Reportagem em Berlim
Em Berlim, só os cartazes nos postes de eletricidade anunciam a existência de campanha eleitoral. As eleições alemãs estão meio aborrecidas, diz-se na rua, pois a vitória da CDU/CSU de Angela Merkel está mais que anunciada pelas sondagens, que lhe dão uma vantagem de dois dígitos para o segundo classificado, o SPD, encabeçado por Martin Schulz. Com as duas primeiras posições atribuídas, são os outros partidos com aspirações parlamentares que intensificam a campanha para alcançar o último lugar do pódio: os liberais do FDP (Partido Democrático Liberal), os ecologistas Den Grüne (Os Verdes), os populistas de direita AfD (Alternativa para a Alemanha) e a esquerda anticapitalista do Die Linke (A Esquerda).
Todos eles já atingiram picos e depressões nas intenções de voto e aparecem agora tecnicamente empatados em redor dos 10%. Está em jogo mais do que o prestígio; um terceiro lugar pode permitir ao FDP ou aos Verdes arrancarem em posição privilegiada para a negociação de uma coligação com a CDU ou, caso Merkel e Schulz cheguem a acordo para mais quatro anos de uma grande coligação entre conservadores e social-democratas, oferece a liderança da oposição.
O pensamento de Sarah Jermutus, de 30 anos, ainda não está nessa fase. A diretora de campanha de Os Verdes em Kreuzberg, um bairro jovem e multicultural no coração de Berlim, está focada na organização de ações de rua como a manifestação ecológica planeada para o dia seguinte, no Dia Internacional do Parqueamento. Não tem mãos a medir. Responde a mails, carrega cartazes e atende chamadas até conseguir uma pequena pausa para ir a correr comprar um bilhete para um concerto – de Matisyahu, reggae judeu – e buscar uma sandes de falafel para o almoço. “O partido não anda muito popular nos últimos tempos”, diz Sarah. “É difícil entender a razão, porque muitos dos temas do nosso programa são atuais. Por exemplo, as alterações climáticas, com todas as tempestades e cheias que têm acontecido, deviam ser uma preocupação prioritária. Também insistimos na questão das rendas em Berlim, que ao encarecerem brutalmente estão a obrigar os jovens a sair da cidade”.
Em Kreuzberg, são todos ouvidos para os Verdes. Caso eleitoral único no país, os ambientalistas vencem ali as eleições desde 2002 com margens confortáveis. Mesmo com uma candidata nova este ano, tudo indica que vão voltar a ganhar: “O bairro conta com muitos estudantes, jovens trabalhadores e descendentes de emigrantes que se identificam com a mensagem social e ambiental do partido”, diz Sarah, de costas para uma cartolina que defende a legalização da marijuana na sede de campanha. Lá fora, um rapaz tenta vender haxixe a um hipster de barba ruiva, a dois passos têm uma galeria de arte e a três uma barraquinha turca com frutas e legumes. Assim é Kreuzberg, com barulho, lixo, imprevistos e criatividade, tudo aquilo que faz com que uns adorem e outros detestem Berlim. “Mas o eleitorado do país é bem diferente deste”, diz a estratega de campanha.
Em termos nacionais, Os Verdes estão longe dessa hegemonia. Conseguiram nas últimas eleições nacionais chegar aos 8,4% e as últimas sondagens colocam-nos entre os 6 e os 8%, aquém das metas definidas. Quando Angela Merkel decidiu, na sequência da tragédia de Fukushima, desmantelar gradualmente as fábricas nucleares alemãs, anulou uma das bandeiras dos ecologistas alemães. Mas o enfraquecimento teve outros fatores. “Deveu-se muito à divisão interna do partido”, diz Johannes Hillje, consultor político em Berlim. “Existem duas alas, uma mais conservadora, favorável a uma coligação governamental com Angela Merkel, e outra mais à esquerda, antimilitarista e antisistema. A guerra interna foi ganha pela fação de direita”. Sarah pertence aos derrotados. Não vê com bons olhos a união pós-eleitoral com Merkel, apesar de quase toda a nação a dar como garantida. “Não posso aceitar uma coligação com a CDU como está neste momento, cheia de gente conservadora, que se opõe ao casamento gay, à legalização das drogas leves e até às medidas ambientalistas. Eles estão ideologicamente demasiado distantes de nós”.
Quase todos os analistas vaticinam uma parceria da CDU/CSU com Os Verdes ou com os liberais do FDP. “Mas Merkel não gosta de maiorias fracas, para mais com muita oposição dentro do seu próprio partido. Se não conseguir acordo com o SPD e se a união com os Verdes ou com o FDP lhe der uma maioria de apenas meia dúzia de lugares, ela vai tentar juntar um terceiro partido. Como rejeita qualquer ligação com o AfD e com o Die Linke, a única combinação possível seria com Os Verdes e com o FDP”. A este possível triunvirato os alemães chamam “Coligação Jamaica” (não são apenas os portugueses que inventam nomes divertidos para uniões improváveis), devido às cores dos partidos envolvidos: o preto da CDU, o verde dos Grüne e o amarelo dos liberais.
É o amarelo que apresenta os tons mais garridos. Christian Lindner, presidente do FDP e sua figura de proa, apanhou o partido em ruínas, reformulou-o e apresentou-o aos eleitores com uma fachada pintada de fresco. Há quatro anos, o FDP não conseguiu alcançar os 5% — o mínimo para garantir representação parlamentar —, um resultado humilhante para um grupo com assento no Parlamento há 64 anos seguidos e que já teve 17 ministros. Lindner, de 38 anos, percebeu que o programa dos liberais era demasiado redutor: insistia somente no corte de impostos para os alemães abastados. “Estivemos quatro anos nas trevas mas voltámos muito mais fortes”, disse Lindner, que tem carreira militar, num congresso do partido. Desde que assumiu a liderança, em 2013, introduziu a educação e a imigração na agenda interna, pedindo mais investimento em escolas e universidades e reclamando mais controlo nas fronteiras.
Hoje o FDP não só tem praticamente assegurada a reentrada no Parlamento como discute o terceiro lugar, com projeções entre os 9 e os 10%. A cara de Lindner está espalhada pelo país em cartazes modernos e apelativos – fotos a preto e branco com letra rosa e amarela —, em que surge em poses mais comuns a modelos ou apresentadores de televisão. Nos debates em direto, sabe esgrimir com os seus oponentes ao mesmo tempo que comunica diretamente com a audiência. “O problema é que ele é a única cara do partido e não se conhece ninguém para além dele”, diz Wolfgang Merkel, fotógrafo e pintor de Hassloch, na Renânia-Palatinado, que se prepara para votar no FDP pela primeira vez. “Mas tenho esperança que Lindner entre para o governo e que consiga exercer alguma influência junto da Chanceler”.
O dirigente dos liberais percebeu, porém, que na campanha não podia ser meigo com os conservadores: criticou Merkel pela abertura da sua política de acolhimento e pela falta de pulso nas negociações com o presidente turco Recep Erdogan. E também malhou na esquerda – disse que Schulz não percebe nada de economia e que a agenda ambientalista dos Verdes prejudica a economia. “Lindner prefere atacar antes das eleições para surgir aos eleitores como alternativa, mas é altamente provável que não coloque entraves a um casamento com Merkel”, diz Hillje. Tradicionalmente, o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros é entregue ao presidente do partido minoritário da coligação. Lindner é um forte candidato. Mas as suas posições sobre a Crimeia fizeram soar alertas vermelhas: defendeu que a Europa devia reconhecer a anexação russa do território ucraniano e aliviar as sanções contra Moscovo.
As divisões internas do Die Linke
O fantasma da capital russa paira sobre o partido que se senta mais à esquerda no Bundestag (parlamento alemão). Ao contrário dos seus partidos gémeos na esquerda europeia – como o Bloco de Esquerda ou os espanhóis do Podemos –, associados a uma esquerda urbana e moderna, o Linke tem de conviver com uma conotação histórica com o regime soviético da Alemanha de Leste, de onde vêm alguns dos seus dirigentes. “Temos várias fações e opiniões dentro do partido que, embora fortalecendo o debate democrático, confunde parte do eleitorado”, diz Artur Mangold, 24 anos, recém-licenciado em comunicação a frequentar um segundo curso de arquitetura na Universidade de Artes de Berlim. Artur acaba de sair de uma reunião do partido na delegação de Charlottenburg, no centro de Berlim, onde se discutiram temas como a justiça social e soluções para travar o aumento das rendas na cidade. “Toda a gente diz que a economia alemã está forte, mas o certo é que as desigualdades entre ricos e pobres, o número de pessoas que precisam de apoio social e os sem-abrigo aumentaram durante o governo de Merkel”, diz o estudante.
São factos apoiados em estatísticas que o Die Linke não soube capitalizar em votos. O partido terminou em terceiro nas últimas eleições e liderou a oposição nos últimos quatro anos, mas com cerca de 80% do parlamento dominado pela aliança governamental a margem para marcar a agenda política foi muito reduzida. “A grande coligação CDU/SPD facilita o consenso, mas é nefasta para a nossa democracia”, diz Johannes Hillje. “A oposição é tão residual que até tiveram de alterar algumas regras de funcionamento do parlamento para lhes dar mais alguma voz.” E quem mais falou foi a líder da bancada parlamentar, Sarah Wagenknecht, uma economista com um passado de dissidência na Alemanha de Leste que é hoje a porta-estandarte da esquerda. “Mas há muita gente que a considera radical e populista. Por exemplo, numa tentativa de captar votos desviados para a extrema-direita, ela disse publicamente que nem todos os refugiados mereciam entrar na Alemanha”, lembra Hillje. Isso levou a que dois ativistas de esquerda lhe atirassem à cara um bolo de chocolate durante um encontro do partido.
Mas Wagenknecht divide o leme do Linke com Bernd Riexinger – ela mulher e de leste, ele homem da Alemanha ocidental —, num esquema que apela à paridade, mas que expõe as divisões internas. “Provoca uma mistura que não permite a muitos potenciais eleitores do Linke votar neles. Em quem devem votar, se ninguém sabe ao certo quem dirige as coisas?”, comentou o cientista político Oskar Niedermayer, da Universidade Livre de Berlim, ao Politico. Para Artur Mangold, a liderança bicéfala não é um problema, mas sim uma vantagem. O que travou o crescimento do partido, diz, foi o surpreendente posicionamento de Angela Merkel à esquerda em algumas decisões fraturantes, como a legalização do casamento gay e o acolhimento de refugiados.
Porém, o que o angustia é a perda de votos para a extrema-direita do AfD, principalmente no leste do país, onde tem raízes. “É mais fácil cativar a classe trabalhadora com um discurso de ódio, que diz que os estrangeiros têm as oportunidades que eles perderam. Nós, por outro lado, apelamos a que os alemães pobres e os estrangeiros estejam do mesmo lado da barricada contra o sistema que os asfixia”, diz Artur. “Acho que os eleitores do AfD se vão aperceber rapidamente de que afinal as propostas deles são liberais e os deixam de fora.”
AfD: a extrema-direita na Alemanha já não preocupa?
A onda de entusiasmo em redor do AfD atingiu o seu pico em 2015 e em 2016, devido à crise dos refugiados. Os nacionalistas conseguiram eleger deputados em 13 dos 16 parlamentos regionais, alguns dos quais com votações próximas dos 20%. Mas a partir do fim do ano passado, as sondagens passaram a atribuir-lhes resultados mais fracos, colocando inclusive em dúvida se iriam conseguir os 5% necessários para estar no Bundestag. “Houve duas razões fundamentais para esse declínio”, diz Felix Menzel, diretor da revista online Blaue Narzisse, ligada à direita populista. “Primeiro, foram os conflitos internos. Depois, a imigração maciça, que é a principal luta de campanha do AfD, saiu do topo da agenda mediática e passou a ser menos discutida publicamente”.
A fricção interna foi catapultada por um polémico discurso de Björn Höcke, um dirigente regional, num encontro partidário. “Precisamos de uma reviravolta de 180 graus na nossa política de memória”, disse, antes de catalogar o memorial aos judeus assassinados na Europa, em Berlim, como “um monumento da vergonha no coração da capital”. Há riscos que não se podem pisar na Alemanha: o da rejeição de culpa no Holocausto é o mais vincado.
O AfD agitou-se: a líder Frauke Petry saiu de cena e as rédeas foram tomadas por Alexander Gauland e por Alice Weidel, uma financeira lésbica com uma companheira do Sri Lanka, que lançou o histerismo e a incredulidade nos média. “Petry era mais favorável a uma integração do AfD no sistema político, enquanto a linha mais radical do partido o quer manter como plataforma de protesto”, diz Hillje.
O lançamento de Weidel e uma campanha provocante sustentada em cartazes com mulheres em biquini — “Burka? Nós preferimos os biquinis” — está a colher frutos. Nas últimas sondagens, o AfD aparece colado aos 10 a 12%, frequentemente como a terceira força política. Na eventualidade de uma grande coligação entre Merkel e Schulz, os nacionalistas liderariam a oposição. “Não consigo imaginar como, se eles rejeitam ser construtivos e do outro lado ninguém quer trabalhar com eles”, diz Hillje. Para Menzel, o partido tem de aproveitar um possível bom resultado para alargar o seu leque de interesses: “Acho que temos de passar a discutir mais tópicos económicos, sociais e ecológicos”. Weidel já pediu aos legisladores do partido para intensificarem o ritmo de trabalho com o objetivo de assaltar o governo em 2021.
A iminência de um partido da extrema-direita entrar no parlamento alemão pela primeira vez desde a queda de Hitller é, por si só, para a maioria dos alemães, um grande choque. Mas não para Wolfgang Merkel, o artista de Hassloch: “Eles atraem a si uma grande fatia dos eleitores que está farta da Chanceler. Estas sondagens não contabilizam aqueles que têm vergonha de admitir que vão votar AfD. A meu ver, eles podem chegar a um resultado entre os 15 e os 20%”.