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Primeiro de dois retratos sobre os dois principais líderes políticos que concorrem às eleições do próximo domingo: António Costa por Maria João Avillez, e Pedro Passos Coelho por David Dinis.
2011, quando podia avançar a não avançou
1. A fotografia que agora olho é banal, igual a mil outras: o entrevistado de frente para mim, um gravador ao meio. Também podia ser um acolchoado estúdio de rádio, ou uma sala com três câmaras de televisão ao fundo, Dependia, mas com António Costa houve sempre tudo isso. Jornais, rádio, televisão, debates, tertúlias radiofónicas a quatro vozes: o ex-presidente da Câmara de Lisboa foi seguramente a pessoa que mais entrevistei e ouvi, por isso esta foto só podia ser assim: um instantâneo que registasse a enésima troca de palavras, ideias e argumentos entre nós.
Estávamos em junho de 2011, o socratismo fora derrotado nas urnas, o país encontrava-se à beira da bancarrota, a “troika” já cá morava, o memorando de entendimento fora assinado a 17 de maio. O PSD, acabrunhado, formara governo – em coligação com o CDS – com um programa que pouco coincidia com o ouvido semana antes, nos palcos da campanha eleitoral, pela voz de barítono do candidato Pedro Passos Coelho.
Do outro lado, um atordoado PS preparava-se para eleger novo líder, escolhendo António José Seguro ou preferindo-lhe Francisco Assis, os dois únicos candidatos à liderança do partido.
Costa desistia num tumulto de câmaras de televisão, microfones brandidos como armas e um vozear histérico e inconsequente
Ao fundo da paisagem, Costa era como habitualmente o nome de que se falava. Sim, pensara em avançar – pensava sempre – depois hesitara, afinal desistira: “a autarquia de Lisboa ocupava-o inteiramente” além de que “o mesmo figurino dera mau resultado com Sampaio” que, “apesar das suas qualidades”, nele ousara exercitar-se com a infelicidade que se conhecia.
O “recuo” dera-se dias antes, num hotel de Lisboa, numa longa noite socialista. Sócrates que deixara a chefia do PS após a derrota eleitoral ocorridas semanas antes, contava – como habitualmente – com Costa: desta vez queria-o como seu (“único”) sucessor, travando o passo às pretensões do já anunciado candidato António José Seguro, que Sócrates abominava. (E vice-versa: Seguro utilizara criteriosamente o longo consulado de Sócrates para percorrer mil vezes o país tornando-se amável primeiro, votável a seguir.)
Mas António Costa, de tão decidido que estaria a concorrer chegara até a telefonar ao irmão Ricardo, jornalista, perguntando-lhe se uma vitória sua no PS afectaria a vida profissional dele, preocupação nunca aliás até aí evocada entre ambos. Apanhado de surpresa numa reunião de trabalho no Hotel Ritz, Ricardo Costa deu-lhe expeditamente luz verde mas horas depois, por razões nunca convincentemente explicadas, Costa desistia num tumulto de câmaras de televisão, microfones brandidos como armas e um vozear histérico e inconsequente. Mas o eco ficara.
E o país tomara boa nota. Se ainda ignorava que não seria a última vez, sabia porém que não fora a primeira: a “Juventude” do seu partido esperara por ele para a liderar mas, por razões até talvez alheias a sua vontade, ele não avançou. O que interessa porém é que apesar de já favorito no longuínquo tempo dos anos oitenta, Costa não colmatara as esperanças e a espera nele depositadas.
Um sentido do destino?
2. Que importância?, parecia dizer o meu convidado naquele dia da primavera de 2011, usando daquele mimo próprio dos eleitos. E dessa confortável segurança de quem tem um destino político anunciado que o dispensava de subir escarpas e veredas.
Vivo, acutilante, teimoso, inteligente, humor pronto, preguiçoso, temperamental, impaciente e não raras vezes colérico, tem sido um político com sorte como aqueles generais que Napoleão gostava de escolher. Sorte e um instinto político à flor da pele. Quando era ministro dos Assuntos Parlamentares, no final da década de noventa do século passado, gabavam-lhe as virtudes de “negociador, o “auto-controle”, a “sagacidade política”: era considerado e bem visto quer no palco, quer nos bastidores do hemiciclo de S. Bento, o que lhe aumentou a confiança em si próprio. “Demasiada”, há quem diga: Costa acredita em si, dispensando a dúvida e o exame prévio, o que à partida não é condição de êxito nem por si só garante o happy end.
Na conversa que com ele mantive e a que tenho vindo a aludir, o meu interlocutor, com Portugal a arder, voava sobre as palavras com invejável à vontade. Como se a pré-bancarrota que o país vivia nada tivesse a ver com o recente passado socialista, como se o estado das coisas fosse alheio à governação do seu (então) bom amigo José Sócrates. Isto é, Costa auto-projectava-se automaticamente para fora do perímetro da culpa: nada lhe pesava, e muito menos a sombra do erro. A direita que governasse (“que para isso fora eleita”). De fora, o PS cumpriria os serviços mínimos do acordo com a troika. Subentendido: o mínimo para não perder a face, mas não mais do que isso.
Mais porém do que este entendimento das coisas, o que eu retivera do nosso diálogo fora a sua falsa partida para a liderança do PS. A que o teria feito defrontar um Seguro que desprezivamente dizia “mal conhecer” e há muito desconsiderava. Sucedia que aquele seu “não” ao Largo do Rato, lembrava-me um outro “não” que eu lhe ouvira, anos antes, na noite gélida de um comício socialista, numa praça portuense: “não, não quero ser líder do PS!”
Vale apena andar para trás no tempo. A história é boa: vivia-se então a campanha eleitoral para as legislativas de 2002.
A vida continuava como se António Costa achasse que ela sempre esperaria por ele.
Guterres abalara após a fragorosa derrota socialista nas autárquicas desse ano, Eduardo Ferro Rodrigues era agora o chefe de família. O novo líder abrilhantava a custo o comício da Praça dos Aliados e recordo-me que, para entreter o frio e o tédio, me ocorreu “radiografar” António Costa – à época deputado – ,que se abrigava atrás do palco.
“Então é sua vez na liderança? Para quando o chefiar das tropas?
“Não”, cortou cerce. “Não estou interessado”.
“Então será Sócrates, só há lugar para um”, retorqui.
“Então será Sócrates”, rematou ele.
E eu voltei à impressão de sempre: a vida continuava como se António Costa achasse que ela sempre esperaria por ele.
Um pacto com José Sócrates
3. Talvez tivesse razão: na morada socialista persistia-se em considerar que ninguém era mais desejado do que ele. Para quê? Para o que desse e viesse justamente. Costa era uma espécie de benjamim de toda a gente.
Tinha currículo e ofício. E também algumas vantagens: sabia fazer equipas, era bom negociador, tinha autoridade própria, poder de convocatória, e – assegurava-se – a arte da conciliação. Fora bom ministro e fora-o em mais que uma pasta. Praticava o diálogo, mesmo se a contra-gosto e o compromisso, quando percebia que o compromisso era a última saída. Usava sem remorso a impiedade como instrumento político e aplicava o seu (privado) killer instinct com a mesma naturalidade com que respirava.
Diziam-no um homem de lealdades, cultivando os “seus”, e entre eles Sócrates, bem entendido. Partilharam muita coisa, uma história antiga. Um dia tive a sorte de ouvir o próprio Costa a contar-ma. Convidou-me para almoçar, sentamo-nos a uma mesa da “Travessa”, ali à Madragoa, uma terça-feira de dezembro de 2006. Diante de um peixe e de uma água mineral escutei mais uma boa história: no início da governação de Guterres à qual ambos pertenciam, José Sócrates e ele tinham feito um pacto: impedir a repetição dos episódios ocorridos no PS no processo de sucessão de Mário Soares. Aquilo marcara-os.
“Quando chegasse a hora da mudança geracional no PS não permitiríamos que ela demorasse dez anos, enredada em lutas fratricidas como ocorreu com Sampaio e Constâncio e Guterres e Gama”.
Não: a geração socialista do pós-soarismo da qual eram ambos o ex-libris, tinha que “fazer diferente”. E melhor e mais depressa.
A decisão levou-os longe: um dia Sócrates avançou, ganhou o partido (a Manuel Alegre e a João Soares) e logo a seguir, o governo. Costa aplaudiu. O gesto baptizaria um outro PS: o deles. Voltei a lembrar-me do nosso diálogo cinco anos antes, na Praça dos Aliados: “será Sócrates”, dissera-me António Costa, aludindo ao futuro do PS. Acertara. Mas justamente fora Sócrates porquê?, insista eu. Muito simplesmente porque houvera uma espécie de “segundo pacto” entre ambos.
A “escolha” aterrou em 2005 e recaiu sobre Sócrates: ao contrário de Costa, que se desgastara na liderança da sua bancada parlamentar nos opacos anos de oposição do pós-guterrismo, Sócrates era mais conhecido
A saber: “Não há avaliações absolutas. O que há é pessoas que pelas suas características podem ser mais adequadas num determinado momento para concorrer a isto ou aquilo. Ou serem até as mais bem preparadas, mas por circunstâncias várias não estarem nas melhores condições para disputar eleições. Tão claro era isto entre nós que fizemos uma espécie de acordo não escrito: cada um de nós apoiaria aquele que no momento da escolha estaria nas ‘tais’ melhores condições.”
A “escolha” aterrou em 2005 e recaiu sobre José Sócrates: ao contrário de Costa, que se desgastara na liderança da sua bancada parlamentar nos opacos anos de oposição do pós-guterrismo (“não houve tragédia que não se abatesse sobre nós, desde o ‘discurso da tanga’ ao caso Casa Pia”), Sócrates era mais conhecido: deixara boa impressão e boa memória no Governo de Guterres e exibia-se todos os domingos na televisão num grande duelo político com um Santana Lopes, vivaço, arguto e sempre menos bem preparado do que ele.
Sócrates formou governo, Costa sentou-se no Conselho de Ministros. Era agora ministro de Estado e da Administração Interna.
O salto para a Câmara de Lisboa
4. Acto seguinte: dois anos depois, em maio de 2007, o então primeiro-ministro chama António Costa à residência oficial de S Bento. Tinham que se ver quanto antes, Sócrates estava com pressa: “preciso que avances para Lisboa.”
O caso não era para menos: a verdade é que o chefe do Governo, embora sempre muito estimado pelas sondagens, trazia às costas duas pesadas derrotas eleitorais: o PS perdera as autárquicas e, nas eleições presidenciais, o candidato socialista Mário Soares cortara a meta em terceiro lugar. Depois de Cavaco Silva – que as ganhara – e de Manuel Alegre que, concorrendo à revelia da sua família partidária, obtivera o honroso segundo lugar na corrida.
Impunha-se inverter de vez o maldito paradoxo entre o topo das sondagens e o desacerto dos votos e nada melhor para isso que a conquista de Lisboa. Sucede porém que ela se apresentava incerta: nenhum dos nomes socialistas testados por Sócrates encontrara êxito nas consultas internas mandadas fazer pelo PS. Faltava um “conquistador” à altura do desafio.
E quando um belo dia, ainda a procissão ia no adro, uma parte da procissão se adianta e sai da igreja com Helena Roseta, ex-militante socialista, num dos andores com destino à câmara lisboeta, Sócrates fareja o perigo: era preciso passar a um patamar superior de luta, nem que para isso tivesse de desmanchar o Governo – onde António Costa se sentava – na véspera das eleições europeias. Ou não era aquele seu colaborador um super-colaborador, um político próximo, um homem de confiança?
Percebendo o alcance político da empreitada, o ministro de Estado e da Administração Interna que – embora poucos o soubessem – até já manifestara ao primeiro-ministro a sua vontade de sair do Executivo, pede apenas para falar com a mulher e os filhos, principais destinatários da revolução financeira no orçamento familiar. Depois, despe velozmente a pele de governante e veste ainda mais depressa a de candidato autárquico. Encontrei-me com ele poucos dias depois, estava entusiasmado.
Levara consigo uma carta branca do líder do PS para “escolher quem quisesse e fazer como entendesse”. Subentendido: só se lhe exigia que ganhasse. Manuel Salgado, apanhado num telemóvel em Montevideu, não demorou dois minutos a dizer que sim, José Miguel Júdice também não. E José Luís Saldanha Sanches, convidado para mandatário da campanha, aceitou de imediato.
Costa ganhou e bisou: dois anos depois voltou a conquistar Lisboa, desta feita com maioria absoluta. Se há muito se dava por si e o seu nome andava nas bocas do mundo socialista, a cidade coroou-o. Tanto, que em março de 2012 houve farta romaria quando toda a Lisboa política, direita e esquerda confundidas, académicos, intelectuais, deputados, ministros e ex-ministros, se juntaram na estação do Rossio para felicitar o autarca lisboeta pela saída (inesperada) de um livro seu. Chamava-se “Caminho Aberto” e foi uma coisa que deu nas vistas.
A política veio-lhe com os genes
5. Dizia-se dele em voz alta que tinha um destino nacional e a ninguém ou quase ninguém custava ver António Costa no alto de partidos, governos ou instituições; nem a adivinhá-lo a sonhar com solenes moradas políticas. Não se sabe se seria bem assim, na altura isso não era ainda totalmente claro, outros dias viriam.
O certo é que antes da sua avançada sobre Lisboa, muito ofício, algum suor, algumas derrotas (como a de Loures, de madrugada, que deixara marcas) tinham escorrido já sobre a sua folha de serviços: António Costa fora líder de federações e distritais; dirigente nacional do PS; vereador da Câmara de Loures, deputado em várias legislaturas, líder parlamentar da bancada socialista; eurodeputado e vice-presidente do Parlamento Europeu; secretário de Estado e ministro dos Assuntos Parlamentares, ministro da Justiça e ministro de Estado e da Administração Interna.
Mas foi graças a um e a outro, pai e mães, tão distintos mas tão fortes ambos, que ele se “apercebeu” da política.
Nascido em Lisboa a 17 de julho de 1961, filho do intelectual comunista Orlando Costa, indiano de origem goesa, de uma familia católica, vindo depois a abandonar a fé e a prática religiosas (“nunca se reclamando de brâmane, mesmo sendo comunista o meu pai nunca deixou de agir como um brâmane”) e de uma activista socialista, Maria Antónia Palla, António Costa foi educado só pela mãe. E marcado por ela. Os pais separaram-se era ele ainda criança, não tendo o filho sequer memória de “terem vivido os três”. Só mais tarde, já numa “relação de adultos” se cimentou “a proximidade e a afectividade”.
Mas foi graças a um e a outro, tão distintos mas tão fortes ambos, que ele se “apercebeu” da política: cresceu no meio oposicionista da mãe, a vê-la intervir activamente nas campanhas de 1969 e de 1973 e a ouvir dizer que o pai fora preso várias vezes e que cada livro que escrevia era obra apreendida. E lembra-se – entre mil exemplos – de Isabel do Carmo a partir de sua casa para a sua última fase de vida clandestina.
Chegado Abril de 74, havia no adolescente António Costa uma viva “atenção” ao fenómeno politico. E sem paralelo com os colegas de estudo com quem provou pela primeira vez a política, numa secção da Escola Francisco Arruda, quando ainda lhe chamavam “Baboush” – que quer dizer “rapaz” no dialecto goês concanim – e usava calções.
A “acção de resistência” que então se desencadeou e da qual foi um dos motores levou o COPCON a expulsá-los do Conservatório onde “resistiam, ocupando as instalações”.
Adorando a escola e o seu ambiente alicerçado numa inovadora experiência pedagógica – iniciada por Calvet Magalhães, Madalena Perdigão e Veiga Simão entre outros – opõe-se com fúria ao afastamento da Directora, a pintora Isabel Laginhas, de quem era “fã incondicional”.
A Directora fora abruptamente saneada pelo PREC, e António Costa opõe-se com igual veemência à sua expulsão da escola, concretizada por alunos e professores do Conservatório Nacional, já que à época era lá que o estabelecimento de ensino funcionava.
A “acção de resistência” que então se desencadeou e da qual foi um dos motores levou o COPCON a expulsá-los do Conservatório onde “resistiam, ocupando as instalações”. O certo é que este primeiro confronto “com a necessidade de acção política”, este provar do activismo e a continuação de uma e de outro na Faculdade de Direito de Lisboa, são a boa explicação para o que se seguiria: a política como caminho e instrumento.
Quando chega à Juventude Socialista já lhe tinham notado a vivacidade política e porventura o talento. O primeiro foi Alberto Arons de Carvalho, que se apressou a “abrir-lhe portas”. Depois foram-se seguindo todos os outros: Guterres, com quem durante anos teve uma relação “estreitíssima e de grande proximidade”, até ela sofrer um “abrandamento”, já colmatado hoje (o “abrandamento” ficara a dever-se à “ferida aberta” pelo processo de saída do Constâncio da liderança); Jaime Gama, a quem sempre louvou a inteligência e o humor, lamentando com ênfase o “desaproveitamento de uma extraordinária capacidade política”; Jorge Sampaio (“com ele houve sempre uma relação pessoal que se distingue das outras”) era “visita de casa” e o “maior amigo” de Jorge Santos –, irmão da mãe de António Costa. Ou seja, Sampaio viu crescer “Baboush”, testemunhando um apetite político não negligenciável.
E havia ainda Vitor Constâncio, “amigo íntimo” herdado após longa caminhada comum pelas estradas de Portugal nas legislativas de 1987, onde um, Constâncio, conduzia o partido, e o outro, Costa, chefiava a campanha nacional do líder. Tudo se passou a poucos metros de mim, dentro do imenso “autocarro-caravana do PS”, onde, sob um calor absolutamente tórrido, andei durante semanas: posso afiançar os factos e a amizade.
Dentro do autocarro, e durante essa campanha, Costa e eu tínhamos discussões homéricas sobre Cavaco Silva, candidato do PSD. No Portugal profundo ou no outro, o candidato “da direita” era tema obrigatório. Mas foi a discórdia que nos aproximou. As nossas divergências – e a frontalidade viva e animada com que as discutíamos –, foram indiscutivelmente a raiz da amizade que nos ligou: não haverá muitos mais socialistas de quem diga o mesmo.
Como toda a sua geração, Costa também aplaudira o fundador Soares e o seu legado. Até ao dia em que não se coibiu de introduzir uma nota dissonante – bem audivel, por sinal – no coro de Soares, afrontando-o em 1980. No final desse ano decidira juntar-se ao grupo (sampaísta) conhecido como “ex-secretariado” quando se vivia o (quase) sangrento conflito que opôs Mário Soares ao PS, a propósito da recandidatura do general Eanes à Presidência da República.
Este gesto de Costa aproximou-o ainda mais de Sampaio que ele já admirava pessoal e politicamente, de quem era “indefectível” e que não mais largará politicamente da vista. Sampaio paga-lhe da mesma moeda: protegendo-o, escolhendo-o, apadrinhando-o. E nas ocasiões em que António Costa experimentou o exercício da advocacia, foi no escritório de advogados de Jorge Sampaio que o fez. Nunca se separaram, estimam-se muito, admiram-se mutuamente.
Quando após o longo consulado cavaquista o PS voltou à arena, Guterres primeiro e Sócrates depois levam Costa para os seus governos, em lugares políticos de destaque. Ninguém estranhou. No intervalo de uma liderança e outra, com o PS na oposição e Ferro Rodrigues no chefia do partido, fora sobre António Costa que recaira a liderança dos deputados socialistas no parlamento. Onde (dizia-me ele ao tempo, sem sombra de hesitação), a bancada “era de luxo” e a sua direcção parlamentar “de oiro”.
António Costa, na primeira fila da bancada, usava de retórica virulenta para com o poder, insultando ministros e não raro recorrendo à violência verbal. E quando uma ocasião em que por puro acaso me encontrei com ele num avião que voava para Faro e me espantei do desplante agressivo com que no parlamento apelidava – aos gritos – a então titular das Finanças, Manuela Ferreira Leite, de “mentirosa”, respondeu-me com cínica solicitude que “o PS e ele estavam muito traumatizados politicamente”.
Em 2004, aflito com as eleições europeias, Ferro vai buscá-lo: António Costa era “o único” que podia acompanhar Sousa Franco à frente da lista do PS! Costa foi, ia sempre – e acabou por ser ele o primeiro da lista, depois da morte inesperada, em campanha, do professor de Direito. A passagem pelo parlamento europeu entre 2004 e 2005, embora breve, levou-o à vice-presidência da “casa” de Estrasburgo e ao conforto de uma agenda onde cabiam “as melhores livrarias e os melhores restaurantes” da capital belga, onde passava metade da semana. Tinha mais vagar e mais tempo para cozinhar, um dos seus vivos hobbies. Diz quem provou que tem paladar apurado e boa mão para a cozinha.
Tempos de felicidade.
O homem que perdia sempre por poucos
6. Um percurso sem pausas onde, sobrepondo-se a qualquer outro factor, avulta a “imprescindibilidade” com que os diversos líderes socialistas olharam politicamente para ele: todos lhe bateram à porta, ele acorreu a todas as chamadas. Nunca parou. E nunca se parou de falar dele.
O que não diz é que, no calor do debate, pode por vezes ser arrogante e, no clamor do confronto, ser violento.
Não sendo avesso a decisões rápidas e assumindo não temer a pressão (“nunca deixei de decidir nada que tivesse de decidir rapidamente”), estrutura o seu processo de decisão conforme as circunstâncias lhe reclamam mais ou menos ponderação. Ou maior ou menor velocidade. Embora (nuance interessante) “nem sempre se acerte no tempo da decisão”.
Diz que sabe ouvir e e como tal, procura gente que “admira e respeita” para obter massa crítica que confira “qualidade” ao seu processo decisório. O que não diz é que, no calor do debate, pode por vezes ser arrogante e, no clamor do confronto, ser violento.
Fazedor mais que ideólogo, rejeita “posturas políticas contemplativas e teorizadoras”, (“não seria essa a minha grande mais valia!”) e fala da política como “instrumento”.
De quê? Da realização de projectos; da prática das ideias em que “se acredita”; do exercício da cidadania “responsável e em nome dos outros”.
A receita provou por vezes estar certa, embora seja surpreendente (ou defensivo?) o modo quase automático com que António Costa lembra – e enumera – as derrotas que sofreu: “tive imensas, durante anos brinquei dizendo que a minha especialidade era perder por poucos!”
Nessa soma (perdeu por onze votos a eleição para a direcção da Associação Estudantes de Direito; por oito (contra João Soares) a liderança da FAUL; e por 0,7% a presidência da Câmara de Loures) ele vê porém a vantagem de “perder cedo”. E logo retira uma lição: “perder cedo ajuda a ganhar, mas ajuda sobretudo a não ter medo de perder ou ganhar”.
O que distingue António Costa?
7. Perguntei-lhe uma vez pela sua assinatura na política, Costa reivindicou com veemência ter “biografia”. Que o mesmo é dizer que assumia uma soma de “actos, gestos, palavras” deixada nas várias estações – partidárias, autárquicas, parlamentares, ou governamentais – onde se apeara.
“Escrevi um livro em março de 2012 para sinalizar tudo isso. Explicar o meu modo e o meu método. Em vinte anos de actividade nunca me sentei à espera que as coisas acontecessem, fi-las eu”.
Gostando de si próprio sem parcimónia, evoca uma caminhada feita de várias encarnações cuja diversidade ele transforma em trunfo: serviu-as todas bem, aprendeu, deixou marca no país.
A vereação de Loures, por exemplo, foi farta escola: aprendeu as vantagens da “proximidade”, a “utilidade” da personalizaçao dos mandatos, adquiriu músculo na mobilização do eleitorado.
“Só se falava da corrida de burro que fiz na campanha contra um Ferrrari mas Loures mudou radicalmente a minha relação com os cidadãos e influenciou todo o trabalho parlamentar que fiz daí em diante” recordou-me um dia. Falávamos a propósito da introdução na agenda do país – pela primeira vez e graças a si – de temas relativos à emigração os quais como deputado, tribuno ou ministro, ele levara à apreciação das bancadas parlamentares de S Bento: da regularização dos imigrantes à Lei da Nacionalidade, passando por diversa legislação, havia trabalho de casa para mostrar.
Breves exemplos do “fazedor” colhidos ao acaso mas que somados a outros lhe dão direito – diz ele – à reivindicação da biografia.
Como titular da Justiça (“gente insuspeita classificou-me com o melhor ministro da Justiça da Democracia mas não terei a imodéstia de o lembrar”), evoca com aceso orgulho “a criação de um clima que jamais voltou a haver de confiança entre todas as profissões judiciárias. Um ambiente propiciador do início de várias reformas e da concretização de outras”. “Conheço pouca gente na política que seja tão capaz de gerar consensos como eu”.
Talvez por isso pôde assumir no livro atrás referido – “Caminho Aberto” – um documentado inventário em matéria de leis e reformas. Como as que assinou na administração interna (“ garantias dos cidadãos”; “responsabilidades das entidades e dos agentes administrativos”; “simplificação dos procedimentos”); ou na organização administrativa (“administração do sistema de justiça”; “reorganização do sistema de protecção civil e socorro”; primeira fase do programa “PRACE”; “restruturação dos serviços da Câmara Municipal de Lisboa”).
Breves exemplos do “fazedor” colhidos ao acaso mas que somados a outros lhe dão direito – diz ele – à reivindicação da biografia.
Outra vez uma falsa partida: o pacto de 2013 com Seguro
8. Lugar cativo no futuro é que não se sabe. Apesar de até hoje ter sido a primeira escolha (fosse para o que fosse) dos vários chefes socialistas ou de ouvir há um quarto de século dizer de si que “é o único que”, continua a não se saber.
Sim, um dia começou a ver-se nele o dono de futuros políticos gloriosos e prestigiados destinos. Não fora porém estranhamente o próprio, no último momento, e por mais de uma vez, pareceu temer uns e desistir dos outros. Como voltou a ocorrer no final de janeiro de 2013 quando entrou no Largo do Rato – onde nessa noite reunia a Comissão Política do PS – como candidato à liderança.
Havia eleições directas dentro de pouco tempo no partido, o país “tinha-o” como candidato à liderança, desta vez é que era. Mas horas depois, já quase de madrugada, António Costa abandona a sala do Rato na inverosímil condição de “aliado” de António José Seguro. Outro episódio cujo défice de explicação é directamente porporcional aos estragos causadas naquela altura na credibilidade do seu autor.
“Outra vez”?, ouvia-se dizer por aí. Sim, o mundo espantava-se com a reprise.
Tinha razão o mundo: o ex-candidato reunira a sua vereação nessa mesma tarde, dando-lhe parte do que poderia ocorrer; jantara na companhia de Francisco Assis, a quem confidenciara planos, estava animado e loquaz, não duvidando os outros comensais de que tinham jantado com o candidato rival de Seguro nas próximas directas socialistas.
Sucedeu porém que mal passara a porta do edifício cor-de-rosa do Largo do Rato, a travessia da sala onde iria decorrer a reunião da Comissão Política se revelara para António Costa cruelmente esclarecedora: em escassos segundos percebeu – e ouviu – que as certezas em que se escorara davam de si. E que as contas que fizera estavam erradas. As contas e os votos, se os houvesse: nada era conforme à realidade.
Mas de que se tratava então? Como explicar o (politicamente) inexplicável? A angústia do guarda-redes antes do penalty? Uma colecção – recuos, valsas, hesitação, marchas-atrás – de maus momentos? Uma opaca mistura de erros de avaliação, maus cálculos, insegurança? O temor (paralisante?) de passar a fronteira entre ser o “único” de outros para passar a chefe de todos eles? Ou simplesmente um puro ataque de prudência? Talvez mais valesse um pássaro na mão do que dois a voar e o pássaro já pousado na sua mão era demasiado precioso: tinha o nome de Lisboa, era seu, e tal pertença não podia soçobrar em aventuras de dramático desfecho.
Seria isto? Não se sabe, ninguém sabe.
Mas como “para cada um sua verdade” – já ensinou Pirandello – a dele é um pouco diferente. Ouçamo-lo:
“O que eu percebi ao atravessar aquela noite a sala da reunião do PS foi que a última coisa que o partido desejava era que houvesse naquela altura uma luta pela liderança ”. Segundo o que então lhe ouvi, o que a família socialista “claramente” desejava era que “o PS se concentrasse na escolha de boas candidaturas autárquicas e na oposição ao governo”. (pausa) “Sim, bem sei que muita gente na sociedade portuguesa achava que a maior prioridade era a formação de uma alternativa de governo e que ela seria mais consistente se o PS fosse liderado por mim”.
Costa acha mesmo que há hoje, na história da oposição socialista à coligação PSD/CDS, “um antes e um depois de Coimbra”. Subentendido: graças a si.
Se o desabafo é revelador, a explicação do equivoco é modesta: como justificá-lo? Calculismo, precipitação, intriga, ameaça, ambição? António Costa chama-lhe “erro avaliação”:
“É falso dizer que o conjunto das várias declarações feitas na semana anterior à reunião do PS a pedir a antecipação do Congresso expressava não só a minha opinião como tinha sido concertado comigo. Nem sequer tive conhecimento antecipado delas. Aliás sempre disse que era contra a subversão dos calendários normais do PS”.
Batia-se sim por uma nova “orientação estratégica partilhada por todos” que identificasse a origem e a natureza da crise nacional: para que o PS não continuasse amarrado à enviezada “leitura” que o governo dela fazia. E visto que Seguro aceitou partilhadamente “discutir e apadrinhar” um conjunto de propostas e comprometer-se com a “unidade” da família, o autarca de Lisboa “sentiu-se dispensado de concorrer contra ele”.
Apresentado dias depois em Coimbra na reunião da Comissão Nacional, o documento estratégico surgiu aos olhos (interessados) de António Costa, como o primeiro passo da “nova” oposição do PS ao Governo. Costa acha mesmo que há hoje, na história da oposição socialista à coligação PSD/CDS, “um antes e um depois de Coimbra”. Subentendido: graças a si.
Passadas poucas semanas, a juntar à surpresa causada pelas declarações do núcleo duro “socrático”, novo pasmo: o autarca de Lisboa também não seria previamente informado de que José Sócrates iria dispor de um palco no país, no ecrã da televisão estatal.
Não se tinham visto, o amigo não o procurara, não falavam há muito. Costa – disse-me ele na primavera de 2013 – “achava até” que Sócrates “continuava a viver em Paris” – o que mostra que não estava certo da morada do amigo –, alegando que a distância “talvez dificultasse o reatamento da conversa”. Tomei boa nota. Mas fui incapaz de avaliar do que se tratava realmente: um desencontro já tingido pela irreversibilidade do afastamento? Ou algo ainda passível de reanimar uma amizade antiga como a que eu julgava existir entre os dois? Talvez o próprio António Costa também não o soubesse. Fosse como fosse, as relações entre ambos, já meio esboroadas, estavam a caminho de se desfazer.
Tempos muito felizes
9. Casado e pai de dois filhos, um rapaz e uma rapariga, este construtor apaixonado e meticuloso de “puzzles” com milhares de peças (outro grande hobby) é, sempre foi, um cidadão interessado pela vida e as suas coisas. Gosta de viver, rir, conversar, ler; gosta de saber, comer, beber. E do Benfica, como eu. Repito que as discordâncias a que já aludi – volto a elas porque existem – nunca nos afastaram, e quanto ao futuro, a Deus pertence. O que sei é que António Costa, ainda mais que “amigo da casa”, é amigo do nosso “pátio” e de todas as gerações e famílias que o habitam. Costumavam apreciar-lhe a disponibilidade, a simpatia, a energia. E depois o facto de ali (no “pátio”) não se votar PS nunca tinha importância.
Todos sabíamos que era assim e dávamo-nos bem com isso
No dia seguinte recolhi opiniões surpreendidas face à sua capacidade de “convocação” de público fora do reduto da política e interroguei-me: Costa seria um sedutor? Era, de certo modo.
Um dia convidei-o para um programa televisivo de que eu era autora e pivot mas dessa vez não para discorrer sobre política. Tratava-se, mais imaginativamente, de comentar uma peça de teatro, então em cena em Lisboa, no Teatro Aberto, intitulada “Democracia” de Michael Frayn. E embora ele não seja o que se chama “um homem de leituras”, seria ali um bom interlocutor.
Ao lado de António Costa nos estúdios da SIC Notícias sentavam-se nessa noite João Lourenço, encenador da peça, e Maria José Nogueira Pinto, que vira a peça e a apreciara.
Costa discorreu com gosto sobre a democracia, a da peça e a outra. No dia seguinte recolhi opiniões surpreendidas face à sua capacidade de “convocação” de público fora do reduto da política e interroguei-me: Costa seria um sedutor? Era, de certo modo. Não se sabe é até quando duram os sedutores, na voragem dos seus erros e na solidão das suas ilusões.
Anos depois, estávamos em 2008, novo encontro, desta feita radiofónico, no “Mesa para quatro”, debate semanal na qual se sentavam também a minha irmã Maria José e Paulo Rangel e do qual eu era de novo pivot e autora. Havia um alto astral, o programa “funcionou”, o diálogo era vivo. Mas um belo dia de abril desse mesmo ano de 2008 outras propostas se levantaram na agenda de Costa: a “Quadratura do Círculo”, exercício semanal de análise política, na SIC Noticias, oferecia-lhe lugar cativo no programa. O desafio dar-lhe-ia asas, não hesitou. Em Maputo, onde me encontrava em trabalho, sou surpreendida por um telefonema seu, a pedir “dispensa”: “Queria ser eu a dizer-lher, não gostava que soubesse pelos jornais mas…vou mesmo aceitar, o convite é irrecusável”.
Era “irrecusável”, claro. Tive pena. Costa cometia a proeza de, chegando sempre atrasado aos estúdios do Radio Clube, chegar sempre a tempo. Voava sobre o trânsito, a Ana sua secretária falava “n” vezes a avisar que “ele estava quase a chegar” e depois não estava. Gostávamos imenso uns dos outros, a Maria José minha irmã, ele, eu e o Paulo.
Foram tempos muito felizes.
À espera, olhando para o país e para o PS do seu lugar em Lisboa
10. E depois?, perguntar-se-á como nas histórias.
Depois o tempo foi andando, Costa reeditou a vitória autárquica em 2013, Lisboa foi-se espevitando (e embelezando) durante os seus mandatos e teve a “sorte” de centenas e centenas de lisboetas terem sido obrigados a dar a volta à cabeça para vencer a crise, o que também revitalizou extraordinariamente a cidade: surgiram novas ideias, inesperados ofícios, inéditas propostas, bons negócios, lojas alternativas, incontáveis restaurantes, espaços, esplanadas. Costa tudo abençoava. Transferira-se dos Paços do Concelho para o Intentende, ocupando agora um edifício renovado e com “pinta” que animara o bairro. A capital entrara no mapa. O gigantesco afluxo de turistas e alguns prémios internacionais para Lisboa comprovavam-no todos os dias.
O autarca porém não se deixava estar: no seu horizonte mantinha-se – nunca deixou de lá estar – a vontade de futuro político mais ambicioso.
Na liderança socialista António José Seguro não convencia nem iludia, o partido não saía da cepa torta, os amigos de Costa enervavam-se (“não havia oposição a Passos!”), sucediam-se conspirações e reuniões, fermentadas pela relutância ao líder socialista que, sem piedade e com pouco critério, os costistas e os socráticos (às vezes não era bem a mesma coisa), culpavam “de tudo”.
Durante meses e meses tinham-se feito apostas: que escolheria Costa já que tudo indicava que se poderia dar a esse luxo, a candidatura à chefia do governo numa branca mansão rodeada de árvores, ou a mais alta magistratura da nação num palácio cor-de-rosa frente ao Tejo? Dizia-se que ele não sabia, valsando de uma morada para outra, mas por mais de uma vez lhe ouvi desabafos que indicavam que sabia: “Mas que ideia! Você vê-me enterrado em Belém aos cinquenta e tal anos?”
O que ele sabia melhor que ninguém é que, após algumas falsas partidas, começava a esgotar-se o tempo para a (sua) última oportunidade e tanto fazia que tivesse solenemente prometido aos lisboetas que não sairia dos Paços do Concelho antes do final do seu (terceiro) mandato: as coisas são o que são, o que tem de ser, tem muita força. Faltava cerca de um ano para a ocorrência de novas eleições e Seguro ou as ganhava (e ele ficava fora de jogo) ou as perdia (e Costa teria diante de si o calvário da liderança da oposição). Era preciso “avançar”e de uma vez por todas. Agora, era a sério.
Um SMS e, por fim, a corrida para ser o pater familias
11. A data, como as andorinhas, chegou com a primavera, e o pretexto – algo forçado – foram os 31,46% de votos obtidos pelo PS nas eleições europeias de 25 de maio de 2014 (a coligação ficara-se por uns quase miseráveis 27,71%). Logo nessa noite, antes de Costa entrar para estúdios da SIC, consegui que me mandasse para o Observador – onde eu estava – um comentário/reação aos resultados obtidos pelo seu partido.
Acedeu, pediu embargo até às zero horas e através de um SMS – método a que muito recorre – enviou palavras fortes contra a liderança socialista: de imediato vi ali o sinal de nuvens a descerem sobre o Largo do Rato, mas mal sabia eu.
No ar das televisões, enquanto Seguro defendia galhardamente o resultado do PS, a oposição interna não perdia tempo a disparar contra ele: “à derrota histórica da Direita não se seguira uma retumbante vitória do PS” (cito de memória).
Quarenta e oito horas não eram passadas sobre este alarido quando, numa ensolarada e emotiva manhã da Ribeira das Naus, logo após a inauguração oficial do monumento a Maria José Nogueira Pinto, presidida pelo presidente da Câmara de Lisboa, este se afasta do recinto e declara aos jornalistas (previamente chamados ao local pelos seus assessores) que seria candidato à liderança do PS. Mais tarde diria que decidira sozinho, avisando apenas a família. Sem nenhum argumento que não a sua vontade política e pessoal de ser melhor, propunha-se enxotar António José Seguro da liderança do PS e sentar-se na sua cadeira do Largo do Rato. A novidade – que não o era de todo – dividiu “oficialmente” o PS e de certo modo também o país: para uns, Costa era um “calculista” (onde residia afinal o sólido argumento para esta investida contra Seguro senão em si mesmo?); para outros, um “salvador” (iria levar o PS ao Olimpo).
Em ambiente de ruidoso júbilo mediático, a passadeira vermelha ia-se, é um facto, estendendo diante de Costa.
“Este avanço de Costa respondeu ao anseio não só do PS mas de vastos sectores da sociedade portuguesa que aspiravam a uma mudança política no país, mas fora de um quadro de radicalismo político”, disse-me na altura um par do então ainda presidente da Câmara.
“Nunca se viu nada de tão anti-democrático no PS”, confidenciava-me por sua vez um “segurista” de sempre.
Em ambiente de ruidoso júbilo mediático, a passadeira vermelha ia-se, é um facto, estendendo diante de Costa. Nesse verão de 2014, no final de setembro, vive a sua hora “H” ao ganhar a Seguro as eleições directas, desta feita com a participação de eleitores fora do reduto da militância partidária, pela eloquente percentagem de 67,7%: mais do dobro do seu rival “Tó Zé”.
“A melhor demonstração da razão de António Costa foram esses resultados em eleições pela primeira vez abertas a simpatizantes, num universo bem mais amplo que o próprio PS ”, diziam-me fieis costistas. Convictos quer das suas certezas, quer do seu sucesso: quem duvidava naquelas hostes – e noutras – que Costa não viesse a ganhar, nas legislativas de 2015, uma espécie de Taça do Portugal com uma maioria absoluta de votos lá dentro? A vida vivia-se em cor-de-rosa.
Sim, em festa, euforia e certezas. Costa sentia-se todo-poderoso, fora o benjamim de toda a gente, era agora o pater familias. Tudo lhe era permitido. Uma surpreendente ida ao Congresso do “Livre” já como candidato “oficial” socialista a primeiro-ministro foi usada para sinalizar que a colheita se fazia pela esquerda da esquerda. Houve quem se espantasse, mas o momento era de estado de graça. Ao mesmo tempo que igualmente se anunciavam intenções de “restruturar a dívida”, alterar o Tratado Orçamental, usar outro tom de voz na “Europa”. Subentendido: havia de ver-se, cá dentro e nos corredores de Bruxelas/Berlim, do que era capaz “este” PS.
A tempestade inesperada: Sócrates preso
12. E subitamente – a política é isto – há uma bomba que rebenta em terreno socialista e não de qualquer maneira, nem em qualquer dia: horas antes da realização do Congresso de aclamação de Costa como líder do PS, o PS fica a saber da prisão de Sócrates, ex-pai da família e ex-primeiro-ministro do país.
Pior era impossível, ter-se-á pensado enquanto Costa se apressava a recomendar um muro de aço entre “a justiça e a política”, apressando-se a enviar, logo na manhã seguinte, um sábado, um SMS aos militantes: era um imperativo exibir serenidade e fundamental controlar os danos.
Era porém mais fácil de dizer do que de fazer, mesmo que ainda não parecesse.
O ano de 2014 não findara bem, com o brutal impacto da prisão de José Socrates em Évora (que Costa visitou de passagem e com pressa no último dia de dezembro, numa espécie de cumprimento de “serviço mínimo”) e com o mesmo Sócrates, omnipresente e destilando ódio, em entrevistas avulsas e penosas cartas abertas. Mais que um fardo, pior que um pesadelo, o preso número 44 era o rival indesejado. A partir de agora os holofotes da media e do país,estariam quer sobre um, quer sobre o outro. O inferno no Largo do Rato (e se fosse só lá)
Costa e Sócrates, amigos, parceiros, cúmplices, camaradas, que restava agora de tudo isso senão o mais ácido ressentimento?
“Costa optou desde o início por nunca assumir ‘qualquer outra pele’ que não a de secretário-geral do PS e candidato a PM, recusando pronunciar-se seja em que condição for, pessoa, camarada, amigo, etc., com a excepção da única visita que fez”, descreve-me hoje um amigo próximo, iludindo candidamente as minhas dúvidas: “Todos reconhecem que Costa sempre foi autónomo de Sócrates, e aliás amplamente popular”.
Insisti: e o legado? E a crítica ou mesmo a condenação da herança ou de parte dela? Não tive êxito: “António Costa sempre assumiu politicamente o legado político de todas as governações do PS”, ouvi eu laconicamente (como se todas as governações tivessem, por igual, desaguado numa tragédia nacional).
A vida seguia, mas quase imperceptivelmente, algo esmorecia. Caíra mais mal que bem, a euforia com que Costa e o seu núcleo duro haviam acolhido a vitória do Syriza e as irrevogáveis “esperanças” que nela depositaram de que a “Europa” mudasse de rumo e Merkel de políticas.
No final da primavera deste ano de 2015, surpresa: o PS dá a conhecer o lote de economistas chefiados por Mário Centeno a que o líder recorrera para o seu programa de governo. A novidade é bem acolhida, o grupo era sério, algumas propostas causam polémica mas estava ali um procedimento inédito e simultaneamente algo de parecido com uma boa intenção política. Mesmo que alguns, perplexos, se interrogassem: como é que “aquilo” se ajustava com os louvores ao Syriza e a defesa de Tsipras? Não ajustava. Do mesmo modo que o que Mário Centeno propunha não coincidia com os estridentes desvarios de Galamba, mas Costa usava os dois, indistintamente, acreditando muito provavelmente que tudo o que ambos trouxessem à rede do PS seria peixe. A pesca não escolhia águas, era deitar a cana e pescar o que viesse.
E se a “culpa” deste estado de coisas não pode ser exclusivamente imputada a António Costa, himself, todas as perplexidades passaram porém a ser legítimas. E as dúvidas também: qual é afinal a estratégia socialista?
Estava-se nisto quando, espantando todos, partidos e país, começam a ocorrer uma sucessão de (inexplicáveis) erros e gaffes, numa catadupa, que entraria verão dentro: do “para a frente e para trás” nas declarações de apoio à Grécia, já nessa altura a meter a marcha atrás na revolução, até ao cardápio das promessas eleitorais onde a escolha era farta demais, das medidas preconizadas pelo grupo de economistas, que ora eram passíveis de serem aplicadas, ora retiradas, até ao apoio constrangido e sempre ambíguo ao infeliz candidato presidencial Sampaio da Nóvoa, passando pela escolha (digna do melhor anedotário) de desastrados cartazes eleitorais, seguida da súbita demissão do dirigente da campanha do PS, ou pelas invectivas públicas a jornalistas, acabando pelo anúncio ao mundo da candidatura presidencial de Maria de Belém. Enfim, a constelação socialista empalidecia.
Pior: mais recentemente as (reiteradas) recusas do PS, em, ganhe quem ganhar, se sentar à mesa com o PSD a partir de 5 de outubro, ou o veemente anúncio do veto ao OE não clarificaram (que pensa o PS afinal?) nem tranquilizaram (haverá estabilidade com os socialistas?)
E se a “culpa” deste estado de coisas não pode ser exclusivamente imputada a António Costa, himself, todas as perplexidades passaram porém a ser legítimas. E as dúvidas também: qual é afinal a estratégia socialista?
Um António Costa que eu, afinal, desconhecia
13. Eu estivera com António Costa nas marchas de Lisboa, na noite de S. António, em junho de 2014, a seu convite, sentados na mesma bancada, debruçada sobre a Avenida da Liberdade. Pouco ou nada falámos, tal a azáfama de cumprimentos a que ele se entregou, saudando as dezenas de madrinhas e padrinhos de cada marcha, saltando, suado, simpático, comunicativo, da sua bancada para a calçada à portuguesa do chão da Avenida. Contrastando aliás com o sorriso quase postiço de Rui Moreira, muito menos à vontade e sentado ao seu lado nessa noite, na “qualidade” de convidado “especial” do autarca de Lisboa.
Depois e até hoje vimo-nos algumas vezes, como na inauguração do hotel de uns bons amigos comuns, em março passado, e pouco mais. Fui recorrendo às mensagens. Quando o Benfica ganhou o campeonato ou quando, em janeiro deste ano, o Syriza venceu pela primeira vez as eleições na Grécia, e lhe enviei um SMS, atordoada e estarrecida com a sua aparatosa reação. Respondeu, divergimos, anotei a resposta
Mas pelo meu lado – e descontando os normais excessos das campanhas, que conheço de cor – sentia por vezes dificuldade em reconhecer neste gato assanhado, o António Costa de quem fui próxima durante anos: aquele dirigente socialista que, (à excepção de Soares, obviamente), mais vezes entrevistei e repito-o porque por alguma razão o terei feito; o amigo do nosso“pátio”; o ministro avisado, o autarca que tanto apreciei; o interlocutor que se tem gosto em convidar para uma boa conversa à roda da nossa mesa aberta a outras orientações partidárias, como um dia ocorreu com António Pires de Lima ou Alexandre Relvas, ou essa pessoa que temos gosto em apresentar a gente que consideramos, como uma vez sucedeu com a genial actriz brasileira Marilia Pera. Por exemplo. Mas guardo outros.
“As expectativas colocadas sobre Costa tinham, desde o início, sido expectativas desmesuradas”, diziam-me. Ponto final.
Que será feito de tudo isto? Que me diria à mesa do “Salsa e Coentros” onde às vezes almoçámos e jantámos uma vez, após um jogo internacional no estádio da Luz -que Portugal ganhou – se lá de novo nos voltássemos a sentar? Como me explicaria as medidas à la carte que propõe conforme as plateias para onde fala; como me convenceria que irá atender à “estabilidade governativa” se persistentemente recusa diálogos e compromissos com a coligação; como me provaria que é possível ignorar a austeridade, fazendo tábua rasa das razões porque ela tem de existir? Que me diria de Jorge Jesus no Sporting, por exemplo, ou de Lisboa agora com Fernando Medina? Isso tudo. Mas tanta coisa afinal.
Mantinha-se entretanto monocórdico o eco que me chegava da entourage de Costa quando os questionava sobre este embaciamento do partido e do seu líder. “As expectativas colocadas sobre Costa tinham, desde o início, sido expectativas desmesuradas”, diziam-me. Ponto final.
Interrogações de uma campanha “empatada”
14. E assim se passou o verão no PS: aos solavancos políticos e sempre uma oitava de voz acima dos decíbeis necessários. O início do outono trouxe um tempo político já em acesa contagem decrescente. Costa parece demasiado impaciente, Passos demasiado contido. Costa, agride, tem pressa, domina mal a linguagem tecnocrática, detesta esse universo, é um político. Passos, fleumático, aborda qualquer dossier e não tem pressa nenhuma. (Tem aliás tão pouca que persiste em arrastar-se em “explicações”, enredando-se em desnecessários intróitos, um tique que nunca perdeu).
À hora a que termino este texto, diz-se que estão “empatados”.
Passos e Portas – e em surpreendente sintonia – falam menos do seu programa eleitoral e mais nos frutos da política seguida nos últimos quatro anos pela coligação e nos algarismos que comprovam a melhor saúde do país. Têm uma história para contar.
O líder socialista continua a desmenti-la e a oferecer um lote de medidas, propondo-se fazer melhor, dispensando quer a austeridade, quer o radicalismo. E – dizem eles – sem gastos que façam derrapar a consolidação orçamental. Como? Nunca ficou muito claro.
Costa e Passos enfrentaram-se em televisões e rádios com maior ou menor felicidade, muito passado, pouquíssimo futuro. O primeiro usou o ataque como arma; o segundo, usou (quase em exclusivo) os resultados da governação como argumento. Mas, por vezes, mais parecia que um concorria a chefe de partido e o outro a chefe de governo.
Não foi porém uma má campanha e nenhum dos corredores, goste-se ou não de Pedro e de António, é de deitar fora. Em graus embora diferentes e com “obra” distinta, são dois experimentadíssimos políticos profissionais. O país conhece-os. E apesar de muitas vezes omissos quanto aos amanhãs de cada um, a verdade é que ambos deixaram impressas no ar do tempo, as diferenças entre estilos, modos, escolhas e prioridades.
Mais: com um ex-banqueiro em prisão domiciliária (o maior e mais poderoso banqueiro de Portugal, timoneiro do único banco verdadeiramente privado nacional, agora desmembrado e sem destino) e um ex-primeiro ministro, seu amigo e igualmente poderoso, recém saído de uma cadeia no Alentejo, é quase milagroso Portugal chegar “normalmente” ao dia 4 de outubro. (E ainda nos falta essa de ver o sorriso triunfal de José Sócrates, sofregamente capturado por todas as televisões, a votar no próximo domingo.)
Se depois disso a “governabilidade” também sobreviver ao dia 5 é outro milagre. Mas não é senão esse o grande “enjeu” destas eleições de 2015.