O caderno de encargos é bem longo. Após uma convenção com o mote “levar o país a sério”, o Bloco luta para não perder, ele próprio, credibilidade e recuperar influência, tarefas especialmente difíceis num contexto de maioria absoluta, em que viu a sua votação ser engolida pelo PS e tenta agora recuperar nas sondagens. No embate entre Mariana Mortágua e Pedro Soares, as verdadeiras questões ficam para o dia seguinte.
E são muitas: é preciso fazer oposição ao Governo, mas gerir com cabeça fria os timings da relação (com atenção às movimentações internas no PS); dar força às ruas, mesmo que os movimentos sejam apartidários, e construir a partir delas a sua alternativa política; tentar contornar a ameaça do Chega e recuperar votos em eleições em que o Bloco não tem conseguido vingar — e há quem admita que algumas são praticamente para esquecer.
Oito anos depois do arranque da geringonça, o perfil do Bloco é diferente, mas o partido garante que o eleitorado não mudou — só se deslocou circunstancialmente para os braços do PS. Por dentro, também há desafios: há críticos vão repetindo críticas e acusações contra a direção, e há uma maioria preocupada com a “construção” do próprio partido.
Na rua contra os brilharetes do Governo
Os últimos anos foram passados de derrota em derrota. Desde 2019, quando o partido conseguiu manter os 19 deputados que tinha no Parlamento, o padrão foi-se evidenciando: ainda no mesmo ano, perdeu a representação que tinha na Madeira; em 2021, deu um trambolhão das presidenciais, com Marisa Matias a passar de um resultado histórico de 10% para menos de 4%. Nessa altura argumentava-se dentro do Bloco que em legislativas a história seria diferente, mas em 2022 comprovou-se a tendência, com a maioria absoluta do PS a ditar o encolhimento da bancada do Bloco, de 19 para apenas cinco deputados.
E agora? Para o partido, a chave está nas ruas: é lá que se sente a contestação ao Governo e que se vê o contraste entre os brilharetes orçamentais que o Executivo apresenta e as dificuldades em realidades que tocam toda a gente, como na Habitação.
“As ruas estão contra o Governo”, sentencia, em declarações ao Observador, o dirigente Fabian Figueiredo. “A nossa expectativa e a nossa leitura é que o Bloco possa recuperar naturalmente eleitorado de esquerda, que se identifica com as causas que o Bloco defende, e fazê-lo alicerçando essa recuperação nos movimentos sociais, que estão muito mais vivos e dinâmicos do que estiveram nos últimos anos”, corrobora a dirigente e deputada Joana Mortágua.
Mesmo que os movimentos não sejam partidários — a ideia do Bloco é tentar articular-se com eles, até porque quem integra esses movimentos pensa politicamente. Ou seja, garantir que é associado a essas bandeiras. Há dificuldades óbvias: os sindicatos tradicionais admitem que perdem, pelo menos mediaticamente, contra novos movimentos e os partidos também navegam mares desconhecidos, além de o PCP ter raízes mais fortes nessa área. Mas o Bloco está empenhado em pôr membros do partido a dialogar e a trabalhar de forma “organizada” junto destes movimentos, sentando-se à mesa com eles e tentando fazer pontes. “O BE dialoga com movimentos sociais que expressam descontentamento”, resume Figueiredo.
“O objetivo é dizer que há uma força política que dialoga com esses movimentos e em quem podem confiar. As maiorias não se formam só aritmeticamente. Os partidos também podem ser levados pela força das ruas a assumir compromissos que não se assumiriam. Há forma de serem as ruas a impor as maiorias que se formam na Assembleia”, defende Joana Mortágua, dando o exemplo das cedências que o Governo vai tendo de fazer nas reivindicações dos professores, mesmo que continue sem ceder no centro do conflito: a recuperação integral do tempo de serviço que ficou congelado.
Para o Bloco, é preciso “superar a ideia de crise permanente” que o PS usa para não oferecer soluções, como argumenta a dirigente. Entretanto, o Bloco deve apresentar-se como partido da Habitação, dos salários ou do clima, por oposição ao projeto do PS. E aqui até os críticos internos estão de acordo: a ideia que marca as duas moções é mesmo a de aproveitar as “maiorias sociais” contra a maioria absoluta do PS. Mas há outras ameaças no caminho.
O medo das sondagens e do Chega
Uma delas é óbvia e basta puxar a fita do tempo um ano para trás: a ameaça do Chega — ou melhor, de uma alternativa de direita que inclua o Chega — foi, na análise do Bloco, a principal motivação para a fuga de eleitores que foram parar aos braços do PS e lhe concederam a maioria absoluta, resultado de um apelo ao voto útil que anulou a esquerda. Garantias de que a estratégia não se volta a repetir? Nenhumas.
Aliás, na visão do Bloco, o perigo até aumenta. Por um lado, porque da última vez o que estava em causa era apenas uma subida eleitoral do Chega, quase certa, uma vez que no ano passado só André Ventura tinha assento no Parlamento. Desta vez, o que está em causa não é se o Chega consegue um grupo parlamentar — é se integra um Governo liderado pelo PSD ou não. E a sensação de medo que a hipótese provoca na esquerda, somada a sondagens que não deem conforto a esse eleitorado ou a tracking polls diárias como aconteceu nas últimas eleições, podem ser os ingredientes ideais para mais um desaire.
Dentro do Bloco, a ideia de que essa pressão vai acontecer e até aumentar e que isso interessa ao PS é dada como ponto assente: a conclusão entre os bloquistas não é sequer que os socialistas queiram dar protagonismo ao Chega para enfraquecer o PSD, mas antes que querem dar credibilidade à ideia de que uma aliança à direita com André Ventura pode mesmo acontecer.
“O PS encontra nessa polarização o seu seguro de vida, na ideia de que a única alternativa é entre PS e extrema-direita. Precisamos de contrariar essa narrativa e criar forma de polarizar sobre alternativas à esquerda”, argumenta em declarações ao Observador o dirigente José Soeiro. Um exemplo: o movimento cívico em torno do SNS que sairá à rua, numa manifestação nacional, a 3 de junho, depois de ter acontecido o mesmo na Habitação.
“Junta independentes, pessoas da área do Bloco, PS, PCP — é preciso criar essas respostas à esquerda, de forma unitária“. E, mais uma vez, mostrar “capacidade de organização” e de criar “alianças” com uma “cidadania mobilizada”. Mas o Bloco está consciente de que isso não se faz de um dia para o outro e que esses efeitos não se sentem, pelo menos para já, nas sondagens: “Essas coisas não são automáticas, na política não há automatismos. É um laborioso trabalho político que tem de ser feito”, garante Soeiro.
Aqui, o argumento do lado do Bloco passa por tentar mostrar que a maioria absoluta já provou sozinha que não funciona — a sucessão de casos e polémicas que parecem não ter fim farão o resto, confia o Bloco. Concluindo, PS sozinho não é recomendável e alternativa à direita é um perigo, argumenta o partido. Por tudo isto, importa criar uma solução.
Contra o PS ou com o PS? Uma estratégia a dois tempos
Tal como a ala esquerda do PS acredita, a solução para o Bloco é pôr a esquerda a conversar — mas só mais à frente. Nos corredores bloquistas, fica clara a ideia de que a estratégia política é feita a dois tempos: o atual é de oposição absoluta à maioria absoluta, sem aproximações ao PS e sem baixar a guarda. O que não significa que a situação não mude no futuro. Para os bloquistas, há duas certezas: a geringonça foi uma experiência de valor que mostrou que o Bloco é capaz de (e quer) ter mais influência; com Costa, isso não voltará a acontecer.
Há, por isso, dentro do Bloco quem acredite que um fator verdadeiramente definidor para as decisões futuras do partido terá a ver com a definição interna do PS e com o senhor ou senhora que se seguir. Se antes Pedro Nuno Santos era dado como futuro líder na certa, agora essa hipótese é mais periclitante. Ainda assim, o Bloco insiste: mais à frente — só quando houver eleições à vista, e preferencialmente depois de elas acontecerem — será útil pôr a esquerda a conversar e mostrar que consegue oferecer uma alternativa credível.
Isso não é um problema para agora e no Bloco aconselha-se cabeça fria nesta altura: ninguém irá responder sobre possíveis acordos ou ajudar a pôr o tema em cima da mesa, desvalorizando a postura de oposição do Bloco à maioria absoluta. “É futurismo”, responde Fabian Figueiredo.
Isto vale à direção críticas da parte da moção opositora, a E: “Há uma latitude de ambiguidade exagerada”, defende Pedro Soares ao Observador. “Este período vai atravessar várias eleições. Em nome da transparência e da clareza: qual é o posicionamento sobre um cenário em que o PS não repita a maioria absoluta?”. Para o ex-dirigente, dizer que a questão fica para depois é “fugir”, quando é preciso esclarecer desde logo quais seriam “os termos para um acordo” e quais as “linhas vermelhas” que colocaria ao PS, e que espera que sejam mais firmes e difíceis de apagar do que na geringonça.
Neste momento, o Bloco tem missões mais imediatas: vêm aí as eleições regionais da Madeira, onde o partido precisa de voltar a conseguir assento no Parlamento regional, já que ficou sem representação nas últimas eleições. E depois precisará de preparar os atos eleitorais seguintes, como as eleições europeias, a que Marisa Matias não se recandidatará, ou as autárquicas, tradicionalmente difíceis para o Bloco.
A inglória luta autárquica
Se esses resultados costumam ser maus, as eleições de 2021 comprovaram as piores expectativas: o Bloco perdeu boa parte dos vereadores que tinha conseguido em 2017 e em Lisboa, com a vitória de Carlos Moedas, viu o tema da sua campanha — a possível reedição de um acordo com o PS na autarquia — esfumar-se. Manteve representação em Lisboa e Almada, “entrou” no executivo do Porto e ajudou a eleger a vereadora independente Carla Castelo em Oeiras, numa coligação com o Livre e o Volt.
No Bloco, a ideia é preparar estas autárquicas durante o próximo mandato com um objetivo na cabeça: é preciso estudar os bons exemplos — como o acordo que conseguiu fazer com Fernando Medina ou a associação à coligação de Oeiras — e repetir essa lógica. De resto, no partido admite-se que a ambição dificilmente será fazer do Bloco um partido verdadeiramente autárquico, uma vez que não tem essa tradição e não tem conseguido criá-la: o partido continua a ser visto como uma força nacional e existe a convicção de que é essa a sua vocação.
Não significa isto que o Bloco deixe de tentar melhorar os seus resultados, com os olhos postos nessas experiências: “A implantação no mundo autárquico é um desafio. É preciso aprender com os exemplos positivos, ter um papel mais pró-ativo em assuntos como habitação e mobilidade”, defende Figueiredo, apontando também para os exemplos de sucesso.
A outra dúvida é se o Bloco tem de facto implantação real pelo país fora, sendo que entre os bloquistas se defende que os estudos mostram um voto equilibrado entre zonas urbanas e rurais para desfazer a ideia de que é um partido “de cidade”. “Não estamos satisfeitos, queremos chegar a muito mais gente, queremos enraizar-nos mais no mundo do trabalho, fazer uma ligação forte com os movimentos climáticos, revitalizar o movimento estudantil”, enumera Figueiredo.
Lutar pela classe média e foco nos impostos
A ideia do Bloco não é apenas fazer dos nichos o seu alvo eleitoral, nem limitar-se às causas-bandeira. Até porque isso dificilmente ajudará o partido a crescer significativamente. Para recuperar, o partido está convencido de que tem de falar à classe média, saturada pela inflação ou pelas dificuldades na Habitação, e que muitas vezes fica de fora dos apoios distribuídos pelo Executivo.
Como é que isso se faz? Se o mal está, na raiz, nos baixos salários — o Bloco defende com frequência que os apoios não substituem os aumentos salariais necessários — o partido tem de focar também nas soluções para os impostos que castigam a classe média (até porque para as pessoas que ganham menos não se coloca a questão do IRS). E sabe que esse é um discurso em que a Iniciativa Liberal, que no Orçamento passado desistiu do princípio da taxa única de IRS para propor uma taxa para quem ganha até metade do salário dos deputados, se tem focado — não querendo deixar os créditos do discurso sobre impostos em mãos liberais.
O sinal foi dado por Mariana Mortágua no discurso em que apresentou a sua moção: “Contra a irresponsabilidade [do Governo], quero dizer-vos que o Bloco vai disputar a verdade dos impostos para proteger o povo. Venham o governo e os liberais e a direita defender os seus privilégios fiscais, que terão pela frente uma esquerda intransigente e que sabe fazer contas certas”, prometeu, voltando depois a garantir que uma das prioridades do partido, ao lado das lutas pela Habitação, Educação ou Saúde, será a “justiça nos impostos”.
O “cordão sanitário” e a difícil construção interna
Entretanto, somam-se as críticas internas por esse trabalho de diálogo também ter de ser feito dentro do próprio Bloco, com as estruturas. Fabian Figueiredo e Jorge Costa saíram, antes das eleições de 2022, das listas para se dedicarem ao que foi descrito como a “construção partidária”, mas os críticos continuam a apontar falhas num Bloco onde dizem que as decisões estão centralizadas.
“Tem de haver diálogo dentro dos órgãos entre as várias sensibilidades”, defende Soares, argumentando que os membros de correntes críticas não são “convidados a participar em nada nem têm visibilidade” e que antes das reuniões da Mesa Nacional as posições deveriam ser conciliadas e articuladas tanto quanto possível — em vez disso, defende, há um “cordão sanitário à volta de quem não é da maioria”.
Nos núcleos, Soares descreve um cenário em que há pouco debate interno ou “dinâmicas próprias”, onde devia haver mais “protagonistas e porta-vozes” e onde se decidiu por um “corte total de financiamento” (dado o rombo eleitoral que o Bloco sofreu em 2022) quando se podia ter optado por uma “descentralização”.
A “divergência de fundo” sobre a guerra na Ucrânia
É uma “divergência de fundo”, dizem os críticos, e continuará a ser uma pedra no sapato do Bloco pelo menos enquanto a guerra durar. Embora todos critiquem a NATO e os EUA, a atual direção é mais veemente nas críticas a Vladimir Putin, ao seu regime “oligárquico” e ao “imperalismo” da Rússia — enquanto os representantes da moção E garantem que a comparação entre o poderio dos Estados Unidos e da Rússia é impossível de fazer e que, ao não ir de frente contra os Estados Unidos, o Bloco trai o seu histórico de posições.
O histórico Mário Tomé dizia em entrevista ao Observador ver na questão da guerra da Ucrânia uma posição “oportunista” do partido. E Pedro Soares diz ter ficado “chocado” quando percebeu que o Bloco iria integrar a delegação parlamentar que se deslocou a Kiev, colocando-se ao lado de um regime que os críticos internos classificam como fascista. Já na convenção, perguntou mesmo, a partir do púlpito, o que é que o Bloco “foi fazer” a Kiev.
A direção devolve as críticas, garantindo que defende a “autodeterminação” dos povos e critica todos os imperialismos — e sugerindo que a posição dos críticos se assemelha muito à polémica posição do PCP e que serve para desculpabilizar Vladimir Putin. Uma tensão que não terá motivos para esmorecer nos próximos tempos.