Quando, no final de janeiro de 1968, chegou a Tomboco, no noroeste de Angola, o alferes miliciano Daniel Gouveia tinha 24 anos e uma namorada, quase noiva, à espera em Lisboa. Acabado de sair da Escola Prática de Infantaria e com o curso de Românicas da Faculdade de Letras de Lisboa no currículo, destoava do resto do pelotão, que só conheceu já a bordo do navio Vera Cruz. A maior parte eram rapazes das aldeias de Trás-os-Montes — “rijos como penedos, rudes e simples, como gostava que fossem”, contou à futura mulher por carta, numa das 206 que lhe enviou durante os dois anos e três meses de comissão no Ultramar e que em abril de 2015, 45 anos depois, publicou finalmente em livro.
O que não lhe contou, pelo menos por escrito, foi o encontro que teve pouco tempo depois de chegar ao quartel, com a mulher que até então tinha tratado de lavar e engomar a roupa do homem que foi substituir. “Fui render um outro oficial que lá estava e que já tinha a sua lavadeira, portanto herdei-a. Sobretudo entre os sargentos e os oficiais, que não tinham muito jeito para lavarem eles próprios a roupa e tinham mais dinheiro, havia o costume de recorrer aos serviços de mulheres locais, lavadeiras, que iam buscar a roupa suja e dois dias depois a traziam lavada e engomada. Às vezes era uma para quatro ou cinco oficiais. E depois havia um aspeto marginal que era faladíssimo, toda a gente sabia: mediante um pagamento extra, algumas lavadeiras faziam também serviços extra”, revela ao Observador.
“Quando se me apresentou, a lavadeira disse-me que fazia esse tipo de serviços ao meu antecessor e perguntou-me se eu também queria. Eu disse que não e ela ficou muito triste: porque já não ganhou tanto e porque eu a rejeitei”, conta o veterano da guerra colonial.
Nem sequer foi por ter algo a esconder — garante nunca ter “usufruído” dos serviços extra (leia-se sexuais) das lavadeiras durante os mais de dois anos que passou em missão em Angola —, que Daniel Gouveia, que tão prolífico foi durante os anos da guerra, nunca escreveu à namorada sobre o assunto. Era uma espécie de regra tácita: “Cá em Portugal, no regresso, com a namorada que se transformava em noiva e depois em mulher, não convinha que se soubesse que o rapaz tinha andado metido com uma ‘preta lavadeira’. E no caso dos oficiais ainda era pior. Portanto, a malta calava-se”.
Já lá, em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, a lei era outra — e em vez de se manterem em silêncio, os militares recorriam à metáfora. “Na altura, na cabeça, já não se usava o capacete de metal pesadíssimo, que fazia calor e não protegia grande coisa, mas um bivaque de lona, com duas palas, a que chamávamos ‘quico’. A farda era composta por calças, camisa e quico. Quando chegava tropa nova e vinham novas guarnições, para saber se a lavadeira concedia favores extra, bastava perguntar ‘E lavas-me o quico?’”, revela o antigo alferes, hoje com 76 anos.
Não há, de entre a extensa literatura produzida sobre o conflito travado entre 1961 e 1975 nas antigas colónias ultramarinas portuguesas, qualquer título sobre as mulheres a que os militares recorriam para se alienarem do stress da guerra. Fossem elas lavadeiras, prostitutas ou “amigas coloridas” — não era a mesma coisa, faz questão de explicar Luís Graça, furriel na Guiné-Bissau entre 1969 e 1971 e criador de um blogue coletivo sobre os anos da guerra colonial.
“Fui com 22, vim com 24, e não tinha namorada, só depois do 25 de Abril é que encontrei a minha companheira, com quem hoje vivo. Tinha uma lavadeira que respeitei sempre, nunca me passou pela cabeça não o fazer. Mas havia uma grande necessidade de estar com uma mulher. Nós estávamos numa guerra muito dura do ponto de vista psicológico, e o álcool e o sexo tinham uma função, como em todas as guerras. Bebia-se muito na Guiné. E depois havia as escapadelas. Quando estava no mato ia para Bissau para poder ter uma refeição um bocadinho diferente, beber uns copos, dormir com uma mulher. Toda a gente sabia que no bairro de Pilão havia mulheres que abriam as portas e dormiam connosco”, revela ao Observador.
No total, no blogue que mantém há quase 16 anos, há cerca de 21 mil posts e 100 mil fotografias, publicados por cerca de 800 veteranos da guerra do Ultramar. “Sobre as lavadeiras há 21 marcadores”, contabiliza Luís Graça. São manifestamente poucos e a grande maioria não versa necessariamente sobre a questão sexual: “É um tema que tem tido alguma alimentação, sobretudo da malta que gostava de tirar umas fotos com as bajudas [as raparigas virgens e solteiras na Guiné-Bissau]. Vínhamos de um país muito mais conservador e pudico, e sobretudo as mais jovens andavam de peito destapado”, começa por contextualizar Luís Graça.
“Conheço oficiais do quadro que deixaram lá filhos. Claro que havia mulheres que começaram por lavar a roupa e depois passaram a prestar serviços sexuais também, mas não podemos generalizar. As lavadeiras vinham todas as semanas buscar as roupas ao quartel, lavavam-nas no rio e depois voltavam com ela passada e recebiam o salário que estava estipulado. Um ou outro militar de facto envolveu-se mais, é natural que houvesse lavadeiras que fizessem favores sexuais, agora é um risco enorme generalizar”, concretiza depois.
“Os soldados viviam em casernas; eu, que era furriel, tinha um quarto com mais quatro ou cinco camaradas; os alferes viviam a três; só de capitão para cima é que tinham direito a quarto privativo. Isso também significa que as liberdades sexuais também não eram assim tantas. Não ia dizer aos meus camaradas, ‘Pá, olha, hoje tenho aqui a minha lavadeira, vocês vão-se embora que eu quero estar aqui um bocado com ela na brincadeira’. É evidente que se podia ir às suas tabancas, mas havia um controlo social, tanto nos quartéis como nas tabancas”, garante o veterano.
Um comentário a um texto publicado no seu blogue pela mulher de um veterano, em jeito de homenagem a “essas valorosas Mulheres que conseguiam um meio de subsistência lavando as roupas dos militares em serviço na Guiné”, revela que em algumas zonas não seria bem assim. Assinada pelo guineense Cherno Baldé e intitulada “Havia lavadeiras… e lavadeiras”, a resposta conta a história de duas lavadeiras, suas primas, “com carácter e comportamentos bem diferentes”, e a forma como cada uma delas era recebida no quartel.
“A mais nova era muito esquisita, secreta, escorregadia, não gostava que ninguém (dos mais pequenos) lhe seguisse os passos e não dava boleia para entrar no quartel com sentinela à porta de armas. Não posso confirmar, mas entre nós, ela era suspeita de andar a fazer maquinações e prestar serviços extra aos seus patrões brancos, do tipo ‘lava tudo’. (…) A mais velha e, também, mais bonita era a nossa preferida, pois nunca se aventurava dentro do quartel sem a nossa companhia. (…) Quando entrava, nós também entrávamos atrás dela, senão nada feito, e as sentinelas já a conheciam de sobra, não gostavam dela mas também não lhe podiam obstruir a entrada”, partilhou o guineense em dezembro de 2011.
O que relatou depois será prova de que o controlo social não seria assim tão apertado e da existência de abusos, mais ou menos graves: “Seguíamos diretamente para a caserna dos Furriéis. Sem cerimónias, e dentro dos quartos, a nossa missão era ficar junto da nossa protegida e gritar caso fosse necessário. Os patrões olhavam para nós com olhos de espantar crianças. Às vezes, na vontade de nos afastar um pouco, havia quem nos oferecesse um pedaço de pão ou uma lata de conserva. Mas mesmo um pouco distanciados pelo engodo, ainda ouvíamos a voz inconformada da nossa irmã resistindo às apalpadelas: ‘Dixa Furriel, dixa! Djubi mininu tchora!’ (‘Deixa Furriel, olha a criança a chorar’)”.
A verdade é que basta uma breve pesquisa online para encontrar referências, sempre fortuitas ou de passagem, às lavadeiras que “serviam” sexualmente os portugueses, o que deixa antever que os casos não seriam tão raros assim. “As lavadeiras muitas vezes não escapavam. Os soldados e até furriéis não estavam com meias medidas”, contou um alferes miliciano anónimo, com comissão em Moçambique, à investigadora Helena Gorjão Neves, autora de “Amor em tempo de guerra: Guerra Colonial, a (in)comunicabilidade (im)possível”. “Eu tinha uma lavadeira que também servia para outras coisas, as verdades são para se dizer!”, assumiu por seu turno, em entrevista ao jornal da Universidade da Beira Interior já em 2010, um outro oficial, enviado para Angola com apenas 23 anos.
“A associação das lavadeiras a atividades que nada têm a ver com lavagem de roupa é relativamente comum quando se conversa com antigos militares da guerra colonial”, diz ao Observador Maria José Lobo Antunes, que escreveu “Regressos quase perfeitos. Etnografia da memória de guerra em Angola” a partir dos testemunhos dos homens do batalhão de artilharia a que António Lobo Antunes, alferes médico, escritor e seu pai, pertenceu entre 1971 e 1973.
Ainda assim, na sua tese de doutoramento, publicada em livro em 2015 pela Tinta da China, a antropóloga faz apenas uma referência, de passagem, ao assunto: “Para estes homens, privados da presença de mulheres, era difícil escapar à sedução da exposição dos corpos e da lascívia que se adivinhava nos seus costumes. Houve quem se deixasse levar pelo que a ausência de roupas parecia insinuar. Décadas mais tarde, muitos recordam histórias com lavadeiras, mulheres negras a quem os militares pagavam para que lhes lavassem a roupa. Nalguns casos, a relação com a mulher não se esgotava no serviço que lhes era pedido (“Quando a gente dizia ‘Vou pôr a roupa a lavar’, já se estava a ver o que era.”)”.
Lavadeiras, mulheres de conforto e bordéis nazis não são comparáveis
À medida que os anos vão passando e os protagonistas vão morrendo, a História tem revelado crimes e excessos cometidos contra mulheres em tempo de guerra. Durante a Segunda Guerra Mundial, sabe-se hoje, milhares de “mulheres de conforto” foram raptadas e obrigadas pelo Japão a servirem sexualmente os seus soldados; e nos campos de concentração nazis foram inúmeras as prisioneiras levadas para os “Sonderbauten”, os blocos especiais onde funcionavam os bordéis criados por Heinrich Himmler para dar um “incentivo adicional” aos trabalhadores forçados.
No Ultramar, muitas lavadeiras contratadas pelos militares portugueses para lhes lavarem e engomarem as roupas acabaram por fazer bem mais do que isso — umas de forma mais voluntária do que outras. Não são, ainda assim, situações comparáveis. Até porque em qualquer um dos outros dois casos as mulheres foram escravizadas sexualmente e obrigadas a fazê-lo por decreto, de forma organizada, militar e nacionalmente — coisa que manifestamente não aconteceu nas antigas províncias ultramarinas portuguesas, garantem ao Observador historiadores e antigos militares.
“Não pense, nem pouco mais ou menos, que a situação fosse de mulheres de conforto. Até porque havia unidades que estavam em zonas em que não havia sequer população e presumia-se no contexto das mulheres de conforto que as forças armadas colocassem nessas guarnições isoladas grupos de mulheres que eram contratadas ou aprisionadas para irem prestar esse serviço. Que eu saiba, isso nunca aconteceu. Aliás, não seria sequer admissível dentro da doutrina militar portuguesa para essa guerra”, garante ao Observador Carlos de Matos Gomes, durante a guerra do Ultramar oficial do exército com comissões em Angola, Guiné e Moçambique e co-autor, com Aniceto Afonso, de “Guerra Colonial”, “Os Anos da Guerra Colonial” e “Portugal e a Grande Guerra”.
“A doutrina militar portuguesa, idêntica à dos franceses na Argélia, era a de conquistar as populações, e se se quer conquistar uma população não se pode exercer uma violência sobre ela. Conquistam-se as populações estabelecendo benefícios e tratando-las bem. Esses serviços de lavandaria, digamos assim, bem como os de guias, ou cozinheiros, eram até uma forma de redistribuir algum dinheiro pelas populações, porque eram pagos e havia até uma tabela em circulação nestas populações que não tinham sistema monetário desenvolvidos”, continua a explicar. “Para as lavadeiras não havia tabela, eram contratos pessoais, mas às tantas havia um preço de mercado que estava estabelecido e até diferia de acordo com os postos e não com a quantidade de roupa: os soldados pagavam menos, os sargentos um pouco mais e os oficiais mais.”
Questionado sobre se os serviços extra também seriam tabelados, Carlos de Matos Gomes explicou que não — mas fez questão de garantir que seriam sempre decididos de forma consensual: “Era uma questão decidida de forma bilateral. E, desde que não houvesse violência, escândalo ou queixas, era do pelouro íntimo e pessoal de cada um”.
Daniel Gouveia recorda que, em Angola, ao contrário do que acontecia com as prostitutas, que viviam na senzala, eram visitadas nas próprias cubatas pelos soldados em dia de folga e pagas preferencialmente em sal, petróleo ou pilhas para o rádio, as lavadeiras visitavam os militares dentro dos quartéis, a pretexto da entrega da roupa lavada, e eram pagas em dinheiro. “Ao contrário do que acontecia noutros sítios onde estive, em completo isolamento, em Tomboco havia uma venda, que na altura já tinha batom e rouge. Lembro-me de que algumas se pintavam quando iam ao quartel entregar a roupa”, recorda o antigo alferes. Que também garante: pelo menos em Angola e Moçambique, realidades que melhor conheceu, esta “troca” seria absolutamente voluntária por parte das mulheres que, por força cultural e meteorológica, só estavam habituadas a cobrir-se com roupa da cintura para baixo.
“Imagine um quartel com 180 homens, todos na casa dos 19 ou 20 anos, ali com uma população disponível. De manhã, as mulheres pegavam em alguidares e tachos de cerâmica e iam buscar água ao rio, para darem banho aos bebés. A seguir traziam água para fazer a comida e aproveitavam elas próprias para tomar banho — e é evidente que o faziam nuas. Ao princípio os soldados iam às escondidas para assistirem ao banho e ficavam muito espantados quando elas lhes sorriam. A carne era fraca, a tentação muita e os portugueses aproveitavam-se das mulheres que tinham à disposição.”, racionaliza o autor de “Arcanjos e Bons Demónios”, “Cartas do Mato” e “África”.
“Na Guiné sei que houve casos de raparigas que se queixaram de estupros, de terem sido violentadas. As comunidades eram mais fechadas, islamizadas, havia mais respeito pelas tradições e pelos costumes — e um deles seria exatamente o de não se misturarem com os soldados, que até eram de outra fé —, mas em Angola não havia violações”, garante.
Amor (e abusos) em tempo de guerra
Mário Vicente chegou ao sul da Guiné-Bissau em 1967, tinha na altura 24 anos e era furriel miliciano. Apesar de grande parte da população local, de etnia fula, ser muçulmana estava a anos-luz de distância no que aos costumes diz respeito, recorda, sobretudo se comparada com os alentejanos de Vila Fernando, concelho de Elvas, de onde era natural.
“Era tudo muito mais aberto do que em Portugal, até a linguagem, era muito calão… A mulher andava mais exposta, com os seios à mostra, havia muito toque, por exemplo, mas elas riam-se até. Lembro-me de uma bajuda que um dia se foi deitar na cama de um alferes, queria ter relações com ele. Ele rejeitou, claro, era um caso grave: se fosse uma mulher era diferente, mas era uma bajuda, virgem, era uma complicação.” Porquê? “Para já, seria obrigado a casar com ela. Desde que fossem virgens, era uma chatice”, garante, em conversa com o Observador.
Hoje, aos 77 anos, aposentado depois de 36 anos na TAP, questionado sobre o papel das lavadeiras junto dos militares, Mário Vicente assume: “Não era como acontecia com as mulheres de conforto, mas davam um certo conforto”.
Deslocado numa zona onde a maioria da população estava sob o controlo do PAIGC, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde fundado por Amílcar Cabral em 1956, recorda 23 meses de trabalho intenso naquele país africano — “De dia construíamos o aquartelamento e de noite fazíamos operações” —, tornados mais suportáveis pela intervenção das mulheres e pelo sexo.
“A lavadeira fazia todo o trabalho. O de lavar a roupa, de lavar a cama… Era uma situação de isolamento, em termos humanos… os homens tinham as necessidades fisiológicas, quer dizer, sexuais, e quando havia facilidade… O problema é que outras vezes não havia facilidade e havia abusos… Havia lavadeiras abusadas e havia outras que gostavam mesmo e faziam honra de dizer que o militar tal recebia os seus favores, também existia isso…”, vai admitindo, meio titubeante.
“Custa-me recordar estas coisas, são histórias muito complicadas… Houve uma prisioneira que nós fizemos que foi violada por um militar… já era casada mas foi violada. E o militar foi morto nessa noite, numa emboscada. Custa a recordar, agora somos muito mais sensíveis. A guerra é uma besta. Na guerra os homens tornam-se irmãos uns dos outros, mas também se tornam bestas…”.
Luís Graça, que também esteve na Guiné-Bissau, apesar de com algumas ressalvas — “A população começou a ter consciência dos seus direitos e, se não fossem respeitados, rapidamente apresentavam queixas às autoridades militares” —, confirma os “excessos” dos militares portugueses para com as mulheres locais. “Aconteceu em casos de violência, de violação de bajudas, em que foram apresentadas queixas e foram abertos processos na justiça militar. Conheço dois casos, de um capitão e de um furriel, que foram julgados na justiça militar por crimes graves, de violação, rapto, e também assassínio e tortura de prisioneiros. O furriel apanhou 7 anos de prisão; o capitão, que vive hoje no Porto, é médico dentista, é que não, não se provaram as acusações e foi ilibado”, revela. “São dois casos que eu conheço, mas havia muitos mais. O exército mantém estes casos em segredo de justiça, ainda hoje não consigo ver os arquivos destes casos.”
Contactado pelo Observador, o responsável pela Direção de História e Cultura Militar do Exército garante que não há registo de queixas de violação ou conduta imprópria apresentadas contra militares portugueses em Angola, Guiné-Bissau ou Moçambique entre 1961 e 1974, nem tão pouco de militares julgados e/ou condenados por esses motivos: “Não temos esses dados, e há aspetos que são tão pessoais que não podem ser divulgados, por parte do Exército houve a preocupação de respeitar a privacidade dos militares”.
“Na altura esta era uma matéria tabu, a questão sexual não era abordada nem no Exército nem na sociedade em geral”, acrescenta o Major-General Aníbal Flambó, avançando que sobre as relações dos militares portugueses em África com as mulheres locais, nomeadamente as lavadeiras, não existe também qualquer registo oficial.
“Primeiro era fome, só depois foi amor”
Associada à presença portuguesa em África, existe a ideia de que a miscigenação dos militares com as populações locais é prova de uma colonização “diferente” das dos restantes países europeus, quase anódina, que integrou totalmente as populações locais e as tornou, de pleno direito e em consciência, também portuguesas.
Em maio de 2011, na Revista Militar, o tenente-coronel António Lopes Pires Nunes defendeu isto mesmo e citou o “ilustre historiador” Roger Bastide, para sublinhar “o facto de o Império Português, ao contrário de outros ter sido feito ‘pas avec l’epée mais avec le pénis’, ou seja ‘não com a espada mas com o pénis’”. No cerne da argumentação, o militar português colocou as lavadeiras e o argumento repetido da inexistência de violações e abusos sexuais: “A relação dos militares com os indígenas e as suas lavadeiras e amigas tinham um carácter de condescendência, não se conhecendo um único caso de violências sexuais graves, o que não sucedeu com outros colonos de outros países europeus”.
Em 2020, ao telefone desde a região onde nasceu em 1968, a 200 quilómetros da capital, Bissau, Fernando Hedgar da Silva discorda totalmente. Filho de um militar português, entre 1966 e 1967 colocado no quartel de Canchungo, pensou durante anos que o pai se chamava “furriel” — e isso, por si só, argumenta, já é uma violência.
Fundador de uma associação de filhos guineenses de pais militares portugueses incógnitos, Fernando continua, aos 51 anos, sem saber o nome próprio do militar, com funções na cozinha, que se envolveu com a mãe, que então vivia na povoação junto ao quartel. E se Sabadozinha Mendes, sua mãe, não trabalhava como lavadeira, o que não faltam entre a cerca de uma centena de membros da associação, garante, são filhos de mulheres que tratavam das roupas dos oficiais, sargentos e praças.
“No meio destas 100 pessoas claro que há filhos de antigas lavadeiras. Com o tempo cheguei à conclusão de que se os portugueses sabiam que as mulheres estavam grávidas e não voltaram à procura dos seus filhos é porque houve violência naquelas relações. Mas em África isso é um tabu. Nunca uma mãe vai dizer a um filho que foi violentada. Nunca uma mãe africana dirá ao seu filho como o concebeu. Nunca, nunca. Falei com várias mães, procurei que me dissessem que foram violentadas, mas não consegui. É tabu”, lamenta. “Eles [os portugueses] dizem que foi tudo normal. Mesmo que não tenha sido, que as mulheres tenham sido violentadas, ninguém vai falar”, conclui, resignado.
Para Carlos de Matos Gomes esta será uma questão universal — e inevitável. “A guerra é um mundo maioritariamente masculino em que os homens exercem a violência e o seu poder sobre as populações; e as mulheres estão incluídas nessas populações.” Ainda assim, reforça, no caso da presença portuguesa em África, este terá sido um problema residual: “As guarnições militares procuravam situar-se perto das populações locais e procuravam atraí-las para o seu mundo, através de benefícios em pequenas obras, como a construção de poços, palhotas, escolas e postos de saúde. Isso implicava uma relação entre os jovens soldados e as populações locais. E essas trocas incluíram também, por vezes, a questão sexual. Que tinha variadíssimas escalas, da qual a menos evidente era a da violência”.
Dependerá sempre do que se considera ou não “violência”. Como argumenta Luís Graça, todas as relações estabelecidas por militares portugueses com mulheres locais foram, por definição, “relações de poder”. “O ambiente também era propício a isso, as estruturas sociais foram abaladas com a guerra, as populações tiveram de se deslocar e de fugir para outros locais, havia fome, e o dinheiro começou a ser valorizado pela população”, justifica.
É exatamente por isso que ao Observador, também ao telefone mas desde Bissau, Fátima da Cruz garante: a relação que a mãe manteve com o pai foi, antes de mais nada, baseada na fome. O amor só apareceu depois. Conheceram-se em 1973 no quartel de Empada, a sul de Bissau, onde Sané, então com 16 anos, foi oferecer os seus serviços como lavadeira, para ajudar a família, que trabalhava no campo, a plantar mandioca, arroz, milho, mancara (amendoim) e caju. “A minha mãe é muçulmana, e os muçulmanos não gostam de explicar como é que trataram com o marido e coisas assim. O que ela me disse é que não foi amor mas falta de comida o que a levou ao quartel para lavar a roupa. Depois o meu pai viu-a, disse-lhe que gostava dela e levou-a para o quartel. E ela ficou grávida”, revela, 46 anos e nove meses depois.
Apesar de continuar sem conhecer o pai, Fátima não lhe guarda rancor, como acontece com Fernando Hedgar. A história que reconta é a de um grande amor travado pela família da mãe, da etnia Biafada e muçulmana, que só pôde dar fruto graças à intervenção providencial de um tio, ele próprio avô de um menino meio guineense, meio português. “O meu avô levou a minha mãe para o sul, para perto da fronteira com a Guiné Conacri para fazer uma corretagem, de forma clandestina, para tirar o bebé”, começa por explicar. “Esse tio foi buscar a minha mãe e levou-a para morar em Mansôa. Foi lá que eu nasci.”
Tudo o que sabe sobre o pai foi a mãe, Sanu Mané, hoje com 63 anos, quem lhe contou: “Era do Porto, tinha 32 anos quando eu nasci e não tinha mulher nem filhos. Era oficial e andava de jipe, era ele que dirigia. Sou Fátima porque a minha avó era Fátima, e da Cruz porque o meu pai tinha esse apelido. Quando nasci a minha avó começou a mandar enxoval e jóias. A minha mãe costumava receber as coisas, mas não sabia mais nada, nunca foi à escola, não tem instrução”.
Na versão que a mãe lhe contou, foi a família materna quem impediu que os pais ficassem juntos: “O meu pai queria levar a minha mãe para Portugal, mas com medo que ela fosse para longe da família e que fosse beber álcool, o meu primo tirou-lhe os documentos e queimou tudo. E ficámos assim, aqui”, lamenta Fátima da Cruz, viúva, mãe de três e avó de dois.
O “assim” foi uma infância difícil, longe da família e da escola, tudo porque era diferente. “Na minha família nenhum é de cor branca, só eu. Foi muito difícil crescer, muito difícil. A minha família é muçulmana, não pode ter nenhum português no meio deles. Eu nasci e fui criada por uma outra avó, que não é mãe da minha mãe, que me levou para casa dela. Não fui à escola, porque quando fui pegaram-me no cabelo, [chamaram-me] ‘branca’, ‘tuga’ e eu sei lá”, recorda.
Mais tarde, depois de a mãe casar, passou a morar com ela, o padrasto e as duas meias-irmãs, mas nem por isso as recordações que tem são melhores. A partir dos 13 anos, passou a acordar todos os dias às 4h da madrugada para fritar doces, que depois metia num alguidar de 50 kg à cabeça e vendia na povoação mais próxima, a cerca de 4 km de distância. Décadas depois, hoje comerciante de roupa em Bissau, mantém a mesma ideia fixa: “Eu quero saber quem é o meu pai. Quem é o meu pai? Eu recusei ter o apelido do pai das minhas irmãs, só quero ter o apelido do meu pai! O meu padrasto costumava castigar-me, mas eu não tomei o apelido dele, que era Dabo. Sou Fátima Celeste da Cruz. Quando vou a casa da minha mãe continuo a perguntar-lhe: ‘Mãe, me diga, quem é o meu pai?’. Ela agora já tem idade para chorar. E chora. Mas não diz nada”.
Na associação a que pertence, explica, há outros filhos de lavadeiras, quase todos com histórias semelhantes à sua, de amor que correu mal — “Temos uma senhora que nos disse que foi violada e que ficou grávida, mas é só uma”.
Não poderão ter sido todas motivadas por erros de perceção; casos houve em que militares se perderam mesmo de amor pelas mulheres que lhes tratavam da roupa, garante Luís Graça, e não só, ao Observador: “Conheço vários casos de homens, camaradas meus, que tinham relações duradouras e vidas maritais, conjugais, com mulheres que muitas vezes começaram por lhes lavar a roupa”.
Por um motivo ou por outro, quase todos acabaram mal. “Vivi com uma rapariga na Guiné dois anos e mais dois anos. Era lavadeira, comecei por lhe dar roupa a lavar e acabámos a viver juntos. Era cá casado e com filhos. Quando vim de vez chorava ela e chorava eu. Nunca me hei-de esquecer daquela mulher”, contou um sargento à investigadora Helena Gorjão Neves, que por sua vez, confidenciou ao Observador, fixou para sempre a emoção da conversa.
Já Daniel Gouveia recorda a desilusão do cabo que se apaixonou pela lavadeira, com quem passava tardes românticas fora do quartel, e que acabou por engravidar. “Informou a família de que ia ser pai e passou a receber daqui roupa de bebé, casaquinhos e roupinhas. Recebia as encomendas e aguardava entusiasmado, mas no fim teve um balde de água fria” — o bebé não era dele.
Traições pagas com galinhas e partos no meio da aldeia
No fundo, concede o veterano de guerra, que em Tomboco testemunhou a colisão de dois mundos, o erro talvez seja mesmo o de tentar ver a História de forma rígida. No que toca às lavadeiras e à relação que os militares com elas mantiveram terá havido ambos: amor e abusos. Sendo que os conceitos também podem diferir um bom bocado, conforme o prisma por que são vistos.
António Lobo Antunes, na compilação de cartas que publicou em 2005 e que em 2016 foi adaptada ao cinema, terá sido apenas o escritor mais célebre a documentar as enormes diferenças culturais percebidas naquela altura de guerra: “Quimbo em festa. Um coxo que por lá há, agarrado a um pau, com uma perna normal e outra da largura de um palito, enrodilhada e seca como uma vide, foi-se a uma garota de uns nove anos e, como eles dizem, “tirou-lhe o cabaço”: em vez de oito anos de prisão maior celular, a malta teve uma alegria enorme. Seguem-se oito dias de batuque à roda da casa onde a miúda permanece fechada, e um gozo imenso dos 60 gatos pingados da população. A mãe da violada dança com um frenesim tal que o espectro do enfarte se pode ver por trás dela. Velhas veneráveis sacodem-se. O coxo triunfa como um herói de respeitável proeza”.
Há mais. Daniel Gouveia recorda como, em Angola, as traições conjugais eram facilmente perdoadas mediante o pagamento de três galinhas, uma cabra ou uma vaca; e como os nascimentos eram atos públicos, celebrados por toda a aldeia. “A parturiente vem para fora da cubata, põe uma esteira, duas mulheres mais velhas amparam-na pelos braços, enquanto ela se põe de cócoras, e a criança nasce no meio da maior alegria, há palmas e a aldeia toda a dançar. Claro que a mãe grita com dores e sua, mas a criança acaba por sair e cai em cima da esteira. Ainda ajudei alguns bebés a nascer, devo ter feito uns quatro partos e meio. Nos casos difíceis, vinham pedir-nos ajuda e dávamos apoio sanitário à população.”
Já Luís Graça lembra-se de se espantar por, na Guiné-Bissau, quase toda a população muçulmana praticar a poligamia. “Conforme as posses económicas os soldados milicianos tinham duas, três ou quatro mulheres. Havia algumas práticas culturais que para nós eram completamente estranhas. Uma vez fui para uma tabanca, para reforçar a defesa. Ia lá ficar durante 15 dias, por isso deram-me uma casa. À noite apareceu-me uma mulher que queria dormir comigo. Isto fazia parte da cultura da hospitalidade local e aconteceu-me mas fazia-se muito discretamente”, revela o antigo furriel, que acredita que muito do que aconteceu entre portugueses e africanas se deveu às condições excecionais que se reuniram naquele momento e naquele espaço.
“As mulheres africanas naquela época não tinham aquele pudor natural e cultural e andavam nuas, e muitas delas eram belíssimas raparigas. Depois temos de ter em conta que estamos num país em guerra, onde estão milhares de soldados de 20 e poucos anos, muitos deles casados e com filhos, que já trabalhavam, já eram vividos (nessa altura, os universitários não iam para a guerra, tinham a possibilidade legal de ir adiando a incorporação até terminarem os cursos). Resultado: a guerra é feita por muita gente, sobretudo da província e das pequenas cidades, que tem o 5.º ou o 7.º ano, alguns nunca tinham visto o mar, ou a grande cidade e muitos deles tinham uma grande inexperiência sexual”, justifica o responsável pelo blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné.
O facto de o próprio Exército não ter percebido que essa parte do relacionamento dos militares com as populações poderia ser problemática, acusa o veterano, também não pode ser ignorada. “Havia um problema de saúde pública grave com que o exército nunca conseguiu lidar bem. As doenças sexualmente transmissíveis, sobretudo as blenorragias [gonorreia], eram frequentes mas só existiam algumas instruções muito simples e muito secas sobre os cuidados de higiene sexual. Hoje haveria seguramente distribuição maciça de preservativos, mas naquele tempo eram um luxo, o enfermeiro no posto médico tinha uma caixinha só para os amigos e para quem pedia muito. Havia a célebre bisnaga antivenérea do laboratório militar, que éramos aconselhados a usar depois do banho e de uma relação sexual, e mais nada”, acusa o antigo furriel.
“Tudo para dizer que este drama não está estudado. O exército era extremamente hipócrita, nunca teve preocupações com a saúde sexual dos militares — era um assunto de que nem se falava, mas não era o único. Os jovens iam para África mal preparados em todos os capítulos, até do ponto de vista militar. Não sabiam a cultura, não sabiam a história e não falavam o crioulo, que era o único veículo de comunicação. Mas os soldados portugueses não eram uma cambada de violadores, nada disso.”