O corpo de Filomena de Jesus Gonçalves foi encontrado na noite de 21 de novembro de 2012, deitado no chão da sua casa, no número 86 da rua António José de Almeida, com mais de uma dezena de disparos na cabeça, no peito e na barriga. Foram familiares que, na ausência de resposta aos telefonemas, encontraram o cadáver e deram o alerta. A mulher de 80 anos estava esvaída em sangue, no canto da sala onde passava algum tempo a olhar pela janela.
Uma semana depois, a inspetora da Diretoria do Norte da Polícia Judiciária (PJ) Ana Saltão foi detida por suspeitas de ser a autora do crime. Na tese da investigação, Saltão teria usado uma Glock, uma pistola usada pelas forças de segurança, para balear Filomena Gonçalves, a avó do marido — também ele inspetor na mesma diretoria. A Glock não era, porém, a arma de serviço de Ana Saltão, que teria furtado uma outra das instalações da PJ para consumar o crime, segundo concluiu a investigação coordenada entre as diretorias do Centro e do Norte. Ana Saltão foi ouvida no Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra e, sete dias depois do homicídio de Filomena Gonçalves, foi lhe aplicada a medida de coação máxima: a inspetora ficou a aguardar o julgamento em prisão preventiva.
Mais de seis anos depois, o caso pode agora estar encerrado, depois de várias decisões contraditórias. Dois anos depois do crime, em setembro de 2014, o julgamento — para o qual foi escolhido um tribunal de júri — culminaria com a absolvição da arguida. No mesmo dia, o Ministério Público (MP) anunciava que ia recorrer da decisão. Em maio do ano seguinte, o Tribunal da Relação de Coimbra, em resposta ao recurso, condenava Ana Saltão a 17 anos de prisão pelo homicídio da avó do marido. E a advogada da inspetora, Mónica Quintela, anunciava que ia recorrer da decisão para o Supremo Tribunal de Justiça — a última instância de decisão na hierarquia dos tribunais.
Repetição do julgamento. Foi esta a decisão do Supremo, que ordenou que o processo regressasse à primeira instância para que todo o julgamento fosse repetido, em março de 2017 — quando já tinham passado cinco anos depois do crime. Às 9h00 do dia 22 de maio desse ano, Ana Saltão voltou a tribunal para, de novo, se declarar inocente. E é novamente absolvida por outro tribunal de júri. O caso, porém, não ficou por aqui: o MP decidiu recorrer outra vez.
Esperava-se uma decisão sobre esse recurso a 19 de dezembro de 2018, mas o anúncio foi adiado pelo facto de, segundo o presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, Luís de Azevedo Mendes, ser necessário mais debate entre o coletivo de juízes. Chegou esta quarta-feira, 9 de janeiro: a Relação de Coimbra decidiu absolver Ana Saltão. A mesma Relação de Coimbra que, em 2015, a tinha condenado a 17 anos de prisão.
Fim da história? Talvez possa dizer-se “quase”. Agora, o Ministério Público ainda pode recorrer, mas apenas para o Tribunal Constitucional — com duas decisões consecutivas no mesmo sentido, de absolvição, o caso já não poderá ser levado ao Supremo Tribunal. Com todo este histórico, porém, ninguém arrisca prever que decisão virá de lá.
Para trás fica um rasto de decisões que mostram que a justiça simplesmente não conseguia julgar, em uníssono, o caso, com a inspetora — a única suspeita do crime, desde o início — a ser absolvida, condenada, julgada de novo e absolvida, até, agora, ser inocentada outra vez. Porquê?
A queimadura a fazer uma omelete, a prova contaminada e o vinho entornado no telemóvel
Ana Saltão manteve sempre a mesma versão: é inocente. E os vários coletivos de juízes não se entenderam quanto à validade das provas. No acórdão da primeira absolvição, fala-se em “falta de prova da motivação descrita na acusação”. O presidente do coletivo de juízes chegou a considerar que havia uma “mínima probabilidade” de Ana Saltão ter cometido o crime. Meses depois, o volte-face: a inspetora era condenada 17 anos de prisão, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, com os mesmos elementos. Quando o Supremo Tribunal de Justiça anulou essa sentença, a advogada falou em “sonegação e a manipulação de provas”.
Que provas eram essas que levaram a PJ a suspeitar de uma inspetora sua e a tantas decisões contraditórias?
A arma do crime furtada
Logo nas primeiras diligências realizadas ainda no dia do crime, a PJ encontrou 13 cápsulas de munições espalhadas pela sala, que apresentavam “características de classe habitualmente observada em elementos deflagrados por pistolas de marca Glock” — usadas pelas forças de segurança. Embora nunca tivesse sido encontrada, a PJ entendeu que a arma usada teria sido aquela que tinha desaparecido da gaveta da secretária da inspetora Liliana Vasconcelos, colega de Ana Saltão, bem como o “carregador nela inserido, o qual continha 14 munições (…) embora tivesse capacidade para 15”. A acusação entende que a inspetora não usou a sua arma nem a do marido, também ele inspetor da PJ, para “evitar que pudesse ser relacionada com o crime”. Assim, na tese da acusação, “sabendo que as gavetas dos módulos das secretárias se abriam com facilidade mesmo fechadas à chave, forçou a gaveta”, acedendo assim à arma.
O primeiro tribunal que julgou o caso teve, porém, “sérias dúvidas” que a arma tenha sido furtada por Ana Saltão ou que tivesse mesmo sido furtada e utilizada para o crime por outra pessoa. O acórdão refere que abrir a gaveta sem chave “não só é de difícil execução” como é também arriscado, pelo “tempo que exige” e “barulho que provoca” — o que “não é compatível com a intenção de furtar”. Os juízes concluíram, além disso, que não existe “qualquer elemento que ligue a arguida ao alegado furto”, até porque este tipo de munição não é tão exclusivo assim, podendo ser obtido na internet “sem qualquer constrangimento legal.”
O casaco
Quatro dias depois do crime, a PJ dirigiu-se à casa de Ana Saltão para recolher a roupa que tinha usado no dia do homicídio. Depois de examinada, foram encontradas apenas no blusão partículas “compatíveis com as detetadas nas cápsulas deflagradas recolhidas no local do crime”. A prova, porém, podia estar contaminada: depois de recolhido, o blusão foi colocado no chão de um gabinete da PJ, enquanto se aguardavam as análises. Este procedimento ou “descuido”, que o tribunal considera “incompreensível”, acabou por comprometer aquela que o tribunal considerava “uma das mais fortes provas” do caso.
Os mesmos vestígios, porém, não deixariam quaisquer dúvidas aos desembargadores de Coimbra. Em maio de 2015, consideravam claro que a pólvora tinha ficado no casaco por causa dos disparos feitos contra a vítima, concluindo que tinha sido Ana Saltão a fazê-los.
O ferimento na mão
Ana Saltão tinha um ferimento na mão direita, a que usava para disparar. A acusação entende que terá sido provocado pela própria arma, dada a grande quantidade de disparos. Segundo a PJ, a inspetora terá tentado esconder os ferimentos: quer na presença das autoridades, puxando as mangas para baixo, quer durante o funeral de Filomena Gonçalves, no qual “teve sempre o cuidado de tentar esconder a mão direita dos olhares das outras pessoas”.
Na decisão de 2014, o tribunal também não aceitou este indício como prova. Vizinhos ouvidos em tribunal garantem ter ouvido barulhos — que seriam os disparos — espaçados entre si. Ou seja, os disparos não foram seguidos. De acordo com o acórdão, estes espaços temporais “permitiriam manter uma boa empunhadura ao longo dos disparos ou mesmo corrigir a mesma, tornando menos provável a ocorrência de uma lesão na mão”.
A inspetora garantiu em tribunal que aquele ferimento era uma queimadura que tinha sido provocada quando estava a fazer uma omelete de espargos. Um perito disse em julgamento que o ferimento podia resultar de ambas as hipóteses: dos disparos ou da queimadura.
Também neste caso, a Relação de Coimbra, em 2015, decidiu de forma diametralmente oposta, por ver nos ferimentos mais uma prova da autoria dos disparos.
O telemóvel desligado
No dia do crime, Ana Saltão tinha o telemóvel desligado. De acordo com o acórdão que a absolveu pela primeira vez, a inspetora ligou para o marido por volta das 9h30 e, depois disso, não voltou a efetuar qualquer chamada. Depois das 15h15, o marido tentou ligar-lhe várias vezes, sem sucesso. Às 18h17, ligou até para o telefone fixo da casa de ambos, mas ninguém atendeu.
Aos olhos do Ministério Público, o aparelho desligado é mais uma prova do crime, mas os factos também não convenceram o tribunal. Ana Saltão — que sofria de uma síndrome depressiva — estava a ser medicada com antidepressivos que tinham um efeito sedativo. Esta informação levou os juízes a crerem que a inspetora estivesse mesmo a descansar. Também o facto de o telemóvel da arguida ter tido um problema no funcionamento, dias depois, a 24 de novembro de 2012, levou o tribunal a considerar que o aparelho podia mesmo estar com problemas técnicos. Em tribunal, Ana Saltão disse que tinha entornado vinho no telemóvel na mesma ocasião em que se tinha queimado a fazer a omelete: o aniversário de casamento.
As horas
Ana Saltão estava em casa, na Maia, a recuperar de uma operação, realizada no dia 13 de novembro, que a impedia de andar normalmente. Naquele dia, levou a filha ao infantário, entre as 9h00 e as 9h30 e regressou a casa. Por volta das 14h30 foi vista a ver o correio, de pijama e casaco, “calmamente”.
Na tese da investigação, Filomena terá sido morta, em Coimbra, antes das 17h00. Mais precisamente, segundo relatos de vizinhos, entre as 15h53 e as 16h19. Partindo do facto de que Ana Saltão teria de se vestir e preparar para sair, tendo em conta a distância entre as duas cidades, o trânsito e o estado de saúde da arguida, que lhe dificultava a mobilidade, o acórdão entende que “dificilmente a arguida poderia estar àquela hora no local do crime”.
Ana Saltão só voltaria a ser vista às 19h40 quando foi buscar a filha ao infantário — quando era normal ir buscá-la entre as 17h30 e as 18h00. Já a vítima foi vista com vida, pela última vez, pela sua filha, que tinha almoçado na sua casa. De lá saiu por volta das 15h45 porque tinha uma sessão de spa marcada para as 16h.
Dinheiro foi o móbil do crime? Tribunal considerou “fútil” e absolveu arguida
O dinheiro foi sempre apontado como móbil do crime: de acordo com a acusação, não só o casal tinha pedido 1500 euros a Filomena Gonçalves como, segundo a acusação, tinha algumas dificuldades financeiras. Ana Saltão teria então cometido o crime “quer para evitar terem de continuar a pagar-lhe o dinheiro emprestado, quer na expectativa de que, com a sua morte, parte do dinheiro que aquela possuía viesse a chegar ao casal, por intermédio do marido”.
A avó de Carlos Coelho, marido de Ana Saltão, tinha de facto um “elevado pecúlio monetário”, à data da sua morte: cerca de 178 mil euros em poupanças. Filomena Gonçalves, descrita no acórdão como uma “pessoa muito económica”, angariou “consideráveis proveitos” com a exploração e venda de um talho no Mercado Municipal de Coimbra.
Em 2012, ano em que o crime aconteceu, o marido de Ana Saltão, Carlos Coelho, recorreu, pelo menos duas vezes, à avó para lhe pedir dinheiro — no total, 1.500 euros. De acordo com o acórdão que absolveu a inspetora da primeira vez, a que o Observador teve acesso, a vítima terá entregado 500€ de uma vez, em data não apurada, e o restante valor, num cheque assinado em fevereiro de 2012. O casal ia entregando, todos os meses, a Filomena Gonçalves quantias de dinheiro para pagamento da dívida. À data do crime, deviam-lhe ainda 1.000 euros.
O móbil apresentado pela acusação não convenceu o tribunal de primeira instância, que considerou inválido e “tão fútil que só se compreenderia que o mesmo pudesse fundamentar uma atuação tão violenta da arguida se a mesma padecesse de um grave distúrbio psicológico/psiquiátrico” — o que o tribunal não acredita ser a verdade. O número de tiros foi um dado importante para definir o perfil psicológico do assassino, fosse ele quem fosse. Segundo um perito ouvido no primeiro julgamento, para terem sido disparados tantos tiros — alguns já com a vítima morta no chão — o assassino só poderia “sofrer de uma sociopatia” ou ter “um grave e antigo conflito com a vítima”, lê-se no acórdão.
A segunda hipótese é logo excluída com o facto de a arguida se ter casado com o neto da vítima cinco anos antes do crime, em 2007. Isto quer dizer que Ana Saltão e Filomena Gonçalves se conheciam há relativamente pouco tempo para poderem ter desenvolvido conflitos que justificassem um homicídio com estes contornos. Nenhuma da testemunhas ouvidas no julgamento referiu qualquer desentendimento entre ambas.
O tribunal não considerou que Ana Saltão fosse psicopata. Para já porque, dada a profissão que tinha, teria de ter passado nos testes psicotécnicos da PJ, além do “apoio dado pela arguida a uma colega da PJ que sofreu de uma doença oncológica (…) e que deu origem ao estado depressivo do qual estava a ser tratada“, que também serviram de argumentos para a absolvição.
No julgamento — quer no primeiro, quer na sua repetição — Ana Saltão tentou também negar o alegado móbil do crime, dizendo que tinha até ficado “admirada” que Filomena Gonçalves “tivesse tantas poupanças”. Este argumento foi reforçado pelo testemunho dos dois filhos da vítima, que, ouvidos como testemunhas, contaram que a mãe era uma “pessoa muito reservada nas questões financeiras” e que nem a filha tinha conhecimento ao certo das suas poupanças. “Ora, não tendo a arguida conhecimento da situação financeira da vítima, cai por terra a alegada motivação“, lê-se no acórdão.
A inspetora negou também em tribunal que o casal tivesse dificuldades económicas, mas admitiu que “se surgisse uma situação inesperada”, tinham “com quem contar”. Ana Saltão relembrou ainda que o marido não era “herdeiro direto” da avó — facto também relembrado no acórdão que a viria a absolver. Nele é referido que a sogra da arguida chegou a dizer que, uma vez na posse da herança, “faria sempre uma utilização pessoal de tal quantia, uma vez que, não trabalhando, carecia da mesma” — deixando claro que, em caso de morte, não partilharia aquele valor com o filho. O acórdão refere também que, uma vez que Filomena Gonçalves tinha 80 anos, mesmo que Ana Saltão tivesse intenção de “apropriar-se das suas economias” iria “colocar a possibilidade desta a curto/médio prazo vir a falecer, não sendo necessário assassiná-la. A inspetora chegou a dizer, em tribunal, num tom irónico: “Tínhamos de matar uma data de gente para termos o dinheiro”.
Os depoimentos de Ana Saltão e do marido, valorizados, em parte ou totalmente, pelo tribunal da primeira instância, acabariam por não ter qualquer relevância para o Tribunal da Relação de Coimbra, em 2015, que optou pela condenação. Pelo contrário, os desembargadores consideraram que a versão de Carlos Coelho não tinha “qualquer credibilidade”, mostrando-se “omisso”, “demasiado pormenorizado” e “contraditório” — durante a investigação tinha atribuído o crime à mulher, depois tinha mudado de ideias, defendendo-a.
Ana Saltão é inocente ou culpada? Depois de, em 2015, o Tribunal da Relação de Coimbra ter optado pela condenação, agora, em 2019, decidiu-se pela inocência, mas ainda é preciso esperar que o caso transite em julgado (e se não houver mais um recurso) para que a absolvição se torne definitiva. Se assim for, sobrará outra pergunta: afinal, quem matou Filomena Gonçalves?