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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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Ana Nunes de Almeida, da comissão independente. "Bispos em todas as dioceses conhecem os nomes dos implicados em casos de abuso"

A socióloga da comissão que estudou os abusos na Igreja diz que os bispos não precisam da lista dos abusadores para investigar — e assume que os membros do grupo estão "emocionalmente desfeitos".

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Mais de um ano depois de terem sido mandatados pela Conferência Episcopal Portuguesa para produzir o relatório, os elementos da comissão independente estão “emocionalmente desfeitos“, diz a socióloga Ana Nunes de Almeida, uma das seis pessoas que integraram o grupo de trabalho, em entrevista ao programa Sob Escuta, da Rádio Observador. “Lidar ao longo de um ano com sucessivos testemunhos” foi perturbador para os membros da comissão — um grupo liderado pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, que incluiu ainda o psiquiatra Daniel Sampaio, o ex-ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, a assistente social Filipa Tavares e a cineasta Catarina Vasconcelos.

Foi mais de um ano a estudar o fenómeno dos abusos sexuais de crianças na Igreja Católica em Portugal, uma realidade que estava, em larga medida, por investigar devido à histórica recusa da Igreja em reconhecer o problema. Da longa investigação, que marcou a atualidade noticiosa dos últimos meses, resultou um relatório final, apresentado na última segunda-feira na Fundação Calouste Gulbenkian, com números que impressionam: 512 testemunhos de abuso foram validados pela comissão e a partir desses dados a comissão estimou um “número potencial de 4.815 vítimas” na Igreja Católica portuguesa entre 1950 e a atualidade.

Abusos na Igreja. Relatório da comissão é apenas a ponta do “icebergue”. Tudo começa agora

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Sobre o relatório, Ana Nunes de Almeida sublinha que a estimativa de 4.815 vítimas potenciais é conservadora, mas avisa que a falta de tempo e de recursos impediu a comissão independente de levar a cabo um inquérito com uma amostra representativa da totalidade da sociedade portuguesa — o que, necessariamente, impede que se façam extrapolações com base nos resultados do estudo. Ainda assim, a socióloga assume que os números reais serão muito maiores, já que os dados apontam para a grande probabilidade de terem ficado em silêncio muitas vítimas entre a população mais velha, menos escolarizada e mais rural, onde a figura do padre mantém grande influência social.

Uma das vertentes do trabalho da comissão passou por entrevistar os bispos das várias dioceses espalhadas pelo país. Ana Nunes de Almeida participou em todas essas entrevistas, e descreve: “Só numa minoria de casos senti aquele movimento empático nos bispos, uma centelha de humanidade, de compaixão, de dizerem ‘isto que aconteceu é qualquer coisa'”.

A falta de tempo e de recursos também limitou a capacidade da comissão para quantificar o número de abusadores no país. Ainda assim, revela Ana Nunes de Almeida, a comissão conseguiu identificar através dos testemunhos que recebeu cerca de 120 alegados abusadores pelo nome. Essa lista, que inclui maioritariamente padres, mas também leigos que trabalham para a Igreja Católica, está a ser cruzada com os dados que foram encontrados nos arquivos eclesiásticos pelos especialistas que colaboraram com a comissão nesse processo. Depois, ainda terão de ser retirados os nomes daqueles que já morreram — para que seja enviada para a Igreja e para o MP a lista dos alegados abusadores no ativo (que Pedro Strecht já disse que deverá ser de pouco mais de 100 pessoas).

Ainda assim, Ana Nunes de Almeida diz que a Igreja não precisa de esperar pela lista para começar a agir: “Neste momento, os bispos em todas as dioceses conhecem os nomes da sua diocese que estão implicados em casos de abuso.” A socióloga assume também que se impõe saber quem são os bispos portugueses que ocultaram casos de abuso — a comissão independente assumiu o compromisso de manter o anonimato das conversas mantidas com os bispos portugueses, embora tenha ponderado publicar o nome dos bispos ocultadores, acabando por decidir não o fazer. Espera, contudo, que a Igreja tenha “o discernimento suficiente” para agir em conformidade com o relatório.

Antes de integrar a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, Ana Nunes de Almeida, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, tinha liderado o estudo sobre Maus-Tratos às Crianças na Família, encomendado pela Assembleia da República ao Centro de Estudos Judiciários em 1999.

Ana Nunes de Almeida falou em entrevista ao Observador esta sexta-feira

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

“As crianças não são, na sociedade, protagonistas de primeira grandeza”

Antes de falarmos sobre o trabalho da comissão independente, queria perguntar-lhe se já leu a manchete do Observador da manhã desta sexta-feira. Contamos a história do padre Anastácio, da ilha da Madeira, um caso bastante conhecido em Portugal, que se tentou entregar à justiça e que acabou por não conseguir. Que reação merece da comissão independente, que enviou casos ao Ministério Público, que tem pedido a investigação desta realidade por parte das autoridades?
Li a notícia de manhã enquanto estava a tomar o pequeno-almoço, um bocadinho à pressa, para vir ter convosco. Não tenho palavras. Parece quase uma situação de absoluta displicência, não ter a noção do que está em causa. Isto põe a nu, é um sinal de como funcionam, pelo menos, certos setores da nossa justiça. Uma pessoa que tomou a decisão de se entregar à justiça, que está desaparecida, que era procurada desde 2018, creio eu, e, pelo que li à pressa, ele vivia calmamente em Portugal, sem se esconder, não estava na clandestinidade como membros do PCP antes do 25 de Abril. Fazia a sua vida normal. Ele quer entregar-se hoje, pelo seu pé, por sua iniciativa, e anda de serviço em serviço, de guichet em guichet, a dizerem-lhe: “Olhe, não é aqui, é no outro lado da rua.” Agora não como ex-membro da comissão independente, mas como cidadã: eu gostava de ter a confiança na justiça de que, por um lado, vai investigar seriamente aquilo que lhe chega às mãos, e sobretudo quando tem um alegado criminoso à porta, não o recebe com indiferença, como se nada fosse.

Que sentimentos pode gerar, por exemplo, nas vítimas que estão a ver as notícias?
Uma revolta enorme. Isto é um desrespeito por todas as pessoas que foram vítimas de abusos sexuais atrozes, que ficaram com as suas vidas devastadas. Se houve coisa que este relatório mostrou foi a devastação que o abuso sexual provoca na vida das pessoas. Muitas destas pessoas estão vivas; muitas destas pessoas, de que o padre em causa abusou, estão vivas.

Poderá até haver outros crimes, eventualmente, dado o perfil.
Exatamente. Mas o que é isto? A justiça deve-nos explicações!

É algo que vem na continuidade de uma postura do Ministério Público? Consultando todos os processos que a comissão enviou para o MP — com exceção de três, que estão em segredo de justiça —, percebemos que o MP nem sequer pediu à Polícia Judiciária para investigar os casos e limitou-se a arquivá-los, dizendo que não havia prova. Há aqui uma resistência do MP em tocar na Igreja?
Não sou jurista e percebo pouco do sistema judicial português, portanto, não quero entrar em discussões técnicas. Mas pode ser essa uma hipótese. Não querer mexer numa questão melindrosa com a Igreja Católica portuguesa. Mas, atenção, foi a Igreja Católica portuguesa que pediu o estudo. Por outro lado, tenho a sensação de que, no caso de crianças, muitas pessoas que trabalham na justiça continuam a olhar para as crianças como cidadãos de segunda. São crianças, isto diz respeito a crianças. As crianças não são, na sociedade portuguesa, protagonistas de primeira grandeza.

A palavra é desvalorizada.
É desvalorizada a palavra das crianças. As crianças em Portugal — apesar de Portugal ter ratificado todas as convenções internacionais, europeias, etc., sobre os direitos das crianças — não são cidadãos de primeira grandeza como os adultos. Há aqui uma questão geracional. Como sabem, na Convenção sobre os Direitos da Criança, está-lhes assegurado o direito de proteção, o direito de provisão, mas há qualquer coisa de radicalmente novo que traz a convenção: o direito de participação das crianças nos assuntos que lhes dizem diretamente respeito.

"Se houve coisa que este relatório mostrou foi a devastação que o abuso sexual provoca na vida das pessoas."

Fica afetado esse direito com estes casos.
Com certeza. Fica claramente afetado com isto. E deixe-me dizer: não gostei de o ouvir falar de menores, abuso de menores.

Deveríamos falar em crianças, é isso?
Nós queremos falar de crianças. Exatamente porque [quando se fala em] menor parece que a criança está num estatuto inferior aos maiores, que são os adultos. É menor, vale menos. Falamos de crianças.

Vítimas “responsabilizadas pelo abusador” por “serem a causa do abuso”

Vamos falar do relatório propriamente dito. A comissão recebeu 512 testemunhos…
…não, recebeu mais. Recebeu 564 e invalidámos uma série deles.

A partir dessas 512 situações, a comissão estimou um “número potencial de 4.815 vítimas”. É um número quase 10 vezes superior ao de testemunhos recebidos. Acreditam que é uma estimativa por baixo?
Claro. Gostava, para já, de dizer o seguinte: isto não é bem uma estimativa do número de crianças abusadas nesta época, neste arco temporal entre 1950 e a atualidade. As 4.303 crianças a que nós chegámos é um número obtido a partir dos casos referenciados pelas 512 vítimas que testemunharam diretamente. Tivemos de fazer uma operação de equivalência (partindo de] números muito concretos que nos eram dados. As vítimas diziam: “Olhe, por este padre nós fomos abusadas três, eu e as minhas duas primas.”

No relatório dizem, por exemplo, que “alguns” é três; “muitos” é 10; “todo o colégio” é 100. Como é que estabeleceram estas equivalências?
Foi um critério, que assumimos, que é grosseiro e por enorme defeito. Estamos a falar de 4.303 crianças que se podem deduzir destes 512 testemunhos. Agora, reparem: as pessoas, quando estão a prestar o seu testemunho, referem-se a uma determinada época, a um ano que estiveram no colégio e depois saíram do colégio. A pessoa abusadora pode ter permanecido no colégio por mais tempo — e nós não temos esse rasto.

Ao longo do último ano, nas várias conferências de imprensa — e mesmo no relatório final da comissão — tem-se feito referência ao “efeito icebergue”, que foi estudado internacionalmente e que estima que só conheçamos 20% a 30% da realidade. A partir daqueles 512 casos, isso dar-nos-ia uma estimativa de 2 mil casos. Como é que estas duas estimativas convivem?
Temos de ver as características da amostra. Ao contrário do que, por exemplo, fez a comissão francesa, que trabalhou com dois tipos de amostra — uma que é exatamente do mesmo tipo da nossa; outra que é uma amostra estatisticamente representativa da população francesa —, aqui temos uma amostra enviesada. Porquê? Porque nós, quando partimos para o terreno, desconhecemos completamente o universo das vítimas. Não tínhamos dados absolutamente nenhuns. Agora já há qualquer coisa que se sabe sobre este território do abuso sexual em Portugal e na Igreja. Mas, quando partimos para o terreno, íamos completamente às escuras. A tatear. Portanto, a única solução que tínhamos no prazo estipulado era lançar a rede. Ou seja, colocar um inquérito online e esperar que as pessoas viessem até nós e o preenchessem. Portanto, temos de ter em conta de que são pessoas, como aliás se vê na caracterização da amostra, muito escolarizadas, o que é uma diferença abissal face à população portuguesa. A maioria da amostra tem a licenciatura ou graus superiores à licenciatura; o grupo profissional mais representado é o das profissões liberais e científicas; são, sobretudo, pessoas de áreas urbanas e cosmopolitas, que certamente estão habituadas a trabalhar na internet, a trabalhar com computadores, e que têm uma literacia digital que lhes permite preencher um inquérito. Portanto, desta amostra não podemos fazer qualquer extrapolação para o universo.

Porque não é representativo.
Ao contrário do que aconteceu com a equipa francesa. A equipa francesa trabalhou com uma amostra igual à nossa e é interessante ver aqui alguns pontos em que a nossa se destaca. Mas trabalhou sobretudo com uma amostra estatisticamente representativa, ou seja, em que na amostra estavam representadas as características da população francesa.

A socióloga Ana Nunes de Almeida pertenceu à comissão independente que no último ano estudou a realidade dos abusos de menores na Igreja em Portugal

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Acha que ficou então muito silêncio nas zonas mais rurais do país, muita gente que não falou?
Acho que sim. Nas pessoas mais velhas, nas pessoas menos escolarizadas, nas pessoas que não estão habituadas a usar a internet, que são incapazes de preencher um inquérito. Pessoas que dizemos — não gosto muito destas etiquetas — do “Portugal profundo”. Há “Portugais profundos” em áreas urbanas. Pessoas que estão afastadas e que estão aqui completamente de fora.

Meios mais fechados onde a Igreja também ainda tem uma predominância maior.
Comunidades pequenas, onde ainda hoje a figura do pároco… Isso, aliás, foi-nos dito por um sacerdote que veio ter connosco para dar o seu testemunho e nos dizia que há muitas aldeias do país onde não há médico, não há correios, não há tribunal, as únicas pessoas que lá estão muitas vezes são o presidente da junta e o padre. São comunidades onde tomar a palavra é ainda um ato de maior coragem. Portanto, não podemos fazer a extrapolação que fizeram os franceses, a partir da amostra estatisticamente representativa.

Percebemos, pela associação Quebrar o Silêncio, que há muitas vítimas que, após a publicação do vosso relatório, ficaram em stress psicológico. Também sabemos que, quando se toca neste assunto, é normal que uma vítima sofra mais com isto. Previram esta possibilidade?
Não só previmos como pensámos muito nela e isso foi muito discutido dentro da comissão. E faz parte, aliás, de um dos pontos do relatório chamado “dilemas éticos”. Ou seja, não há qualquer dúvida de que o abrir a ferida, falar-se disto, tem a enorme vantagem de desbloquear silêncios — foi o facto de a comunicação social ter colaborado connosco e trazer o problema para a praça pública que nós conseguimos que os testemunhos chegassem até nós e que vítimas saíssem do silêncio. Tivemos quase metade das pessoas que nos contactaram para quem era a primeira vez que estavam a falar disto.

48%.
Sim, 48%.

E havia um volume maior de testemunhos depois de aparecerem publicamente a dar uma conferência, não é?
Sim, havia uma relação nítida, uma associação claríssima, entre momentos de pico na comunicação social e a chegada de testemunhos até nós. Por um lado, para estas vítimas, isto representou um ato de coragem extraordinário, porque foi vencer a culpa, vencer a vergonha que injustamente recai muitas vezes sobre elas. Elas sentem-se culpadas, elas sentem-se com vergonha daquilo que lhes aconteceu, porque foram muitas vezes responsabilizadas pelo abusador de serem a causa do abuso.

Acham que contribuíram para esse crime.
E perguntam: “Mas porque é que isso me aconteceu a mim e não aconteceu aos outros? É com certeza porque eu tinha características que fizeram de mim um alvo preferido. Eu tive culpa nisto.” Mas, além das pessoas que falaram, há todas as pessoas que ficaram em silêncio e que se sentem, provavelmente, ainda mais culpadas, porque não falaram, porque não deram o seu contributo, voltaram a abrir a gaveta que aparentemente estava fechada e resolvida e, agora, ao longo do último ano, foram confrontadas outra vez com a experiência traumática, viveram-na, voltaram a revivê-la sozinhas com a publicação do relatório, com a leitura do relatório, com a leitura dos casos, em que as pessoas se reconhecem, passaram pelo mesmo. São histórias semelhantes.

Contactaram-vos?
Sim, contactaram.

Têm um número de contactos depois de segunda-feira?
Depois de segunda-feira, suspendemos o inquérito online, porque as nossas funções acabavam. Mas mantivemos um email onde pudemos, de certa maneira, dar resposta a vítimas — e a pessoas que foram vítimas de abuso sexual que não testemunharam e que, agora, vêm dizer: “Eu também quero dar o meu testemunho. Não tive coragem de dar, mas quero dar agora.”

E o que fazem a esses contactos? Para quem encaminham?
Pois. É um problema. Claro que, se fossem caso não prescritos, não tínhamos dúvida em reenviar para o Ministério Público.

Sendo histórias antigas…
Sendo histórias antigas, respondemos a todas as pessoas a agradecer.

"Há muitas aldeias do país onde não há médico, não há correios, não há tribunal, as únicas pessoas que lá estão muitas vezes são o presidente da junta e o padre. São comunidades onde tomar a palavra é ainda um ato de maior coragem."

Fecharam a estatística no final de outubro. Em novembro e dezembro receberam quantos testemunhos?
Recebemos muito poucos. Foi interessante, porque as pessoas estavam muito atentas à comunicação social. Recebemos mais uns quatro ou cinco, mas não entraram [no relatório final]. Porque, como vocês imaginam, fechar em 31 de outubro para ter o relatório pronto em janeiro é de loucos.

Das mais de 500 vítimas que vos contactaram, quantas pediram ajuda psicológica?
Uma minoria. Vamos cá ver: nos inquéritos, nos testemunhos que nos chegaram online, muitas delas, imensas delas, uma percentagem muito substancial, diz que uma das formas que a Igreja tinha de reparar estes crimes seria contribuir para um acompanhamento psicoterapêutico. Isso era importantíssimo, é um pedido que se faz imenso. Há vítimas que dizem: “Eu quis tratar-me, percebi que não conseguia vencer isto sozinho ou sozinha, até falei disto à minha volta…” As pessoas precisam de acompanhamento psicoterapêutico.

Já soubemos, esta semana, que a Igreja está a ponderar criar uma bolsa de psicólogos e psiquiatras para ajudar gratuitamente as vítimas.
Mas onde é que vão ficar essas bolsas de psiquiatras e psicólogos?

Associadas às comissões diocesanas — essa é uma questão a que já iremos —, mas a pergunta é: destas que pediram ajuda, e que disse que foi uma minoria, o que foi feito a essas pessoas?
Em relação às pessoas que prestaram o seu testemunho online, anónimas, não podíamos fazer nada. Registámos, está no relatório e é uma das recomendações que fazemos. Houve as pessoas que pediram entrevistas presenciais. É curioso, porque as pessoas que vieram às entrevistas presenciais estavam, a maioria delas, em apoio psicoterapêutico. Já tinham esse apoio. Algumas disseram-nos que foi o próprio terapeuta, quer psicólogo quer psiquiatra, que as aconselhou a vir falar connosco. Como também houve algumas que foram os sacerdotes que aconselharam. Mas essas pessoas estão a pagar do seu bolso o tratamento. Há aqui uma realidade com que temos de nos defrontar.

Tocou num ponto, há pouco, relativamente ao facto de a maioria dos casos estar prescrita. Vinte e cinco foram enviados para o MP, a esmagadora maioria dos casos não vai poder ser investigada pela justiça civil. Mas uma das propostas da comissão prende-se com o aumento do prazo de prescrição para os 30 anos de idade da vítima. Já houve nos últimos dias especialistas a dizer que não chega. Devia ser mais ambiciosa essa recomendação?
Não sou especialista em Direito e estas propostas não surgem por acaso. Surgem na sequência de um grande debate teórico entre profissionais da especialidade. Penso que a recomendação que saiu da comissão, de 30 anos, é uma proposta coerente com aquilo que dizemos, é uma resposta que corresponderia à maior parte dos casos que nos chegaram às mãos. Pessoalmente, quando ouço pessoas dizerem que isto não devia ter limite de idade, que em qualquer altura as pessoas deviam denunciar… Bom, penso que vivemos num Estado de Direito.

Mas perto de metade das pessoas falaram convosco pela primeira vez e a média de idades estava acima dos 50 anos.
52, sim.

Portanto, até aos 30 anos, fazendo as contas, parece que não chegará.
A partir de agora, as coisas podem mudar. Mas não quero meter-me numa discussão jurídica. Discordo da ideia de não haver limites.

A socióloga Ana Nunes de Almeida trabalhou ao longo do último ano na comissão independente que estudou os abusos de menores na Igreja

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Igreja não teve “o mínimo de interferência”

Esta comissão foi criada por decisão da própria Conferência Episcopal, no final de 2021. Em vários momentos referiram que a Igreja vos deu total liberdade e independência para o trabalho, elogiaram a coragem da Igreja, etc… Mas foram surgindo alguns sinais de resistência interna. Por exemplo, o psiquiatra Daniel Sampaio chegou a dizer, numa entrevista ao Público, que a Igreja não estava muito empenhada em divulgar o vosso trabalho. E, agora, com o relatório final, ficámos a saber que duas dioceses nem responderam ao vosso pedido de entrevista. É certo que uma delas (a diocese de Setúbal) já esclareceu a situação. De modo geral, sentem que a Igreja queria, realmente, esta investigação?
Não tenho dúvidas de que há um setor da Igreja que queria, verdadeiramente, este estudo. E gostava de reafirmar aqui a total independência e liberdade científica e intelectual com que trabalhámos ao longo deste ano.

Está a falar dos bispos?
Estou a falar dos bispos. Há também os superiores, que estão num nível da hierarquia — os superiores e superioras das congregações religiosas. De facto, vejo que há pessoas que criticam, dizem que a coragem é tardia, mas a comissão coordenadora da Conferência Episcopal teve coragem em solicitar este estudo, e sobretudo em não querer ter o mínimo de interferência sobre o programa de estudo que delineamos, a nossa metodologia, etc. Portanto, desse ponto de vista foi uma experiência de total liberdade e autonomia para nós. De outro modo também não a faríamos.

A Igreja, agora com a Conferência Episcopal liderada por D. José Ornelas, rompeu com o discurso anterior da Igreja Católica?
Completamente.

Acha que esse marco ficará para a história?
Sim. E espero que não seja só uma questão do passado, porque é uma questão sobretudo para o futuro. Agora, como já esperávamos, a Igreja não é um bloco único. Estou a falar da hierarquia da Igreja. Exatamente porque nos apercebemos de que a Igreja não era um bloco único, tivemos a preocupação de entrevistar, um a um, os bispos no ativo e alguns superiores e superioras provinciais de institutos religiosos que trabalham na área da infância. Porquê? Por um lado, eles tinham-nos encomendado o estudo. Por outro lado, para as pessoas das Ciências Sociais — e é bom também o público dar-se conta do contributo importante que as Ciências Sociais podem ter nestes grupos de trabalho —, era importante reconstituirmos — eles eram aquilo que chamamos informadores privilegiados, porque estão dentro da hierarquia, estiveram dentro da discussão que conduziu à encomenda deste trabalho, teriam falado entre si sobre a questão e o problema dos abusos sexuais. Portanto, eles eram informadores privilegiados. E, por outro lado, interessava-nos reconstruir as suas biografias familiares, escolares, espirituais, para percebermos o que está por detrás destas pessoas — para tentar compreender estas pessoas.

E encontraram padrões que nos possam ajudar a explicar, por exemplo, aquelas dinâmicas de encobrimento que foram registadas na Igreja ao longo dos séculos?
O que encontrámos foram sensibilidades diferentes. Não há dúvida nenhuma, não encontrámos nenhum bispo ou superior ou superiora geral que se mostrasse contra a existência da comissão, ou contra a encomenda deste trabalho. Eram sempre palavras muito elogiosas, de grande esperança naquilo que poderíamos encontrar, e de um grande apoio em matéria de “nós tínhamos de fazer isto, a Igreja tinha de fazer isto”.

No relatório estão refletidas algumas críticas dos bispos à comissão.
À maneira como trabalhámos. Ou seja, bispos que consideraram que estávamos a fazer muito barulho na praça pública, e que devíamos fazer o trabalho em silêncio. Ora, como é que queríamos dar voz ao silêncio estando nós silenciosos? Havia dúvidas sobre a metodologia que seguíamos. Mas, na generalidade, havia um grande acordo quanto à urgência e à necessidade deste trabalho. Depois, o tom daquilo que os bispos consideravam importante é que era muito curioso. Para uns, já era claríssimo a necessidade da purificação da Igreja. Houve bispos que nos disseram que “depois da Inquisição, isto é o problema mais grave com que a Igreja Católica portuguesa se confronta. Não há volta a dar, batemos no fundo e só a partir daqui é que podemos levantar-nos”. Outros bispos consideraram que, por exemplo, o Papa Francisco estava a andar depressa demais. Não havia necessidade de ir com tanta pressa. Bispos em que o discurso era sobre a [necessidade de] colocar a prioridade nas vítimas, dizer “a Igreja tem de mudar de uma vez por todas, não podemos estar a defender a nossa reputação, por a reputação da Igreja acima de tudo porque o sofrimento da vítimas é qualquer coisa de intolerável, e as crianças são pessoas que merecem respeito, têm direitos, etc…”

E houve bispos que não estavam alinhados com essa visão?
Não falaram disso.

Para Ana Nunes de Almeida, os bispos não precisam de esperar pela lista dos alegados abusadores para começar a investigar

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Refletiu-se uma atitude ainda clericalista em alguns?
Não diria clericalista. Repare, era difícil, como membro da comissão independente, estrategicamente, era errado do ponto de vista de um bispo colocar-se nessa posição. Mas era muito curioso ver os aspetos que eles acentuavam nos seus discursos. Ora, a questão da dor e do sofrimento das vítimas, o sentir, foi raro, confesso — fiz as entrevistas a todos, as entrevistas eram sempre por duas pessoas, e só numa minoria de casos é que senti aquele movimento empático nos bispos, de sentirmos uma centelha de humanidade, de compaixão, de dizerem “isto que aconteceu é qualquer coisa”.

Quer destacar alguns exemplos positivos?
Não vou falar de nomes. Tenho um compromisso de anonimato e vou mantê-lo até ao fim.

Ainda assim, em abril do ano passado, vocês, numa das conferências, disseram que tinham já notado que havia alguns casos de encobrimento por parte de bispos no ativo.
Os próprios bispos falaram de ocultação.

Eles próprios assumiram?
Claro que sim. Não há dúvidas nenhumas para mim de que houve ocultação, que houve bispos que julgavam que resolver o problema era mudar os padres de paróquia. Mas isso tem de acabar, e houve bispos que nos disseram claramente isso.

Assumiram que o fizeram?
Não, que eles o fizeram não.

Mas a comissão disse que tinha encontrado indícios de encobrimento por parte de bispos que ainda estão hoje no ativo.
E mantém. Não falámos de encobrimento — ocultação.

Não se impõe saber quem são esses bispos?
Impõe.

Porque é que não divulgaram nomes?
Porque temos um compromisso de anonimato com as pessoas que entrevistámos. Assim como não divulgamos nem locais de abuso nem nomes de vítimas de abuso, não divulgamos nomes de bispos.

Bispos não precisam de esperar pela lista da comissão para investigar

No próximo mês, a Conferência Episcopal vai reunir-se em Assembleia plenária para estudar o relatório e tomar decisões. Não teme que haja decisões da Igreja em Portugal, relativas à proteção das vítimas, que venham a ser tomadas também por bispos ocultadores? Preocupa-a?
Preocupa-me. Mas acredito que os dirigentes da Igreja, pelo menos aqueles que encomendaram o estudo, tenham o discernimento suficiente para perceber o que está aqui em jogo.

Noutros países, uma das consequências imediatas da publicação do relatório foi um conjunto de demissões de bispos, porque vinham nomeados no documento. A comissão ponderou em algum momento apontar os nomes dos bispos que encobriram ou ocultaram casos?
Ponderámos e decidimos não o fazer.

Pelo compromisso de confidencialidade com a Conferência Episcopal?
Não é nenhum compromisso de confidencialidade com a Conferência Episcopal. Quando entrevistámos bispos e superiores e superioras gerais, fizemo-lo garantindo o seu anonimato.

A garantia é para com o entrevistado?
Com o entrevistado, claro.

"Houve bispos que nos disseram que 'depois da Inquisição, isto é o problema mais grave com que a Igreja Católica portuguesa se confronta. Não há volta a dar, batemos no fundo e só a partir daqui é que podemos levantar-nos'. Outros bispos consideraram que, por exemplo, o Papa Francisco estava a andar depressa demais."

Mas não pergunto apenas relativamente aos entrevistados. Pela vossa recolha de informação genérica junto das vítimas, terão encontrado também eventualmente indícios de encobrimento ou de ocultação. Nesses casos, não ponderaram divulgar o nome dos bispos?
Publicamente, não. Agora, como sabem, vamos entregar uma lista, que estamos a fazer com o maior cuidado, de alegados abusadores à Conferência Episcopal. Mas devo dizer-lhe uma coisa: neste momento, os bispos em todas as dioceses conhecem os nomes da sua diocese que estão implicados em casos de abuso.

Portanto, não precisam de esperar pela lista para começar a agir?
Não.

Abusadores, não ocultadores, aqueles que constam dessa lista?
Sim. E, atenção, o nosso trabalho desde o início tem como ponto de referência, e como lugar primordial de análise, a vítima. Partimos das pessoas vítimas. A Igreja evidentemente que entra, mas o nosso estudo não é um estudo sobre ocultação, não é um estudo sobre abusadores, não é um estudo sobre a Igreja Católica. É-o indiretamente porque o impacto na Igreja Católica é óbvio. Mas a nossa unidade de análise é a pessoa vítima, a reconstrução através da sua narrativa, da sua realidade única e irrepetível.

Vamos então falar sobre a questão dos abusadores e dos agressores sexuais. Um dos aspetos que saltam à vista no relatório português, sobretudo em comparação com outros, é um foco primordial nas vítimas e, talvez, alguma escassez de informação sobre os agressores. Por exemplo, em França, a comissão entrevistou um conjunto de padres abusadores que já tinham cumprido pena. Pensaram fazer algo do género para completar o relatório?
Pensámos em imensas coisas, mas tínhamos um ano à nossa frente

E recursos limitados.
Recursos limitados e os franceses tiveram quase três anos para trabalhar.

Mas também tiveram a pandemia que travou alguma atividade.
Sim, mas a pandemia não impede as entrevistas. Nós fizemos as entrevistas por Zoom.

Porque é que não ficámos a saber, por exemplo, o número de agressores que identificaram nos testemunhos?
Porque é muito difícil saber isto. Porque quando as vítimas não nomeiam o agressor, e a esmagadora maioria delas não o faz, nós não sabemos, por exemplo, se vítimas diferentes se referem ao mesmo abusador. E há muitas que se referem.

Conseguiram perceber isso através do cruzamento dos estudos?
Sim.

Mas não era possível, por exemplo, fazer uma estimativa conservadora, como fizeram no caso das vítimas?
Era. Mas, lá está, tempo. Tempo. E, sobretudo, para fazer uma estimativa correta teríamos de analisar com muito cuidado todos os dados que vieram dos arquivos. E vamos ter essa lista de abusadores nomeados com nomes, no ativo e mortos. Vamos ter a lista de todos os alegados abusadores, para ser correta, cujo nome apareceu não só na base de dados da comissão independente como, também, que os historiadores descobriram nos arquivos ou que os próprios bispos e superiores e superioras descobriram nos arquivos. Porque, atenção, houve esta colaboração também, houve nomes de abusadores que foram encontrados pelos próprios dirigentes na Igreja nos seus arquivos históricos.

E deram-nos aos historiadores?
Sim.

Entretanto, soubemos pelo coordenador da Comissão, Pedro Strecht, que vai ser enviada uma lista com pouco mais de 100 nomes dos alegados abusadores ainda no ativo para o Ministério Público e para a Conferência Episcopal. O que nos pode dizer sobre essa lista? Têm um número exato?
Não vos posso dizer nada, porque estamos a trabalhar no assunto.

A comissão independente esteve em funções entre janeiro de 2022 e fevereiro de 2023

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Mas é uma lista de padres no ativo?
Não só padres no ativo, mas todos os padres.

Esta lista de 100 não será só padres no ativo?
Não.

Foi o que foi dito inicialmente por Pedro Strecht.
Sim, mas para ser absolutamente correto, temos cerca de 120 nomes identificados ou descobertos através da base de dados da Comissão Independente. E a estes 120 nomes de pessoas que estão vivas ou que já morreram e que estão na base da Comissão Independente vamos ter de juntar os que foram descobertos a partir dos arquivos.

E depois tirar os que já morreram para entregar ao Ministério Público?
Sim, não fazia qualquer sentido entregar ao Ministério Público nomes de sacerdotes falecidos.

Há mulheres entre esses nomes?
Há mulheres abusadoras. Uma minoria. Estou a lembrar-me de pelo menos dois casos, freiras, no âmbito de uma instituição de acolhimento de meninas de meios desfavorecidos ou órfãs. E estou a lembrar-me de uma chefe de escuteiros.

Portanto, incluídas quer naquela estatística que apresentaram quer também nesta lista de nomes que poderá ser enviada?
Claro, se tivermos um nome, conseguiremos.

O padre é “uma figura em que à partida se confia”

Uma das vossas recomendações à Igreja é a revisão do segredo de confissão. A expressão é apenas usada assim — não pedem uma reversão, nem um fim do segredo de confissão. Sabemos, através do relatório, que pelo menos 14,3% dos relatos de abuso que vos chegaram aconteceram no confessionário. Mas tiveram relatos relatos em que o segredo de confissão, essa figura do sigilo, tenha sido usada para manipular vítimas?
Sim. Ou seja, uma vítima que é abusada no confessionário, mas não só: em casa do sacerdote, ou no carro, ou na família da própria vítima. Mas, no confessionário, dizia-se: “Tu não vais contar nada porque isto se passa aqui dentro.” E, portanto, o miúdo ou a miúda saíam com, por exemplo, a ideia: “Vais ter uma penitência” etc. O que reforça o sentimento de culpa da criança. E reforça o seu silêncio.

Através do relatório também parece haver muitos relatos de abusadores que usam uma certa referência ao divino para culpabilizar as vítimas.
Absolutamente. Ou seja, dizer-lhes que o que está a acontecer é porque o Deus o quer, “Deus vai-te recompensar”, “Deus escolheu-te”, etc… E depois não esqueçam que para estas crianças que viviam que em famílias com práticas religiosas, portanto, que estavam integradas em rituais e em rotinas da Igreja Católica, a figura do padre não é uma figura qualquer. É uma figura em que à partida se confia. Ele tem o estatuto, não só de adulto (que é típico no caso de um abuso sexual de criança, que é um adulto, é uma relação de poder, logo aí, entre um adulto e uma criança), mas aqui há um poder simbólico e espiritual daquele adulto sobre aquela criança, que é uma criança que acredita em Deus.

Daí que o abuso seja particularmente mais grave por ser uma traição a essa confiança?
É uma traição, exatamente. E, portanto, imagine a perturbação com que a criança fica, ao ser abusada por um adulto com estas características.

Do vosso relatório, e da conversa que estamos aqui a ter hoje, percebemos que ainda há muito trabalho por fazer. Vocês, aliás, fizeram uma proposta para a criação de uma comissão que prolongasse este trabalho e fizesse um pouco mais. Estariam disponíveis para continuar em funções?
Não. Acho que tivemos a nossa função — as pessoas não se devem manter nos cargos. Fizemos a nossa tarefa a tempo e horas, entregámos o nosso relatório e, portanto, deve ser outra comissão, não só com o objetivo de estudar. Nós éramos um grupo de estudo, não éramos uma equipa da Polícia Judiciária que anda à procura de criminosos. Muitas vezes, as pessoas confundiram-nos com esse perfil. E não éramos uma equipa de acompanhamento psicoterapêutico, embora tivéssemos um cuidado extremo no acompanhamento das vítimas que vinham até nós. Devem ser outras pessoas que, além de grupo de estudo, se preocupem com o acompanhamento e em arranjar soluções concretas para aquele indivíduo em concreto.

"Nós éramos um grupo de estudo, não éramos nem uma equipa da Polícia Judiciária que anda à procura de criminosos, muitas vezes as pessoas confundiram-nos com esse perfil."

As comissões diocesanas não podem cumprir essa função? Têm sido também um pouco criticadas por vocês. Aliás, no vosso relatório é claro que, pelo trabalho das comissões diocesanas, que não se destacou, é então criada esta Comissão Independente. As comissões diocesanas não têm estado muito contentes com este feedback, mas a verdade é que percebemos que as pessoas preferem recorrer a um órgão independente do que à Igreja.
Em primeiro lugar, na origem desta comissão independente esteve justamente uma avaliação feita pela CEP de que, apesar de terem sido criadas em 2019, alguma coisa se passava com as comissões diocesanas porque não lhes chegavam testemunhos, nem queixas, nem pessoas acorriam até elas. E vários bispos que entrevistámos disseram: “Bom, isto não está a funcionar, para termos a noção do que se passa não pode ser a partir das comissões diocesanas.”

Os próprios bispos assumiram que as comissões diocesanas não estavam a funcionar?
Não é “os próprios bispos”, nem são todos os bispos. Nas entrevistas que tivemos com bispos, houve alguns que nos fizeram esta avaliação. Portanto, nós pensámos: “Temos de pedir a uma comissão independente que faça esse trabalho, porque não pode partir das comissões diocesanas.” Portanto, por um lado, há uma avaliação de alguns setores de bispos que é deste teor. Por outro lado — e não vou fazer juízos de valor sobre o funcionamento das comissões diocesanas –, de que é que nos apercebemos ao longo deste trabalho? Que não foi fácil contactar com as comissões diocesanas, embora houvesse do seu coordenador geral, portanto, da comissão nacional, o maior espírito de abertura e de diálogo com o coordenador da nossa comissão.

Estamos a falar do antigo procurador-geral da República José Souto de Moura?
Sim, Souto de Moura, exatamente, sempre impecável nos contactos que teve com a Comissão Independente — mas estou a falar do ponto de vista prático. Muitas vezes em Portugal há esta obsessão com o ter regulamentos, tudo muito bem pensado, etc. Mas, e depois, na prática? Como é que isto funciona? Levava tempo a responder-nos, e tivemos muitos relatos de vítimas em que, por um lado, as comissões funcionaram muito bem, mas por outro lado o funcionamento da comissão diocesana foi exatamente o contrário daquilo que devia ser. A vítima confrontou-se com uma espécie de equipa de juízes que a avisaram sobre a importância do que ela ia declarar, que pensasse bem porque aquilo que ela ia dizer porque poderia ter um impacto difamatório sobre o alegado abusador…

Houve pessoas demovidas de apresentar queixa?
Exatamente. “Mas tem provas, não tem provas? O que é que nos quer dizer sobre isso?”

A comissão diocesana terá agido de certa maneira como continuadora da ocultação, em alguns casos?
Não sei se é por falta de preparação técnica para lidar com vítimas, mas se houve uma coisa que aprendemos nestes meses é que uma vítima de abusos sexuais, a primeira coisa que precisa de ouvir ou sentir, quando chega até nós, é empatia imediata com a sua história, que acreditem nela. Nunca se pode à partida pôr em causa aquilo que ela nos quer dizer. Depois, falta de resposta às vítimas. Vítimas que esperaram meses por uma resposta, vítimas que depois de terem contactado a comissão diocesana ficaram outra vez meses à espera de um segundo contacto. E, reparem, há comissões diocesanas que são presididas por sacerdotes.

Isso é um problema?
É um problema, claro.

Bispos até — por exemplo Lisboa, com D. Américo Aguiar.
Sim, talvez. Não sabia, estava a pensar noutro caso. Tínhamos no nosso inquérito uma pergunta em aberto que é: “Porque é que decidiu dar agora o seu testemunho”? E é muito importante a Igreja ler porque é que as pessoas acorreram a responder à comissão independente e as características de imparcialidade de independência da comissão, de estar fora da Igreja, era qualquer coisa de muito importante, a reputação profissional dos membros da comissão independente; a comissão independente oferecia segurança, oferecia anonimato, tinha uma forma muito simples e muito acessível de fazer a queixa, a queixa podia ser feita de forma anónima, etc. Portanto, o que é que isto veio revelar: que, de facto, se criarem estes canais de comunicação em que as pessoas podem ter confiança, em que podem falar abertamente de tudo o que entenderem, sem que ninguém as julgue ou ponha em causa a verdade do que nos conta, as queixas aparecem.

Ana Nunes de Almeida assume que o trabalho de investigação aos abusos de crianças deixou os membros da comissão "emocionalmente desfeitos"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

A resposta à primeira pergunta, então, é que as comissões diocesanas não poderão fazer este trabalho que a Comissão recomenda que seja feito. Muito menos prestar o tal apoio psicológico.
O apoio psicológico tem de ser fornecido através do Serviço Nacional de Saúde por profissionais independentes, psicólogos, psiquiatras que estejam no Sistema Nacional de Saúde, e como dizia o Daniel Sampaio haver uma espécie de “via verde” para vítimas de abuso sexual.

Em geral?
Em geral. É uma coisa que gostava de dizer aqui: o que é muito preocupante é pensarmos que estamos a falar de uma ínfima parte dos abusos sexuais que acontecem na sociedade portuguesa. Não tenho dúvidas nenhumas de que a maior parte dos abusos sexuais contra crianças acontecem, como aliás veio mostrar o relatório francês na amostra estatisticamente representativa da população francesa, e toda a literatura nos diz isso. Os abusos acontecem em meio familiar, onde há exatamente os mesmos problemas de ocultação, de vergonha, de culpa — uma teia de cumplicidades tremenda. Portanto, era muito importante que houvesse essa via verde a que qualquer pessoa vítima de qualquer abusador ou abusadora pudesse recorrer.

Como é que todo este processo ao longo deste último ano vos marcou pessoalmente? Sentem-se emocionalmente afetados por todo este trabalho?
Acho que nos sentimos emocionalmente desfeitos. Posso falar por mim: já tinha feito, nos anos 1990, um estudo sobre maus-tratos às crianças na família, e isso já me tinha afetado. Mas lidar ao longo de um ano com sucessivos testemunhos… Isso foi, talvez, o que mais me chocou: a devastação que isto causa na vida de uma pessoa. Foi tremendo. Sou socióloga e tinha uma escala de sofrimento na minha cabeça, no sentido de dizer: “Bom, há abusos como os abusos de penetração etc., que destroem a vida de uma pessoa, mas depois talvez outras formas de abuso como pequenos toques, conversas, etc., deixam as pessoas com menos trauma.” Estava completamente errada, mas completamente. É por isso que é muito importante ouvir as vítimas. O nível de devastação destes crimes é terrível, e vivermos com a consciência direta disso é um peso muito grande. Para mim, pessoalmente, foi uma experiência transformadora.

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