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“Sai daqui para fora!”, “Mentiroso!”, “Hipócrita!”. Era quase meia-noite e meia, na passada segunda-feira, quando o ministro das Finanças alemão foi recebido por alguns destes gritos. Christian Lindner, dos liberais do FDP, tentou dirigir-se aos milhares de agricultores que estacionaram os seus tratores em frente às Portas de Brandeburgo, em Berlim, em protesto. “Não vos posso prometer mais ajuda estatal”, disse Lindner, “mas podemos lutar em conjunto para que haja mais respeito pelo vosso trabalho”. Quando o ministro afirmou que “todos têm de contribuir”, foi fortemente vaiado.
O protesto dos agricultores alemães dura desde dezembro, com os tratores a ocuparem os centros das cidades, de Colónia, Nuremberga e Munique e a estenderem-se por quilómetros. Em causa está a decisão do governo de Olaf Scholz de acabar com os subsídios ao combustível agrícola, na sequência de um buraco orçamental provocado por um chumbo do Tribunal Constitucional ao Orçamento de Estado.
Perante a mobilização intensa dos agricultores nas ruas, o executivo da coligação semáforo (sociais-democratas do SPD, Verdes e liberais do FDP) decidiu fasear a medida até 2026. Mas o protesto não abrandou e Lindner tentou mesmo ir acalmar os ânimos às ruas de Berlim — sem sucesso.
À partida, a contestação social de uma classe específica perante subida de impostos não seria propriamente digna de nota. “Num certo sentido, é o que a casa gasta. Grandes protestos de agricultores não são uma coisa rara na Alemanha”, nota ao Observador o professor de Ciência Política Kai Arzheimer. “Contudo, o governo já fez concessões consideráveis e os agricultores não parecem estar preparados para aceitar um compromisso. Um braço-de-ferro prologando entre eles e este impopular governo é uma preocupação extra para o executivo”, explica o académico da Universidade de Mainz.
Johannes Kiess, especialista alemão em mobilização social da Universidade de Leipzig, diz que o tema se tornou particularmente relevante por outra questão: porque está a ser cavalgado por outras forças políticas. “O impacto considerável relaciona-se com o facto de os partidos conservadores estarem a usar os protestos para pressionar o governo. E, para além disso, há atores de extrema-direita, incluindo o Alternativa para a Alemanha (AfD), que estão a tentar beneficiar desta instabilidade. Tudo isto representa uma ampla coligação — e muita atenção mediática.”
A infiltração de grupos de extrema-direita nas manifestações
A resistência política à proposta de corte nos subsídios já chegou a roçar a violência. No início do mês, o ministro da Economia e do Clima, Robert Habeck, foi impedido de sair de um ferry por uma multidão que gritava “Sai, cobarde!”. Pouco depois, Habeck, que é também vice-primeiro-ministro, disse-se “preocupado” por “os ânimos estarem a aquecer tanto no país”.
O professor Kiess nota que as organizações de agricultores se distanciaram claramente daquela ação — convocada nas redes sociais, segundo a procuradoria alemã —, e que este é um sintoma claro de um fenómeno que se regista desde o início dos protestos: a tentativa de grupos de extrema-direita se infiltrarem nas manifestações. “Tem havido muito o uso de palavras de ordem, bandeiras e símbolos ligados à extrema-direita. E foram grupos com ligações à extrema-direita que organizaram o ataque ao ministro”, diz.
Quando se fala em extrema-direita na Alemanha, atualmente, é impossível ignorar a presença da AfD. Fundado como um partido eurocético por intelectuais há uma década, a AfD tem radicalizado a sua mensagem ao longo dos tempos, surgindo hoje como um dos partidos mais musculados da direita europeia.
Curiosamente, o seu último programa eleitoral incluía a medida de fim dos subsídios estatais aos combustíveis agrícolas — mas, agora, o partido assume-se como defensor das reivindicações dos agricultores. “A AfD não quer saber dos agricultores, mas vêem aqui uma oportunidade para provocar o caos e pressionar o governo. Qualquer crise é uma janela de oportunidade para os fascistas”, sentencia o professor da Universidade de Leipzig.
Kai Arzheimer não é tão taxativo: “Na maior parte das cidades, o papel da extrema-direita nos protestos é marginal. A AfD só está a tentar surfar a onda”, diz o académico. “Contudo, em alguns dos locais onde o partido tem mais força, apoiantes da AfD (a maioria não-agricultores) têm conseguido dominar as manifestações.”
Algumas provas sustentam as afirmações destes dois investigadores. Uma equipa da BBC especializada em redes sociais detetou a presença de grupos da extrema-direita (“Os Saxões Livres”, “A Terceira Via” e “A Pátria”) em canais de Telegram ligados aos protestos. E no estado do leste da Turíngia, o responsável pelos serviços de informações locais afirmou taxativamente à CNN que essa “infiltração” foi detetada: “Os extremistas, a maioria da extrema-direita, usaram os protestos completamente legítimos dos agricultores para lançar apelos nas redes sociais para os seus propósitos e para encorajar os seus membros a marchar com os agricultores.” Isso, inclui, diz Stephan Kramer, a AfD — que, desde 2021, está classificada pelos serviços secretos locais como “um movimento extremista de extrema-direita”.
“A radicalização e a normalização da AfD andam a par e passo”
Essa classificação do partido como um “movimento extremista de extrema-direita” surgiu na sequência de uma radicalização cada vez maior das afirmações públicas de dirigentes do partido. E isso tem coincidido com um crescimento eleitoral: em outubro, a AfD conseguiu os seus melhores resultados de sempre no oeste da Alemanha, ficando em segundo e terceiro lugar, respetivamente, nas eleições locais dos estados de Hesse e da Baviera; em dezembro, elegeu o seu primeiro autarca, Tim Lochner, na cidade de Pirna (Saxónia); e, atualmente, o partido é o segundo melhor colocado nas sondagens nacionais, acima dos 20% das intenções de voto, e tem fortes possibilidades de vencer nas eleições locais deste ano na Saxónia, Turíngia e Brandeburgo.
É algo que Arzheimer classifica como atípico, face ao que acontece no resto da Europa, onde partidos mais radicais têm tentado moderar o seu discurso, como o de Georgia Meloni em Itália: “Aqui, a radicalização e a normalização do partido andam a par e passo, algo que há cinco anos parecia impossível”, decreta.
As explicações, diz, são duas. “Uma é o facto de o partido capitalizar com o elevado número de refugiados que chegam ao país e com os impactos económicos e políticos provocados pelo ataque da Rússia à Ucrânia”. A Alemanha teve um aumento de 64% no número de pedidos de asilo concedidos a refugiados entre 2021 e 2022; ao mesmo tempo, foi um dos países mais afetados pela decisão de evitar fontes de energia vindas da Rússia, com o aumento do custo de vida a ter elevado impacto nos eleitores, a par de uma recessão económica.
Por outro lado, diz o professor de Mainz, “o público já está entorpecido face às declarações chocantes dos líderes [da AfD], que depois são caracterizadas como ‘mal-entendidos’.” Um dos protagonistas dessas declarações pode mesmo vir a ser eleito em setembro como responsável do estado da Turíngia: é Björn Höcke, alvo de vários processos judiciais por usar slogans do Partido Nazi como “Tudo pela Alemanha” e decretar “A Morte do Povo Alemão” através da “Grande Substituição” de imigrantes — uma teoria racista que advoga que populações não-brancas tencionam dominar a Europa através da demografia, tendo deliberadamente mais filhos.
O plano de “remigração” da AfD e os pedidos de ilegalização
As dúvidas de alguns mantêm-se sobre se a retórica xenófoba e racista de alguns líderes da AfD terá tradução no novo programa eleitoral para as legislativas de 2025. No início deste mês de janeiro, porém, uma notícia provocou uma vaga de manifestações contra a AfD por parte daqueles que temem que tal venha a acontecer.
De acordo com o coletivo de investigação Correctiv, vários membros destacados do partido (incluindo o assistente de uma das líderes, Alice Weidel) participaram em novembro numa reunião em Potsdam que reuniu vários grupos extremistas. Ali, foi defendido um plano a que os oradores deram o nome de “remigração”. Na prática, trata-se de um plano para deportar milhões de pessoas da Alemanha: todos os imigrantes (mesmo que legais no país), todos os requerentes de asilo e todos os que “não são adaptam culturalmente” — mesmo que sejam cidadãos alemães.
O partido desvalorizou a notícia, mas não a negou. Um dos responsáveis, René Springer, assumiu-o mesmo com orgulho: “Vamos enviar os estrangeiros de volta para a terra deles. Milhões deles. Isso não é um plano secreto, é uma promessa”, escreveu na rede social X (antigo Twitter).
Wir werden Ausländer in ihre Heimat zurückführen. Millionenfach.
Das ist kein #Geheimplan. Das ist ein Versprechen.
Für mehr Sicherheit. Für mehr Gerechtigkeit. Für den Erhalt unserer Identität. Für Deutschland.
— René Springer (@Rene_Springer) January 10, 2024
Na sequência das notícias sobre o plano de “remigração” da AfD, milhares de alemães participaram em protestos em vários pontos da Alemanha, que contaram com a participação do chanceler, Olaf Scholz, e da ministra dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock. Muitos dos presentes empunhavam cartazes que pediam a ilegalização do AfD.
A discussão foi lançada na opinião pública, com alguns políticos, como uma das líderes do SPD Saskia Esken, a defender oficialmente que o partido seja proibido pelo Tribunal Constitucional. Para isso, contudo, é necessário que haja uma maioria absoluta no Parlamento a propô-lo. E, mesmo que tal acontecesse (sendo que partidos como a CDU se opõem à medida), não é garantido que o Tribunal concordasse. Historicamente, a Alemanha só o fez duas vezes, em 1952 (com o Partido do Reich Socialista) e em 1956 (com o Partido Comunista). Por duas vezes o Tribunal discutiu a ilegalização do partido de extrema-direita NPD e decidiu contra ela, lembra o Die Zeit.
Uma das líderes da AfD, Alice Weidel, disse ao Politico que os pedidos de ilegalização do partido mostram “uma atitude anti-democrática” de quem não tem “argumentos substantivos” de combate. O antigo juiz do Tribunal Constitucional, Gertrude Lübbe-Wolff, avisou que há o risco de essa ser a perceção popular: “Cria-se a ideia de que isto tem como objetivo eliminar a competição política”, disse.
Apesar disso, políticos como o antigo presidente do Parlamento Wolfgang Thierse, continuam a defender medida. Ou uma alternativa, como a que Thierse promoveu: usar o 18.º artigo constitucional para retirar direitos políticos a membros da AfD que possam ser considerados “inimigos da ordem democrática” pelo Tribunal. A petição que o antigo deputado promoveu sobre o líder do partido na Turíngia, Björn Höcke, já conta com quase um milhão de assinaturas. Tudo medidas que, como alerta o investigador Johannes Kiess, podem não ter nenhum efeito no apoio popular de que a AfD goza: “A radicalização deles é funcional, existe porque as pessoas querem um partido fascista”, afirma. “Nos vários casos europeus, os partidos de extrema-direita apresentam-se consoante as estruturas de oportunidade que têm.”
O fim da “cerca sanitária” do centro-direita?
As sondagens parecem reforçar a tese de Kiess. Um estudo recente na Baviera, citado pela Der Spiegel, mostra que 85% dos inquiridos concordavam com a frase “Não me importo com o facto de elementos do partido serem considerados radicais de extrema-direita, desde que continuem a abordar os temas certos.” O “tema certo” é, de acordo com as sondagens, a imigração: “Voto na AfD para que o governo mude o rumo na política de asilo”, disseram 92% dos eleitores no estado de Hesse, segundo o mesmo estudo.
Com a colagem da AfD aos protestos dos agricultores, o mais certo é que o apoio ao partido se mantenha estável, já que a maioria da população diz-se ao lado dos manifestantes. O governo é atualmente extremamente impopular, com Olaf Scholz a ter a pior taxa de aprovação de um chanceler desde 1997 (apenas um quinto de apoio entre os eleitores).
O primeiro reflexo desse descontentamento e subida da AfD deverá ser a vitória do partido de extrema-direita nas eleições locais de setembro. E aí abre-se uma discussão que pode servir de balão de ensaio às legislativas de 2025: devem os partidos manter a sua política de “cerca sanitária” e evitar fazer alianças para governar com a AfD?
Para Johannes Kiess, o mais provável é que esta política se mantenha a nível nacional. O investigador diz, contudo, que as eleições locais servirão de teste para perceber “quão honesta tem sido a CDU [centro-direita] na sua promessa de não cooperar com os extremistas”. Kai Arzheimer concorda e diz que, se os conservadores da CDU e os liberais da FDP o fizerem, o mais certo é “abrir-se uma divisão interna dentro desses partidos”.
O professor da Universidade de Mainz, contudo, diz que a questão pode nem se colocar: “A AfD pode vir a formar governos minoritários ou até chegar perto de maiorias absolutas nos estados de leste que vão a votos este ano”, sentencia. As sondagens parecem dar-lhe razão. Esta quinta-feira, a revista Der Spiegel publicou o primeiro estudo de opinião desde que foi conhecido o polémico plano de “remigração” do partido: a AfD continua firmemente em segundo lugar, com 21% das intenções de voto.