“Bye bye Isabelinha, viva o novo Presidente de Angola!” O comentário foi feito na conta de Instagram de Isabel dos Santos, filha do ex-Presidente José Eduardo dos Santos. É apenas um das dezenas que lá foram feitos, na sua última publicação — um screen shot da página de joalharia da leiloeira Christie’s. “Agora é voltar a vender ovos”, aconselha outro angolano, numa referência à história contada pela própria em entrevista ao Financial Times sobre os tempos em que vendeu ovos na infância.
O Instagram da (agora) ex-administradora da petrolífera Sonangol revela bem o ambiente de euforia que se vive em Angola nos últimos dias. O afastamento da filha de José Eduardo Dos Santos foi a gota de água que, para muitos, tornou claro que as promessas de João Lourenço irão mesmo ser cumpridas. Desde que tomou posse, a 26 de setembro, o novo Presidente tem-se desdobrado em decisões para renovar a administração pública. Tem sido um corrupio de exonerações na administração pública, de cancelamento de contratos com empresas privadas e de discursos onde deixa alfinetadas e mensagens. Ainda há menos de uma semana, Lourenço deixava um recado enigmático, dizendo estar ciente “dos obstáculos no caminho”.
Presidente angolano alerta para “inúmeros obstáculos no caminho” da governação
“É impressionante a alegria das pessoas”, diz ao Observador Carlos Rosado Carvalho, diretor do jornal angolano Expansão a partir de Luanda. “As pessoas sentem-se representadas por João Lourenço, porque ele aparentemente está a cumprir o que prometeu e a mudança começa nos pequenos sinais de combate ao nepotismo.”
Sinais que passam por decisões como a exoneração de Isabel dos Santos, mas também por gestos mais pequenos, como explica ao Observador Vítor Ramalho, dirigente socialista nascido em Angola, secretário-geral da União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa e amigo pessoal do vice-presidente angolano, Bornito de Sousa. “O aparato de carros que o acompanha pára nos sinais vermelhos. O que nunca acontecia antes, porque o anterior Presidente mandava retirar toda a circulação nos lugares por onde passava…”, diz, destacando ainda outros episódios como a recusa de João Lourenço em ser recebido por organismos do MPLA no Dia da Independência — utilizando a expressão “Presidente de todos os angolanos” — ou a dispensa da força militar que guardava o palácio presidencial.
Os gestos têm sido recebidos com alegria nas ruas, mas também nalguns corredores do poder. Marcolino Moco, antigo primeiro-ministro de Angola e atual membro crítico do MPLA, revelou estar animado com a decisão de exonerar Isabel dos Santos: “Esta era uma necessidade de caráter imediato, sem a qual João Lourenço não podia ir a lado nenhum. Nem com José Eduardo dos Santos no poder o país podia continuar a depender politicamente de um pai e economicamente de uma filha”, afirmou ao Observador. “É o percurso natural quando toma posse um novo Presidente, mas não deixa de ser admirável porque revela alguma coragem.”
Os rumores já circulavam há alguns dias, mas faltava saber se Lourenço teria coragem de dar o passo final e afastar a filha mais bem sucedida do antigo Presidente — e ainda líder do MPLA — da empresa mais importante do tecido económico angolano. O anúncio acabaria por chegar esta quarta-feira, pelas agências de notícias, e rapidamente confirmado no site do Governo de Angola: “O Presidente da República, João Lourenço, exonerou nesta quarta-feira, 15, em Luanda, o secretário de Estado dos Petróleos, Carlos Saturnino Oliveira, a presidente do Conselho de Administração da Sonangol, Isabel dos Santos, e outros membros do Conselho de Administração da petrolífera angolana.”
Foi o culminar de uma série de medidas levadas a cabo por Lourenço desde que tomou posse como Presidente da República, em setembro deste ano. A exoneração de Isabel dos Santos está longe de ter sido a única e as mexidas não foram exclusivamente na Sonangol, pese a sua importância na economia nacional. O governador do Banco de Angola, por exemplo, foi afastado a 27 de outubro. “Não descansaremos enquanto o país não tiver um banco central que cumpra estritamente e de forma competente com o papel que lhe compete, sendo governado por profissionais da área”, tinha avisado Lourenço há alguns dias. O homem em causa, Valter Filipe, é jurista e não tem qualquer formação económica.
João Lourenço aproveitou para arrumar a casa noutras divisões, exonerando as administrações de empresas como a Ferrangol e as diamantíferas Endiama e Sodiam. Esta quinta-feira, foram também afastados dirigentes na área da Saúde e a 9 de novembro foram substituídas todas as administrações dos órgãos de comunicação social públicos como a Televisão Pública de Angola (TPA), a Rádio Nacional de Angola (RNA), a Agência noticiosa Angop e até a Edições Novembro, proprietária do Jornal de Angola. Este é muitas vezes apelidado de “porta-voz do regime”, assumindo posições pouco descoladas do discurso oficial nos seus editoriais, o que torna ainda mais surpreendente esta exoneração. “Ele quer tornar a comunicação social mais transparente”, crê Ramalho. “O próprio Jornal de Angola já tem informações que eram impensável ter antes. Acho que mais dia menos dia a SIC vai poder voltar a Angola, por exemplo.”
O objetivo parece ser o de cumprir a promessa eleitoral de “estripar a corrupção” e com o lema de campanha “melhorar o que está bem, corrigir o que está mal”. “Vamos fazer todos os esforços para ter uma administração transparente”, tinha admitido o próprio Lourenço durante a campanha. Mas, se à altura muitos achavam que podiam não passar de palavras, agora as promessas tornaram-se mais palpáveis.
Vítor Ramalho não tem dúvidas de que este é um corte com o passado, “porque se altera a forma de proceder anterior”. “Mas, ao contrário do que tenho ouvido dizer, não é uma caça às bruxas. É uma tentativa de credibilização da administração pública”, explica, necessária para “a comunidade internacional” e para “satisfazer a população”. “Ele disse ao que vinha. Na campanha eleitoral falou disso, do combate à corrupção, sem dourar as palavras”, afirma.
Para o académico Paulo Inglês, angolano do Lobito e investigador da Universidade de Munique, falta ainda perceber se esta será uma mudança cosmética ou mais profunda.”Eu percebo a alegria que as pessoas sentem, mas para todos os efeitos o Presidente agora é João Lourenço. A questão é o que fará ele com este poder. Esta é apenas uma guerra mesquinha ou há algo de mais fundo aqui?”, diz ao Observador. “Ele está a criar o seu espaço e então faz esta estratégia de terra queimada. Falta mostrar que tem uma política diferente.”
Filomeno dos Santos, o homem que se segue
No início deste mês, em entrevista ao semanário Expresso, o jornalista e ativista Rafael Marques falava sobre um possível afastamento de Isabel dos Santos da Sonangol, que classificava de “maior teste” para João Lourenço. A pressão para afastar a filha do antigo Presidente tinha vindo a acumular-se nos últimos tempos, como explica o jornalista Carlos Rosado Carvalho: “Havia um clima hostil e de rumores constantes. A maior empresa de Angola não podia ficar refém desse clima. O Presidente tinha duas hipóteses: ou reforçava a confiança em Isabel dos Santos ou demitia-a.” Escolheu a segunda opção, a que não terão sido alheias algumas polémicas recentes.
Por um lado, o próprio João Lourenço tinha visto a sua autoridade minada com a exoneração de três administradores da Sonangol por José Eduardo dos Santos no dia em que Lourenço tomava posse. A decisão abriu espaço para Isabel dos Santos escolher novos administradores, tendo optado por dois portugueses, Susana Brandão e Emídio Pinheiro, uma decisão impopular entre muitos angolanos. Lourenço nunca os nomeou, optando por deixar expirar o prazo legal. “Recentemente, havia ainda os problemas com as cimenteiras, que se queixavam que a Sonangol não lhes andava a fornecer combustível, enquanto a cimenteira de Isabel dos Santos [Nova Cimangola] recebia”, explica Rosado Carvalho. “Não sei se é verdade, mas criou a suspeita de que havia conflitos de interesses e de que Isabel estaria a usar o lugar em seu benefício.”
A perceção negativa que muitos angolanos têm de Isabel dos Santos — que Rafael Marques definiu na entrevista ao Expresso como sendo a de uma “senzaleira mazinha”, “mas inofensiva” — intensificou-se de tal forma que mudou a posição de alguns dentro da elite. “Houve um debate ontem na TV Zimbo onde o comentador Gildo Matias fez questão de pedir a exoneração de Isabel dos Santos. Uns meses antes era um ferrenho apoiante dela, agora diz que não há condições para ela se manter no lugar…”, ilustra Paulo Inglês.
No início do mês, a RTP noticiou o que alguns já esperavam, dizendo que Isabel dos Santos tinha sido afastada da Sonangol. A empresa e a própria apressaram-se a fazer um desmentido. Afinal, só o timing estava errado: duas semanas depois, Isabel é mesmo afastada e para o seu lugar é nomeado Carlos Saturnino, secretário de Estado do Petróleo e antigo administrador da Sonangol que ela própria tinha demitido. Um duplo golpe em Isabel dos Santos, que viu ser-lhe retirada uma das maiores jóias da coroa. “A Sonangol é um ponto nevrálgico da economia angolana. Se o Presidente não tem poder ali, não tem poder efetivo. Em termos simbólicos, este foi um passo muito importante”, resume Inglês.
Os angolanos ouvidos pelo Observador são unânimes em acreditar que a seguir a Isabel deverá seguir-se outro dos filhos do Presidente, Filomeno dos Santos (conhecido por Zenu), responsável pelo Fundo Soberano de Angola. O Fundo tem estado debaixo dos holofotes pelas piores razões, já que foi envolvido em suspeitas de desvios de fundos e conflito de interesses com a investigação dos Paradise Papers. Já em abril de 2016 os Panama Papers levantavam suspeitas sobre lavagem de dinheiro relacionadas com o Fundo. A UNITA, partido da oposição, já pediu a criação de uma comissão parlamentar de inquérito ao organismo público.
Ao mesmo tempo, Lourenço já tinha dado um sinal na direção de Filomeno, ao eliminar o contrato público existente com a Bromangol, uma empresa de análises responsável pelas avaliações de qualidade a todos os produtos importados, muito criticada pelos seus altos preços — e que muitos acreditam estar ligada a Filomeno dos Santos. Talvez por isso, antecipando as movimentações do Presidente, Filomeno possa adiantar-se. É isso que o Club K, um site de notícias crítico do regime de Dos Santos, garante que irá acontecer na sexta-feira.
E este não foi o único contrato cancelado a afetar filhos de José Eduardo dos Santos. O mesmo aconteceu com a Semba Comunicações, propriedade dos filhos Welwitschea ‘Tchizé’ dos Santos e Coren Dú (nome artístico), que tinha contratos para gerir a TPA Internacional e o Canal 2. “Estou a apanhar por tabela”, reagiu Tchizé, num grupo de WhatsApp privado.
Guerra dentro do MPLA ou transição suave?
A família Dos Santos, contudo, não foi a única afetada por esta série de decisões. O ministro do Trabalho e da Segurança Social, por exemplo, esteve menos de uma semana no cargo — foi afastado por Lourenço por ter faltado à tomada de posse, numa decisão que se pretendia exemplar. O Presidente parece decidido em criar uma administração transparente: extinguiu o Gabinete de Imagem do Governo (criado em 2012), ordenou inspeções internas no mundo diplomático e prometeu criar estruturas locais até ao final do mandato, num país onde não existem ainda autarquias. São exemplos do ímpeto reformista de que parece estar imbuído o Presidente, que em apenas 50 dias exonerou dezenas de pessoas, muitas deles próximas do presidente do MPLA, José Eduardo do Santos.
Rafael Marques crê que este pode ser o fim de uma coexistência pacífica. “Ou ganha o João Lourenço ou ganha o José Eduardo”, disse ao Expresso. O jornalista não excluiu a possibilidade de que os homens próximos do antigo Presidente consigam colar algum escândalo de corrupção a Lourenço, o que poderia ditar o seu afastamento.
Paulo Inglês tem uma visão totalmente diferente. “O José Eduardo ou os amigos dele já não conseguiriam mudar muito a situação porque precisariam do apoio do Exército — e João Lourenço controla isso. Para além disso, as pessoas que ele nomeia [para os cargos na Sonangol] são das famílias da elite do MPLA”, analisa o académico, dando como exemplos Alice da Cruz e Sebastião Gaspar Martins (nomeados como administradores executivos) e José Gime (que não foi exonerado e manteve o cargo de administrador não-executivo). “Talvez sejam pessoas mais pragmáticas, mas não são ‘do contra’. Não há pessoas da oposição aqui.”
Também o antigo primeiro-ministro angolano Marcolino Moco aponta estas nomeações de pessoas afastadas da família Dos Santos — mas que estão longe de serem revolucionárias — como um sinal positivo: “Lourenço pôs nos lugares pessoas que têm um certo grau de honestidade e que tiveram algumas escaramuças com José Eduardo, como Saturnino. Que eu saiba, Lourenço não tem nenhuma relação familiar ou de amizade com estas pessoas”, sublinha, deixando claro que esse é um comportamento em tudo diferente do nepotismo do antigo Presidente.
Carlos Saturnino é um desses nomes que salta à vista. O economista foi afastado da Sonangol por Isabel dos Santos em dezembro de 2016, seis meses depois de a filha do à altura Presidente chegar à empresa, acusado de má gestão e “graves desvios financeiros”. “É este indivíduo que o Presidente traz. Portanto, das duas uma: ou aquela acusação foi falsa e Isabel de facto não devia estar ali; ou foi verdadeira e isto significa que foi só trocar um bandido por outro”, resume Inglês.
Essa é a conclusão que falta tirar: serão estas alterações mudanças de política ou trata-se apenas de substituir uma elite por outra, mais fiel a Lourenço? Marcolino Moco, figura histórica do MPLA, está esperançoso: “O João Lourenço que conheço há vários anos é capaz da mudança e tem ultrapassado as expectativas. Não pensei que fosse tão rápido. Não imaginava que pessoas dentro do partido como Lourenço, andassem a viver esta situação como eu — que sou tão crítico — tenho vivido.”
O antigo primeiro-ministro renova assim a sua fé nas figuras do MPLA e crê que pode haver uma revolução vinda de dentro. “Era impensável que toda a gente dentro do MPLA aplaudisse aquilo. Esta é a prova disso”, diz, admitindo que a frase “a independência chegou agora”, repetida por alguns, pode ter algum sentido.
Paulo Inglês, contudo, pede cautela. “Quando José Eduardo dos Santos foi nomeado Presidente em 1979, também fez o mesmo com Lúcio Lara, Ivo Carreira e mais dois ou três. E dizia-se na altura que ele precisava de destituir estes homens para conseguir ter poder. Conseguiu tanto que, de facto, acabou por ter poder demais.” Para o académico, é importante perceber se a mudança se ficará apenas pelos rostos ou se haverá outras medidas concretas, como uma auditoria à Sonangol ou maior fiscalização por parte do Parlamento à empresa.
“Esta pode ser efetivamente uma mudança. É uma mudança da forma, vamos ver se depois será de conteúdo”, resume Carlos Rosado Carvalho. Uma coisa, contudo, é certa: a Sonangol é a rainha num jogo de xadrez chamado Angola, uma peça essencial para gerir todo o tabuleiro.“É impossível governar Angola sem controlar a Sonangol. E quem governa quer rodear-se de pessoas de confiança, naturalmente”, resume o jornalista.
Isabel dos Santos, ficou agora claro, não é uma dessas pessoas para João Lourenço. E o exílio a que foi votada envia uma mensagem clara para todos os que pretendem manter-se próximos do ainda presidente do MPLA, José Eduardo dos Santos, que governou Angola durante mais de 35 anos. Mas as ações de Lourenço estendem-se para lá da família Dos Santos, substituindo figuras em várias áreas da administração pública e enviando recados sobre a sua luta contra a corrupção em várias oportunidades. Falta saber até onde irá esta mudança.
Há uma semana, o ativista Luaty Beirão deixava o aviso: “Há coisas muito interessantes a acontecer, mas acho que não devemos ficar super excitados”, disse, sublinhando que prefere esperar pelo “assentar da poeira”. Esta quarta-feira, escreveu no Twitter que João Lourenço “veio com nervo” e que o Presidente se está “a sair bem”. O elogio surgiu no dia em que Isabel dos Santos caiu do trono da petrolífera estatal angolana.