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Era a vez da pequena Angela mergulhar. Com os pés firmes na prancha, olhava para baixo e contemplava a enorme distância até à água. Recuou; voltou a avançar. Mais uma vez deu um passo atrás e depois outro à frente. Os colegas de turma começavam a ficar impacientes: ela que decidisse de uma vez se mergulhava ou não. E Angela continuava a hesitar. Os segundos iam passando e nada de uma decisão. Até que, inesperadamente, tocou a campainha que anunciava o final da aula. E foi aí que ela tomou a decisão, de repente: avançou, deu impulso e mergulhou. Finalmente.
É esta história que Ursula Weidenfeld gosta de escolher quando lhe pedem um momento que ilustre bem a personalidade de Angela Merkel, a chanceler alemã que dominou os destinos do país e da Europa durante 16 anos. A antiga jornalista do Tagesspiegel e da edição alemã do Financial Times sabe do que fala, ou não fosse também biógrafa da política — publicou em 2012 The Chancellor. Portrait of an Era (“A Chanceler: Retrato de uma Era”, sem edição em português).
Ao Observador, Ursula explica por que razão considera este momento um exemplo tão certeiro da personalidade de Merkel: “É uma história que explica muito da sua atitude. Numa crise, toda a gente entra em pânico, mas Angela Merkel não. Ela pensa sobre tudo uma e outra vez e no último momento — não demasiado tarde, mas também não demasiado cedo — age”, diz a jornalista. E não é por acaso, explica, que a própria Merkel gosta de contar esta história sobre si. Ela ilustra as qualidades que a própria chanceler gosta em si própria: calma, cautelosa, mas capaz de agir quando é necessário.
Também não é por acaso que os alemães adotaram o verbo merkeln para descrever a ação de adiar constantemente. Uma postura que, ao longo de 16 anos, dividiu as opiniões dos europeus. Há quem elogie a capacidade de manter a cabeça fria e de medir cada passo e quem pense que essa hesitação custou muito caro — e que o adiamento torna-se por vezes em imobilidade. Agora, com Merkel a sair definitivamente da política alemã e mundial, é tempo de fazer o balanço. Que legado deixa esta mulher, a primeira chanceler mulher e do Leste da Alemanha?
A importância de ser uma Ossi
Se Ursula Weidenfeld não tem problemas em escolher o momento do mergulho na escola como definidor do caráter de Merkel, outro biógrafo tem mais dificuldades: “Não é possível capturá-la ou defini-la numa simples história”, afirma ao Observador Ralph Bollmann, autor de Angela Merkel: Die Kanzlerin und ihre Zeit (“Angela Merkel: A Chanceler e o seu Tempo”, sem edição em português). “Aquilo que creio que é muito importante para compreender o seu comportamento é a sua vida na República Democrática Alemã (RDA)”.
Angela Merkel nasceu em 1954 em Eimsbüttel, um bairro na ocidental Hamburgo, mas rapidamente partiu com a família para o Leste de uma Alemanha dividida. O seu pai, o pastor protestante Horst Kasner, decidiu estabelecer-se em Templin. A decisão de um pastor do Ocidente de se mudar para a RDA era, no mínimo, insólita — e marcou a vida de Angela desde cedo. “Ela sempre esteve numa posição de outsider”, resume Bollman. “O Partido Comunista desconfiava muito da religião e por isso ela tinha de ter muito cuidado com o que dizia na escola, por exemplo.” A sua infância e adolescência seriam marcadas pela duplicidade a que o regime obrigava: ora Angela se juntava aos pioneiros comunistas e repetia as prédicas do Partido, ora aproveitava uma visita de estudo para comprar o Yellow Submarine dos Beatles às escondidas.
Como filha de um pastor vindo do Ocidente, Angela foi naturalmente abordada pela Stasi, que tentava obter informações. A história que a própria conta é de uma simplicidade desarmante: seguindo o conselho da mãe, mentiu dizendo que não sabia guardar segredos e que, por isso, seria uma péssima espia. Na Alemanha de hoje, muitos desconfiam que uma resposta dessas não seria suficiente para afastar a Stasi e que Merkel não estará a contar a história toda. Mas, décadas depois e com tantas credenciais pró-ocidentais na lapela, para a maioria dos alemães tal pouco importa. Aquilo que é inegável é que essa vivência a moldou de alguma forma: “A coisa mais importante que se aprende a viver na Alemanha de Leste é como ficar calado”, diria a própria Merkel.
Aluna brilhante na escola, com notas máximas a disciplinas como Matemática e Russo, a jovem Merkel decidiu optar pelas ciências exatas para evitar melindres com o regime e partiu para Leipzig para estudar Física na Universidade. Após o doutoramento em Química Quântica, mudou-se para Berlim Oriental para trabalhar como investigadora na Academia de Ciências — e, uma vez mais, a política do regime em que vivia ia marcando a jovem em silêncio. Segundo a própria, Angela guardava para si os seus pensamentos e na Universidade participava nos seminários políticos obrigatórios. Mas, quando fazia o caminho para casa e passava pelo Muro da cidade, sentia-se sempre incomodada.
Isso não fez com que Angela entrasse em euforia quando o Muro foi deitado abaixo naquele 9 de novembro. A história também é contada repetidamente como se ilustrasse todo um programa de vida: era quinta-feira e Merkel cumpria o seu ritual semanal de ir à sauna e depois beber uma cerveja; só depois de ter terminado a sua rotina habitual é que Angela se juntou à multidão e resolveu atravessar para o outro lado. A frieza é, como habitualmente, reveladora. Por um lado, a capacidade de manter a cabeça fria perante um momento histórico é louvável. Por outro, não seria de esperar maior entusiasmo de alguém que faria da política ocidental a sua vida?
Independentemente do julgamento sobre a sua personalidade, há um elemento importante a retirar do facto de Merkel ser uma Ossi (alemã do Leste) que viveu esse momento. “Ela compreendeu que os sistemas podem falhar. Muitos dos democratas ocidentais não conseguiam conceber que o sistema democrático liberal pudesse vir a estar em risco; e para ela sempre foi claro que tínhamos de ter cuidado se queremos manter a nossa forma de vida”, avisa Bollmann.
“Experienciei em primeira mão como tudo o que parece estar escrito em pedra pode de facto mudar.” Angela dixit.
Uma mulher entre os “Acólitos” da CDU
O facto de Merkel vir do Leste seria, de facto, um elemento que marcaria toda a sua vida política numa Alemanha ainda profundamente marcada pela divisão. Após a queda do Muro, Angela envolveu-se rapidamente na política, tornando-se porta-voz do Demokratischer Aufbruch (“Despertar Democrático”), um pequeno partido que acabaria por ser englobado na conservadora CDU. O seu caminho foi sendo feito de forma discreta: manteve funções de porta-voz, mas de governos, e foi eleita deputada em dezembro de 1990 pelo círculo eleitoral de Vorpommern Rügen-Greifswald, que ainda é o seu.
O facto mais marcante do seu percurso político seria o facto de se ter tornado a protégée de Helmut Kohl — o homem que, até hoje, ocupou o cargo de chanceler da Alemanha reunificada durante mais tempo. Mas se no início da década de 90 alguém arriscasse dizer que Merkel se tornaria a segunda chanceler a ocupar mais tempo o cargo, poucos acreditariam. Tímida e discreta, dificilmente se destacava. Para além disso, era mulher e do Leste num partido ainda hoje dominado por homens da Alemanha Ocidental, a quem chamam Die Messdiener — Os Acólitos, em referência à matriz cristã da CDU.
“Havia muito sexismo”, garante sem margem para dúvidas Alan Crawford, editor sénior da agência Bloomberg que tem acompanhado a carreira de Merkel a partir de Berlim, sobre os seus tempos no governo como ministra da Juventude e depois do Ambiente. “Kohl costumava referir-se a ela como a Mädchen (rapariga) do seu governo. E era como se ela também fosse a mascote do Leste naquele governo, num país que ainda é dominado pela antiga Alemanha Ocidental”, diz ao Observador o jornalista e também autor de Angela Merkel: A Chancellorship Forged in Crisis (Angela Merkel: Uma Chancelaria Forjada na Crise, sem edição em português). “Tudo isto contribuiu para que ela fosse subestimada.”
Assim seria até 1999. Quando o todo-poderoso Kohl se viu envolvido num escândalo de doações ilegais ao partido, seria a pena de Merkel a dar-lhe a estocada final: com um artigo publicado no Frankfurter Allgemeine Zeitung, Merkel pediu a demissão do líder. Para muitos dentro da CDU, tal seria visto como o derradeiro “Vatermord” — um parrícidio, como diria um antigo membro do partido ao histórico correspondente do Times Roger Boyes.
Os que acompanham a carreira de Merkel destacam a importância desse momento para a afirmação desta mulher do Leste como política de peso. Para Ralph Bollmann, foi um dos momentos de clarividência e uso correto de timing da chanceler: “Não havia alternativa. Se ela não tivesse feito aquilo e separado os destinos da CDU do de Kohl, é possível que a CDU hoje nem sequer existisse”, diz, comparando a situação à dos democratas-cristãos italianos. “Quando se torna claro para ela que é necessário agir, ela consegue tomar decisões ríspidas. É como quando decidiu saltar para a piscina…”
Já Eric Langenbacher, professor de Política Comparada na Universidade de Georgetown e autor das obras The Merkel Republic (A República de Merkel, sem edição em português) e Twilight of the Merkel Era (O Crepúsculo da Era Merkel, também sem edição nacional), fala numa jogada tática “brilhante”: “Ela pegou naquilo que poderia ser um escândalo menor e tornou-o um evento definidor para Kohl, que resultou a seu favor”, resume ao Observador, apontando para o facto de essa decisão ter contribuído para que Merkel viesse a ser eleita como líder da CDU na sequência do artigo. “Ela é capaz de ser totalmente implacável nos bastidores — com Kohl, Schäuble, Merz, Koch e muitos outros. E é interessante que a maior parte destes momentos envolvam políticos homens. Acho que ela sabe usar as fraquezas dos homens contra eles.”
Para uma mulher que hesitou tantos anos em definir-se como feminista, Merkel sempre teve um olhar aguçado para compreender como sobreviver num mundo de homens. “Na presença de homens dominadores, sinto uma náusea física e quero sentar-me longe deles”, confessou uma vez à sua fotógrafa pessoal, Herlinde Koelbl. Mas isso não a impediu de saber como se movimentar por entre os “Acólitos” da CDU: “Quando ela foi eleita como líder do partido, eles diziam ‘Não vai ser por muito tempo’ ou ‘Vamos deixá-la resolver este caso do Kohl e depois é a vez dos homens do Ocidente tomarem conta do partido de novo’”, conta o biógrafo Bollmann. “Depois perceberam que não ia ser assim e que Angela Merkel não ia sair da liderança da CDU tão depressa. Mas aí já era tarde para eles.”
Sem carisma, nem convicções fortes: “A ideologia dela é o pragmatismo”
O biógrafo destaca, contudo, que a CDU sempre foi o lugar onde Merkel esteve mais desconfortável. “É mais fácil para ela gerir a relação com a população e vencer eleições do que lidar com as questões internas do partido. Não é por acaso que ela deixou o lugar de líder da CDU em 2018, mas o de chanceler só agora”, analisa Bollmann.
Porquê? Bom, em primeiro lugar, porque Merkel não é uma conservadora típica. Desde que assumiu o cargo de chanceler, em 2005, que muitas das suas decisões arrastaram teimosamente o seu partido mais para o centro: foi assim com a Energiewende, quando decidiu abruptamente abandonar a energia nuclear após o desastre de Fukushima; com o aumento do salário mínimo; com o fim do serviço militar obrigatório; com o alargamento das licenças de paternidade; e até com a decisão de dar liberdade de voto aos deputados do seu partido em relação ao casamento gay, o que permitiu a sua aprovação. Torsten Albrig, membro dos sociais-democratas, chegou a questionar-se se o SPD necessitava do seu próprio candidato quando Merkel estava a fazer um trabalho “excelente”.
O grande mistério é saber o que motivou Merkel a tomar decisões como estas e a puxar a CDU tão para o centro. Estaremos perante uma política menos conservadora do que o habitual para os padrões do partido? Ou terá sido a chanceler puramente pragmática ao adotar medidas populares ou que considerava inevitáveis?
Ursula Weidenfeld não teve dúvidas do lado em que se coloca nesta questão: “Angela Merkel é uma política de poder”, diz, sem papas na língua. “Quando se considera que o poder é a coisa mais importante para um partido, uma pessoa torna-se cada vez mais pragmática e menos ideológica”. Uma análise que ganha respaldo se tivermos em conta um famoso artigo da Der Spiegel de 2014 que mostrava como o Governo de Merkel seguia atentamente as sondagens antes de tomar cada decisão: no caso da transição da energia nuclear, por exemplo, 58% dos alemães à altura era a favor de abandonar aquele tipo de energia.
Ralph Bollmann considera que Merkel, na sua habilidade habitual, rejeitaria uma leitura binária de ideologia vs. pragmatismo: “A ideologia dela é o pragmatismo”, resume. “Temos de nos lembrar que já na RDA ela lia livros de Karl Popper e refletia sobre isto. Para ela, fazer compromissos é a natureza da política. Essa é a essência do seu pensamento político”. Uma capacidade extraordinária de ler o ar dos tempos, dirão alguns; uma completa falta de espinha ideológica, dirão outros. “Merkel acredita profundamente que as democracias precisam da mudança e da evolução para se manterem vibrantes. Por isso acho que ela tomou decisões destas por considerá-las necessárias para a renovação”, resume Eric Langenbacher. Assim se explica uma chanceler que vota contra o casamento gay, mas que faz uma jogada partidária que sabe que tornará este legal — porque, apesar de ser contra, Merkel considera que tentar travá-lo era igual a travar o vento com as mãos.
O pragmatismo acima de tudo, pois claro. Nada que surpreenda numa mulher que não é dada a grandes estados de alma e que não parece acreditar no poder da inspiração, da retórica, das emoções e dos grandes ideais na política. “A noção de que uma pessoa pode tocar tanto as outras com as suas palavras que as faz mudar de ideias não é uma noção que eu partilhe. Embora seja bonita”, confessou a própria em 2016.
Merkel prefere a preparação, o pesar de prós e contras, a negociação nos bastidores. O que a torna uma política pouco inspiradora. Não é por acaso que Alan Crawford a define como “a antítese de Barack Obama”: “A maioria dos políticos tenta embelezar a realidade para que ela se molde à sua mensagem. Merkel não é assim. Ela não tenta aparecer nas primeiras páginas dos jornais nem abrir os telejornais. Fica satisfeita em apenas dizer o que tem a dizer, sem grande dramatismo em torno disso.” É por isso, explica o editor da Bloomberg, que na sua cobertura das atividades da chanceler aprendeu a seguir cada passo que ela dá: “Ela não faz anúncios dramáticos; ela dá pequenos passos a cada discurso, até que se torna claro qual é a ideia dela.”
Um estilo pouco entusiasmante, mas que tem as suas vantagens: afinal, a seriedade com que Merkel encara o cargo também é a mesma que faz com que saia agora do poder sem nenhum escândalo de maior — algo difícil de conseguir ao fim de 16 anos no poder. Muito dos seus antecessores eram figuras marcantes e inspiradoras, mas saíram de cena manchados: foi o caso de Kohl, com o escândalo dos donativos, e também de Willy Brandt, que se demitiu depois de ser conhecido que um dos seus conselheiros mais próximos era um espião da RDA.
Em privado, dizem, Angela Merkel é cheia de sentido de humor, como comprovam as suas imitações de líderes mundiais, como Sarkozy, Berlusconi e Putin. Mas em público, nada disso transparece. Angela Merkel não inspira, não marca, não faz rir nem provoca lágrimas de emoção; mas, ao evitar ser uma heroína, também não cai do pedestal. É por isso que tantos dizem que não é exatamente uma política, mas sim “uma gestora de crises”.
Da “mancha no currículo” da crise grega à “liderança moral” da crise dos refugiados
A crise mais difícil de gerir foi a do euro. Isso mesmo confessou a própria há alguns dias, dizendo que sabe que “exigiu muito do povo grego”. Para Alan Crawford, não há dúvidas de que a forma como a Alemanha lidou com os países do sul durante a crise das dívidas soberanas e, particularmente, com a Grécia, é “a mancha no seu currículo”.
As críticas dos alemães aos gregos, com laivos moralistas, não caíram bem numa Europa desunida e em profunda crise económica. As condições duras impostas em troca dos resgates financeiros, que tiveram consequências sociais trágicas na Grécia, foram tidas como inegociáveis: Alternativlos, sem alternativa, foi a expressão frequentemente usada por Merkel para definir o formato definido para lidar com a crise financeira da União. Muitos, como o ex-ministro das Finanças Yanis Varoufakis, não lhe perdoam: “Ela nunca teve uma visão sobre o que fazer com a zona Euro depois de ela ser salva e a forma como ela a salvou foi muito polarizadora, tanto dentro da própria Alemanha como da Grécia”, disse recentemente à BBC o antigo ministro do Syriza.
Mas o próprio Varoufakis confessou na mesma entrevista que considera que Merkel foi “a responsável por ter mantido a zona Euro unida” nessa altura, ao afirmar-se claramente contra a saída da Grécia. Os especialistas ouvidos pelo Observador alinham pelo mesmo diapasão, destacando como Merkel teve de fazer um exercício de equilibrista no arame: ora puxando para não deixar a Grécia cair, ora impondo condições ao país para não perder apoio político em casa. “Ela tinha um parceiro de coligação, os liberais, que eram muito hostis à integração europeia. Tinha um Tribunal Constitucional com um presidente, Andreas Vosskuhle, hostil a mais integração europeia. E tinha um Bundesbank também hostil a essa ideia. Portanto não tinha muito espaço”, resume Ralph Bollmann.
O biógrafo puxa até de uma história antiga para ilustrar esse equilíbrio difícil: durante o pico da crise, Merkel terá tido uma conversa com Durão Barroso, à altura presidente da Comissão Europeia, em que lhe disse que se ela cedesse e o seu governo fosse derrubado, “isso seria o pior para a Europa” — “porque depois virá um chanceler muito menos pró-europeu do que eu”, acrescentou.
Mas desengane-se quem pensa numa história de conto de fadas, em que Angela Merkel se assume finalmente como a europeísta que tinha sido sempre e não podia revelar. Em 2020, a líder alemã que até então tinha dito claramente que consigo nunca haveria mutualização da dívida europeia assumiu-se a favor dessa ideia, perante a crise vindoura provocada pela Covid-19. Mas, para os que a seguem há anos, tal não vem de uma convicção apaixonada: “Merkel é acima de tudo uma cientista”, lembra Langenbacher. “Ela percebeu que, ao fim de décadas de oposição a esta ideia, havia aqui uma janela de oportunidade para experimentar uma política de dívida comum. Mas o mais provável é que ela olhe para isto como uma experiência e, se não resultar, que aconselhe o seu sucessor a abandonar a ideia.”
A História fará o balanço final sobre este momento e a importância de Merkel nele. Certo é que a chanceler nunca foi a maior fã de maior integração europeia e isso também terá tido um papel na sua hesitação durante a crise das dívidas soberanas. Mas, tal como nas políticas internas, Angela Merkel está atenta à direção para onde o vento sopra. Agora, o contexto político é outro: o parceiro da CDU no governo é o SPD e Vosskuhle já não está à frente do Tribunal Constitucional, por exemplo. Pode ser a altura de arriscar uma mudança, no caso de esta ser inevitável. Como o casamento gay ou o abandono do nuclear. Lembram-se? A sua ideologia é o pragmatismo.
Precisamente por esta personalidade analítica ser tão vincada é que outra decisão de Merkel no plano europeu espantou tantos: a de receber cerca de 800 mil de refugiados sírios em plena crise de 2015, com uma campanha intitulada Wir schaffen das! — “Nós conseguimos”. Tomada quase de improviso, sem coordenação prévia com outros países europeus nem nenhum plano posto em marcha nos Länder alemães, a decisão de acolher tantos refugiados de repente parece quase anti-Merkeliana. Desta vez, a chanceler mergulhou de cabeça na piscina, sem andar para trás e para a frente na prancha.
Foi provavelmente o momento mais emotivo de 16 anos no poder, que renovou a fé de muitos na chanceler e fez até muitos céticos olharem-na de forma diferente. O pragmatismo ficou à porta e as convicções profundas vieram ao de cima: “Era um desafio moral para ela”, resume o professor Langenbacher, um ponto de honra que, ao contrário do habitual, não se poderia resolver com cimeiras tardias e horas de negociações. “Ela detesta a ideia de ver um novo Muro na Europa. A certa altura ela até perguntou ao seu vice-chanceler à altura, Sigmar Gabriel: ‘Nós concordámos que não íamos voltar a ter muros na Europa, não foi?’”, conta Ralph Bollmann.
Mas com Angela Merkel nada é totalmente sentimental: “Também foi uma forma de ganhar tempo, até o problema ser resolvido a nível europeu, com um melhor controlo das fronteiras externas — algo que ela conseguiu meio ano depois, com o acordo com a Turquia”, lembra o biógrafo. “E não nos podemos esquecer que isto aconteceu depois do último acordo com a Grécia. Numa altura em que muitos tinham a impressão de que a Alemanha tinha sido tão cruel com a Grécia, vermos imagens da polícia alemã a empurrar refugiados nas fronteiras teria contribuído para uma imagem ainda mais negativa da Alemanha.”
Dos tempos em que Merkel era retratada nas ruas de Atenas como Hitler renascido, a chanceler passava agora por um período de transformação da sua imagem. Os refugiados sírios acolhidos tentavam tirar selfies com ela — como Anas Modamani, com quem o Observador falou — e alguns davam o nome de Angela às filhas. “Um golpe de relações públicas brilhante, um triunfo do soft power e não inteiramente cínico”, resumiria Roger Boyes. A maior parte dos alemães estava com Merkel: em 2015, 79% dizia que o governo devia continuar a apoiar os refugiados ou até fazer mais por eles.
A decisão, porém, não trouxe um mar de rosas. Com as dificuldades de implementar um plano de integração a tão larga escala, surgiram os problemas e as desconfianças em relação aos refugiados. “Foi isto que deu asas ao movimento anti-imigração e ao Alternativa para a Alemanha [AfD na sigla original] e as pessoas irão sempre culpar Merkel por isso”, aponta Alan Crawford. Nas eleições seguintes, em 2017, o partido elegeu 94 deputados e tornou-se a maior força da oposição à CDU.
Crawford, porém, considera que o legado do crescimento da extrema-direita na Alemanha deixado por Merkel não é tão negro como se possa pensar: “Olhemos para França, onde Marine Le Pen tem sérias possibilidades de derrotar Macron”, aponta. “Na Áustria, o chanceler diz que não aceitará qualquer refugiado afegão. A Polónia e a República Checa estão na mesma situação. A Holanda está completamente dividida… E, perante este contexto, a AfD aqui não vai além dos 11% nas sondagens. Diria que Merkel tem conseguido manter o centro unido e isso não é de somenos.”
Uma política de consensos ou uma gestora sem visão? Tudo depende dos olhos de quem vê
Uma pragmática a jogar em casa, com resultados mistos no plano europeu. E a nível internacional? Ao longo de 16 anos, Angela Merkel foi recebida em várias capitais mundiais com pompa e circunstância. Era a visita da chanceler alemã, é certo, mas era mais do que isso: para muitos, era a representante máxima da Europa e até uma das principais líderes ocidentais.
Chanceler de uma Alemanha até aí tímida no plano internacional, ainda marcada pelas cicatrizes do passado, com Merkel o país assumiu-se como potência mundial. Para alguns, a sua postura como líder tornou-a um “bastião do liberalismo ocidental”, por contraste aos populismos crescentes em todo o mundo — “Quem não adora a fotografia icónica dela a enfrentar Donald Trump no G7?”, questiona Eric Langenbacher. “Mostra a sua estatura, segurança, coragem”. Mas o retrato está longe de ser assim tão simples.
Sim, Merkel teve momentos em que não hesitou e tomou uma posição de força. Foi o caso da sua postura firme contra a invasão russa da Crimeia, pressionando os restantes países da União Europeia a impor sanções a Moscovo: “Ninguém esperava isto à altura. É um exemplo de como as pessoas assumem muitas coisas sobre a Alemanha quando conhecem mal o país. E de como muitas vezes subestimam Merkel”, declara Crawford. O jornalista sublinha como a chanceler continua a fazer chamadas telefónicas com Vladimir Putin a cada seis semanas, onde a Ucrânia é sempre o tema principal. Fluente em russo, com a bagagem do seu passado na Alemanha de Leste, Merkel é para muitos uma Putinversteher, alguém que compreende Putin. Não porque concorde com ele, mas porque sabe lidar com ele.
A sua grande capacidade de manter o diálogo — “procuro a cooperação mais do que o confronto”, assumiu a determinada altura — é um trunfo, mas não resolve tudo. Afinal, sete anos depois da invasão da Crimeia, a península continua sob domínio russo e o leste da Ucrânia permanece mergulhado num conflito congelado com a Rússia. Sim, a Alemanha faz frente a Moscovo em vários temas, como a defesa do opositor Alexei Navalny, tratado em Berlim após ser alegadamente envenenado pelo Kremlin; mas, ao mesmo tempo, continua a negociar a instalação de um gasoduto russo em solo europeu, o Nord Stream 2.
Também na relação com outros países Angela Merkel vai colocando o seu mote de diálogo e compromisso acima de tudo, com resultados mistos. Critica Viktor Orbán por querer erguer muros na Hungria, mas não usa o peso da Alemanha na UE para confrontar o país pelas violações aos tratados europeus, a par da Polónia. Merkel também defende a importância da relação transatlântica, mas hesita em hostilizar a China no mesmo tom em que os EUA o fazem — ainda em dezembro, sob a presidência alemã, a UE assinou um polémico acordo para o investimento com Pequim.
Isso não impede os biógrafos e jornalistas mais próximos de considerar o resultado final positivo. Ursula Weidenfeld, por exemplo, diz que Merkel é “a política alemã mais moderna do século XXI”, por ter conseguido estabelecer um novo lugar para a Alemanha como potência mundial: um lugar de “auto-confiança” pelo poderio económico do país na Europa, mas que não implica “dominar ou comandar os outros à volta”. Liderar, sim, ma non troppo. Afinal, Merkel é uma cientista. Cada problema é analisado ao pormenor, cada variável medida. E é uma política mais de compromissos do que de revoluções. O resultado não parece desagradar à maioria dos europeus, que dizem ter mais fé na chanceler do que em líderes como Emmanuel Macron e que a colocam ao mesmo nível do que Joe Biden.
O balanço final do legado de Angela Merkel é difícil de fazer e, talvez, seja necessário mais distanciamento histórico para afinar na precisão. As opiniões, por enquanto, dividem-se: uma líder firme e calma que conseguiu guiar a Alemanha e a União nos seus momentos mais difíceis? Ou uma política sem brilho nem visão, que se limitou a ir ao sabor do vento e dos acordos possíveis?
“Acho que essas avaliações dizem mais sobre as pessoas que as fazem do que sobre a própria Angela Merkel”, arrisca dizer Ralph Bollmann. A verdade é que, como em tudo, é impossível olhar para o legado de Merkel a preto e branco. O professor de Georgetown, Eric Langenbacher, foca-se nos pontos positivos: “Helmut Schmidt disse uma vez que ‘quem tem visões deve ir ao oftalmologista’. Com uma economia e um sistema político fortes, será que uma ‘visão’ é assim tão necessária? Com Merkel foi possível conseguir uma evolução discreta: a situação para as mulheres e minorias está melhor, o país deu mais passos para fazer a transição energética, a economia está bem e as finanças em ordem. E se foi possível conseguir tudo isto sem uma grande visão articulada, não me parece nada mal.”
Já Ursula Weidenfeld sublinha um aspeto negativo dessa personalidade: “Tudo aquilo que são mudanças estruturais, como as alterações climáticas ou a reforma das pensões, ficaram por resolver. Merkel só toca nos problemas quando estes lhe chegam à mesa. Tudo o que puder esperar, espera — e às vezes essa espera é demasiado longa”, resume, pensando na rapariga que continua a caminhar para trás e para a frente na prancha, decidindo saltar só no último momento.
O seu colega da Bloomberg, Alan Crawford, não consegue dar uma resposta tão taxativa. Mas o único entrevistado para este trabalho que não é alemão puxa de um exemplo do seu país para contrastar com Merkel: Tony Blair, o trabalhista que promoveu a Terceira Via e assinou a paz com a Irlanda do Norte, mas que saiu com a reputação em cacos depois do envolvimento na Guerra do Iraque. “Diga-me outra pessoa que tenha estado tanto tempo no poder como Merkel e que tenha conseguido sair com tanta respeitabilidade política”, desafia o escocês, que acompanha a política alemã em Berlim desde que Merkel subiu ao poder, em janeiro de 2006. “Diz-se que todas as carreiras políticas terminam em derrota, mas Angela Merkel quase que desmente essa frase. Ela pode não sair no topo — mas está mesmo muito perto disso.”