maneira de limitar o sonho do filho. Contudo, havia um pormaior: o custo elevado das viagens, dos torneios, das raquetes, do equipamento, de tudo. Milhares de euros que a família Alcaraz não tinha. A deslocação à Croácia, aliás, tinha sido patrocinada por um empresário de Murcia que decidiu dar um apoio inicial ao percurso do tenista – mas essa solução não seria válida para todas as ocasiões. A resposta chegou pouco tempo depois.
Nesta altura, um agente da IMG, uma agência especializada na representação de atletas, viu Carlos Alcaraz jogar pela primeira vez. E Albert Molina, que tinha sido o representante de David Ferrer, não conseguiu desviar o olhar. “Mesmo com 12 anos, ele era diferente de todos os outros jogadores da idade dele. Ele sabia fazer tudo dentro do court. Gostava de servir, de ir à rede, de fazer o dropshot“, explicou o agente à ESPN. Contudo, de acordo com Molina, o visível talento de Alcaraz acarretava consigo um problema: o jovem espanhol tinha tanta variedade de movimentos, sabia fazer tanta coisa, que ainda não tinha desenvolvido uma capacidade de seleção para tomar as decisões mais acertadas.
Por isso, e depois de convencer os pais do tenista de que era a pessoa certa para gerir a carreira do filho e depois de convencer a IMG de que o tenista era um prodígio, Albert Molina começou a trabalhar. Foi aqui, nesta altura, que nasceu o “Projeto Carlos”. E o primeiro passo do projeto era simples — mas tinha uma margem de erro reduzida e obrigava a uma minúcia importante. A escolha do treinador de Carlos Alcaraz, alguém que conhecesse o interior e o exterior do ténis, que pudesse ajudar o jovem espanhol a navegar o próprio ténis não só dentro de court mas também fora dele, alguém que valorizasse o bem-estar exterior ao desporto, era crucial. Juan Carlos Ferrero, antigo número 1 espanhol e vencedor de Roland Garros em 2003, foi o escolhido.
Ferrero, que em 2018 terminou a ligação com Alexander Zverev, estava à procura de um novo desafio e ficou entusiasmado com a oportunidade de treinar alguém quase desde o zero. “Trabalhar com um talento tão prodigioso, com alguém que ainda não está pronto, ter de dar tudo para que as coisas resultem, é uma enorme oportunidade”, indicou o técnico à ESPN. Há quatro anos, quando o tenista tinha apenas 16, Ferrero e Alcaraz começaram a passar grande parte dos dias do ano em conjunto, fora ou dentro do court, como autênticos companheiros. E um campeão começou a ganhar forma.
Como o “fio de esparguete” passou de 120.º a sexto do ranking num ano — e ganhou o Open de Madrid
O segundo passo do “Projeto Carlos” passou por equiparar a força física de Carlos Alcaraz à força mental de Carlos Alcaraz. O jovem tenista sempre teve noção clara do talento que tinha e continua a ter, nunca teve receio de enfrentar os adversários mais complicados e construiu consistentemente uma confiança que lhe permite ter coragem para fazer dentro de court aquilo que muitos ainda não arriscam. Mas nada disso tinha paralelo com a forma física do espanhol, que tinha ainda um corpo de pré-adolescente.
“Trabalhámos muito na forma física dele porque, como eu costumo brincar, ele parecia um fio de esparguete”, contou Juan Carlos Ferrero à BBC. Alcaraz cresceu, tanto mental como fisicamente, e o último ano do tenista espanhol tem sido em rota ascendente imparável. E a melhor forma de comprovar isso mesmo é comparando o jogo que fez contra Rafa Nadal no dia em que completou 18 anos, em maio de 2021, e o jogo que fez contra Rafa Nadal na semana em que completou 19 anos, no início do atual mês de maio.
Há um ano, na segunda ronda do Open de Madrid e quando era o 120.º tenista do ranking, Alcaraz perdeu contra Nadal em dois sets. Foi a primeira vez que o espanhol enfrentou um dos chamados Big 3 – Nadal, Federer e Djokovic – e, tal como a maioria dos outros tenistas, não estava preparado para vencer. O trabalho continuou. Depois de já ter sido eleito o Estreante do Ano em 2020, por ter escalado 350 lugares no ranking e conquistado três ATP Challengers, entrou no top 100 na altura em que perdeu com Nadal e provou os primeiros instantes de fama e sucesso em setembro no US Open.
Naquela que é ainda a melhor participação que tem num Grand Slam, Carlos Alcaraz chegou aos quartos de final do US Open: num percurso que envolveu eliminar Stefanos Tsitsipas, então o número 3 do ranking, e que terminou abruptamente contra Felix Auger-Aliassime devido a uma lesão. Ainda assim, em pleno Arthur Ashe Stadium – o maior palco de ténis do mundo –, Alcaraz vergou Tsitsipas e foi ovacionado pelas 22.000 pessoas que estavam nas bancadas. Foi a primeira vez que venceu um adversário do top 5, foi a primeira vez que chegou à quarta ronda de um Grand Slam e foi também a primeira vez desde 1963 que alguém tão novo chegou aos quartos de final do US Open.
As capas dos jornais desportivos, essencialmente dos espanhóis, acordaram no dia seguinte para dizer que tinha nascido uma nova estrela. Mas a opinião mais importante, a de Juan Carlos Ferrero, apareceu assim que o jogo contra Tsitsipas terminou. “Ele é diferente dos outros miúdos da idade dele. Ele floresce nesses momentos importantes. Entras no court e sentes a dimensão de tudo, é barulhento, está gente por todo o lado. Mas ele sente-se confortável, sente-se em casa”, diz o treinador.
Dois meses depois do US Open, Carlos Alcaraz acabou a temporada de 2021 a conquistar o prémio Next Gen das ATP Finals. Poucos dias depois, sentou-se com Ferrero e com a restante equipa para desenhar o plano para 2022. Qual era o próximo passo no “Projeto Carlos”? Entrar no top 10 até ao final do ano. Em abril, porém, Alcaraz já precisava de um novo objetivo. Depois de voltar a derrotar Tsitsipas, desta feita no Open de Barcelona, o espanhol entrou nos 10 melhores tenistas do ranking pela primeira vez e tornou-se o 20.ª adolescente a alcançá-lo – o primeiro desde Andy Murray, em 2007, e o mais novo desde Rafa Nadal, em 2005.
Em maio, um ano depois de ter perdido contra Nadal no Open de Madrid, Carlos Alcaraz encontrava-se na mesma situação. Ia defrontar o rei da terra batida em terra batida no torneio em que ambos jogam em casa e na semana em que celebrava também um aniversário. O ano que tinha passado, porém, tinha sido um ano de crescimento, treino e trabalho. Depois de perder com Nadal no ano anterior, Alcaraz prometeu a si mesmo que iria ganhar um set ao compatriota na próxima vez que o defrontasse. Cumpriu, quando voltou a perder nas meias-finais de Indian Wells. Em Indian Wells, prometeu a si mesmo que iria ganhar dois sets no reencontro seguinte. E também cumpriu, quando ganhou dois sets e a partida nos quartos de final do Open de Madrid.
Seguiu-se Djokovic, número 1 do ranking, nas meias-finais. E Zverev, número 3 do ranking, na final. Carlos Alcaraz derrotou o sérvio e o alemão, conquistou o Open de Madrid, ganhou o quarto título do ano e o segundo Masters 1000 da carreira e fez história em diversos pontos: tornou-se o mais novo de sempre a vencer o torneio; o mais novo desde 2004 a derrotar o líder do ranking mundial; e ainda o primeiro desde David Nalbandian, em 2007, a derrotar três dos top 5 num Masters. Pelo meio, subiu ao sexto lugar do ranking ATP.
Un momento INOLVIDABLE ????????????????????????
???????? @alcarazcarlos03 culminó una semana estratosférica en la Caja Mágica. ¡Ha llegado para quedarse!#MMOPEN pic.twitter.com/69GpCIKHmZ
— #MMOPEN (@MutuaMadridOpen) May 8, 2022
Depois de Madrid, Djokovic disse que “não existem dúvidas” de que pode conquistar Roland Garros. Zverev disse que é “o melhor jogador do mundo atualmente”. Nadal disse que a derrota foi o “início da passagem de testemunho”. E Alcaraz, pessoalmente, também não tem grandes dúvidas. “Posso dizer que sou um dos favoritos a ganhar Roland Garros. Existem vários jogadores incríveis – Nadal, Djokovic, os melhores jogadores do mundo vão estar lá – mas acho que estou pronto para alcançar um bom resultado em Roland Garros”, explicou o espanhol à CNN. Assim como explicou ao próprio treinador.
Antes de ganhar o primeiro ATP Challenger, ainda em 2020 e em Trieste, Alcaraz disse a Ferrero: “Juan Carlos, estou pronto para ganhar um título”. Antes de vencer o primeiro ATP 250, em 2021 e na Croácia, Alcaraz disse a Ferrero: “Juan Carlos, estou pronto para dar o próximo passo”. Repetiu a frase antes de vencer o primeiro ATP 500, no Rio, e antes de vencer o Open de Madrid. Há alguns dias, segundo o treinador, Alcaraz disse a Ferrero: “Juan Carlos, estou pronto para ganhar um Grand Slam”.
“Ele não se limita a dizê-lo. Ele diz estas coisas quando as sente mesmo e é sempre um momento muito especial. Quando esteve no US Open, não me disse nada disto. Quando esteve no Roland Garros do ano passado, não me disse nada disto. Algo mudou. Por isso, vamos ver”, revelou Ferrero à ESPN.
Nem o próximo Nadal nem o próximo Federer: o novo Carlitos
Alcaraz é Carlos para o mundo inteiro mas, para aqueles que o conhecem de perto, é Carlitos ou Charlie. “Carlos é muito sério. É o nome do meu pai”, já desabafou o espanhol. Nas últimas semanas, essencialmente depois da vitória no Open de Madrid, o tenista explodiu no espaço mediático: triplicou os números nas redes sociais, tem recebido dezenas de propostas de patrocinadores numa altura em que já assinou com a Nike e a Rolex e é a new big thing numa altura em que o ténis parece estar novamente na moda.
Pelo meio, conseguiu tirar a carta de condução – até aqui, andava à boleia do fisioterapeuta. Quer comprar o carro de sonho, um Lamborghini que custa mais de um milhão de euros, mas os pais pediram-lhe para esperar. “É o mesmo Carlitos que conheci quando tinha 12 anos. Mais maduro mas com a mesma personalidade, muito simples e com gosto de estar perto das pessoas”, contou Albert Molina à ESPN. Um “gosto de estar perto das pessoas” que fica claro quando não se importa de ficar no court mais uma hora, já depois dos jogos, a assinar autógrafos e a tirar fotografias com todos aqueles que o peçam.
Por ser tão novo, Carlos Alcaraz tem uma capacidade clara para criar e estabelecer uma base de fãs acérrimos que o pode catapultar para o topo do ténis mundial. Pela primeira vez desde o boom dos Big 3, depois de Dimitrov, Raonic, Zverev, Tsitsipas ou até Medvedev, o mundo parece estar decidido a unir-se à volta do próximo grande nome dos courts. E esse nome é Carlos Alcaraz – que não quer ser o próximo Nadal, apesar das óbvias comparações, nem quer ser o próximo Federer, apesar de o suíço ser o seu ídolo. Quer só ser o novo Carlitos.