Dezenas de profissionais de saúde do Hospital de Santa Luzia, em Viana do Castelo, acusam o diretor da unidade de cuidados intensivos (UCI) de assédio laboral. Dizem-se com medo, intimidados, à beira do esgotamento psicológico e geridos sob uma atmosfera “tóxica”. E, em meados de fevereiro, apresentaram uma queixa ao conselho de administração do hospital.

“Há um constante assédio laboral, moral e quase físico”, conta ao Observador um dos cerca de 40 profissionais de saúde que assinaram a queixa contra o diretor da unidade de Cuidados Intensivos daquele hospital. “O ambiente é hostil, é de hipervigilância. A sensação que temos é que alguém vai ouvir as nossas conversas e lhe vai transmitir posteriormente. Não temos liberdade de expressão.”

O conselho de administração da Unidade Local de Saúde do Alto Minho (ULSAM), a que pertence o Hospital de Santa Luzia, em Viana do Castelo, confirmou ao Observador que vai abrir um processo de inquérito ao médico. Mas o diretor da unidade de cuidados intensivos continuará em funções, incluindo na coordenação do Departamento de Medicina Crítica da ULSAM — que engloba não apenas os cuidados intensivos, mas também os serviços de urgência e intermédios.

Profissionais de saúde dizem que assédio laboral prejudica cuidados prestados aos doentes

A investigação sobre a conduta de José Caldeiro foi instaurada depois de 44 profissionais de saúde — em que se incluem quase todos os enfermeiros dos cuidados intensivos, alguns médicos e técnicos operacionais — terem enviado ao conselho de administração, à direção clínica e à direção de enfermagem uma queixa em que denunciam aquilo que descrevem como um “ambiente de constante crispação, atemorização e, sobretudo, de abespinhamento” no serviço.

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De acordo com a queixa, a que o Observador teve acesso, o caso está “a ter reflexos na vida pessoal e profissional” dos trabalhadores — o que, em última análise, compromete a qualidade dos serviços prestados aos utentes”. Aliás, dois dos profissionais de saúde que assinaram a queixa afirmaram ao Observador que, para o médico visado na queixa, “tudo é mais importante que o doente”.

Questionada pelo Observador sobre o caso, fonte oficial da ULSAM avançou que “o conselho de administração determinou a abertura de um processo de inquérito a fim de averiguar os factos, pelo que não há mais a acrescentar”.

Mas não respondeu sobre que outras medidas foram tomadas na abordagem do caso. Nem como foram geridas outras queixas enviadas anteriormente às chefias do hospital — incluindo a de uma médica que acusou a chefia de despedimento indevido e ganhou o caso em tribunal, tendo o hospital recorrido da decisão.

Enfermeiros dizem que “inexistem condições” para trabalhar com “brio”

Esta nova queixa foi redigida a 2 de fevereiro, uma semana depois de uma reunião entre membros da equipa de enfermagem, e enviado à direção do hospital a 14 de fevereiro, na altura com 30 signatários. Desde então, outras 14 pessoas juntaram-se à lista. Os queixosos representam cerca de 75% dos profissionais de saúde do serviço. São “diversos colaboradores, dos diversos grupos profissionais”, aos quais se juntaram antigos funcionários que estão “solidários” com a causa.

De acordo com o documento, alguns dos profissionais de saúde do Hospital de Santa Luzia que estão no ativo sentiram-se “forçados” a requerer mobilidade de serviço. O objetivo, argumentam os signatários, é “preservamos a nossa integridade emocional e saúde mental, o que não deixaremos de fazer”.

“Não nos resta outra solução do que solicitar que desenvolvam todos os mecanismos legais tendentes a terminar com a situação que é vivenciada no nosso serviço”, apelaram os profissionais de saúde, avisando: a situação testemunhada (e experienciada) por médicos, enfermeiros e auxiliares “permitiria a muitos de nós resolvermos o contrato por justa causa”.

No caso particular dos enfermeiros, “a última reunião demonstrou que, no presente momento, inexistem condições que permitam à equipa de enfermagem efetuar o seu trabalho com o brio e denodo que sempre foi reconhecido”.

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“Doentio” e “tóxico”. Os relatos dos profissionais de saúde na UCI em Viana do Castelo

Em declarações ao Observador, dois dos profissionais de saúde revelaram que o ambiente na UCI do Hospital de Santa Luzia “é doentio e até criminoso”. A ponto de, nos últimos oito anos, quatro enfermeiros terem abandonado o cargo de gestor — um deles permanecendo nessa posição por menos de um ano — por “pressão extrema” alegadamente praticada pelo diretor de serviço.

De acordo com os profissionais de saúde, José Caldeiro segue um estilo de chefia “tóxico” e gere os cuidados intensivos “como um ditador”. Alegam que apressa as passagens de turno, sobretudo entre os enfermeiros; interrompe os clínicos na área dos cuidados intensivos com assuntos relacionados com outras matérias da medicina crítica e procrastina na atribuição de coordenadores aos internos.

Além disso, solicita a outros profissionais de saúde que registem as suas entradas e saídas porque raramente está no hospital; e pede aos colegas que lhe são mais próximos para lhe transmitirem os desabafos que circulam entre os trabalhadores quando está ausente. “A agenda dele é fazer a vida negra, questionar a competência e a qualidade e meter-se em campos que não lhe dizem respeito”, acusam os queixosos.

Depois de a queixa ter sido apresentada ao conselho de administração, a presidência reuniu com os enfermeiros — mas não com os médicos, nem com os técnicos — e terá solicitado a intervenção de uma equipa dos serviços de medicina do trabalho no serviço de cuidados intensivos do Hospital de Santa Luzia.

“Estavam preocupadíssimos”, relatam os dois profissionais de saúde. Mas familiarizados com a situação: segundo os signatários, várias pessoas já tinham solicitado consultas de psicologia porque se sentiam “desconfortáveis” no serviço. “A medicina do trabalho tem conhecimento de que existe uma situação grave de assédio e um ambiente de medo”, asseguram os profissionais de saúde ouvidos pelo Observador.

Queixosos dizem que situação piorou desde que diretor chegou ao topo da carreira

A situação tem vindo a agravar-se nos últimos três meses, denunciaram os profissionais de saúde entrevistados pelo Observador, desde que o diretor de serviço passou a assistente graduado sénior — o topo da carreira médica. “Adquiriu um sentido de impunidade” e “o assédio foi crescendo”, queixam-se.

Recordam-se de um enfermeiro ter ficado “nervosíssimo” por alegadamente ter sido chamado à atenção por José Caldeiro “de uma forma altamente intimidatória, a fazer-lhe peito”. Lembram-se também de um comentário em que o diretor de serviço admitia que “quase partia os dentes” a outro profissional de saúde por causa de uma discórdia profissional. E de alguns membros da equipa ficarem “de lágrimas nos olhos” só de ouvirem desabafos de outros colegas sobre os comportamentos da chefia.

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“Uma coisa que ele faz frequentemente é chamar as pessoas ao gabinete, em que está apenas ele e outra pessoa. Estão os dois contra a pessoa que vai ser advertida, numa postura que muitas vezes é intimidatória”, descreveram os profissionais de saúde.

“Faz chamadas [para os profissionais de saúde do serviço quando estão] nas folgas, nas férias e em descansos compensatórios, para tirar satisfações de coisas menores”, prosseguem: “Situações menores são transformadas em coisas quase pessoais e há uma tentativa de humilhar o outro em público. Tem uma obsessão com pedidos de desculpas pessoais, uma coisa vexatória e humilhante”.

Entidade reguladora não tem processos em curso sobre o Hospital de Santa Luzia

Em resposta ao Observador, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) adiantou que não tem reclamações, nem tem em curso qualquer processo, administrativo ou sancionatório, sobre este tema ou relativo ao Hospital de Santa Luzia.

Mas também esclareceu que os processos de assédio laboral “não se incluem nas competências da ERS”: apenas estão sujeitos à regulação desta entidade “os estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde” em três pontos: o “cumprimento dos requisitos de exercício da atividade e de funcionamento” — por exemplo, os licenciamentos para prestarem cuidados de saúde; a garantia do cumprimento dos direitos dos utentes; e a “legalidade e transparência das relações económicas”.

Ou seja, não se incluem no âmbito da ERS os temas relativos à atividade dos profissionais de saúde: esses estão sujeitos “à regulação e disciplina das respetivas associações públicas profissionais”. Mas, até ao momento da publicação deste artigo, nem a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) nem a Ordem dos Médicos — contactados para disponibilizarem mais informações sobre este caso — deram qualquer resposta.