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“Esteta, entusiasta, erudito, conviviam na personalidade de Mega Ferreira o comprometimento cívico e a distância irónica. Foi um dos melhores da sua e minha geração no campo da cultura”, disse Marcelo Rebelo de Sousa sobre Mega Ferreira
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“Esteta, entusiasta, erudito, conviviam na personalidade de Mega Ferreira o comprometimento cívico e a distância irónica. Foi um dos melhores da sua e minha geração no campo da cultura”, disse Marcelo Rebelo de Sousa sobre Mega Ferreira

Gerardo Santos / Global Imagens

“Esteta, entusiasta, erudito, conviviam na personalidade de Mega Ferreira o comprometimento cívico e a distância irónica. Foi um dos melhores da sua e minha geração no campo da cultura”, disse Marcelo Rebelo de Sousa sobre Mega Ferreira

Gerardo Santos / Global Imagens

António Mega Ferreira (1949-2022): o cosmopolita fabricante de cultura

O escritor que nunca poderia ter sido outra coisa, o renascentista apaixonado por Itália, pai da Expo 98 e que também liderou o CCB. Morreu aos 73 anos, na sua Lisboa do Santo António e do Benfica.

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António Mega Ferreira parecia estar sempre um passo à frente dos seus contemporâneos. As suas ideias levitavam no futuro e quem vive com a visão no amanhã, vive irrequieto no presente. A prudência em excesso fazia-lhe confusão. Dizia que assim ela assumia as cores do medo, como referiu em entrevista à Rádio Renascença, em novembro passado, a propósito da confusão que lhe fazia um governo de maioria absoluta como o de António Costa não avançar com medidas estruturantes, como a construção do novo aeroporto ou do TGV.

Esse modo inquieto de levar os dias, de olhar para os seus ofícios e para o país, fez dele um daqueles homens vitais para a constante renovação da sociedade, fosse através da criação de um novo livro, de um novo jornal ou de uma exposição internacional. Marcelo Rebelo de Sousa, seu amigo e colega desde os tempos do Liceu Pedro Nunes até à licenciatura em Direito, na Universidade de Lisboa, descreveu Mega Ferreira como uma das figuras “mais dinâmicas da cultura portuguesa do último século”: “Esteta, entusiasta, erudito, conviviam na personalidade de Mega Ferreira o comprometimento cívico e a distância irónica. Foi um dos melhores da sua e minha geração no campo da cultura”, escreveu num comunicado que dava nota da morte de Mega, como era conhecido, aos 73 anos, esta segunda-feira, 26 de dezembro.

“Esteta, entusiasta, erudito”: morreu António Mega Ferreira

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A ida para Manchester, em 1972, para estudar Comunicação Social, não terá sido de todo alheia a esta formação de caráter e à sua visão cosmopolita. Nessa altura, com 23 anos, Mega Ferreira experimentou a doce liberdade de ir a Londres todos os fins de semana, fosse para admirar um Picasso no Institute of Contemporary Arts ou para ver o Chelsea a Stamford Bridge, clube que nem era o seu, mas que ajudava a matar o bichinho da bola. O seu coração era de cor oposta, era diabo vermelho a flamejar pelo Benfica, em primeiro, segundo e terceiro lugar, e pelo United, nos espacinhos que lhe sobrava.

“A cultura ajuda a sobreviver, ajuda a suplantar doenças, ajuda a tudo”, disse em 2020

Orlando Almeida/Global Imagens

Em Manchester, dizíamos, provou liberdades que nem imaginava que pudessem existir, fossem de expressão ou sexuais, numa altura em que em Portugal a liberdade ainda era uma flor por nascer. Em entrevista ao jornal Nascer do Sol, em 2020, dizia que “há uma coisa que só quem viveu antes do 25 de abril pode perceber: a liberdade sente-se no ar”.

De rapaz da BD a comissário da Expo98

Filho de mãe católica e de pai “republicanóide da velha cepa” — assim o apelidou na sua última entrevista dada a 7 de dezembro, na Prova Oral de Fernando Alvim — Mega Ferreira nunca se coadunou com o que via como cinzentismo da igreja. Aos 14 anos, numa época em que tudo o que fugisse à cartilha do Clero e de Salazar era pecado, teve a sua crise de fé. Isso não mexeu em nada com a admiração que tinha por Santo António, seu tutor intelectual e moral. Em criança levava uma medalhinha junto ao peito com a figura do santo e em adulto dedicou-lhe uma biografia, Santo António, de Lisboa e Pádua (2019).

Santo António era também seu padroeiro, nascido ele em Lisboa, a 25 de março de 1949, e crescido num dos bairros mais icónicos da capital, a então tranquila Mouraria. As bandas desenhadas foram a sua primeira paixão e foi a partir delas que começou a conhecer o mundo. O pai, que tinha uma papelaria na baixa, trazia-lhe cartuxos de quadradinhos para casa e Mega, com os seus tenros quatro anos que nem davam para encher os dedos todos de uma mão, olhava para as figuras tentando daí descortinar o significado das palavras que não sabia ler. A Cavaleiro Andante, revista portuguesa de banda desenhada que se manteve ativa entre 1952 e 1962, era o seu almanaque e a porta de entrada para grandes obras como As Viagens de Gulliver, Os Três Mosqueteiros ou a Alice no País das Maravilhas”.

Assumiu o papel de comissário, presidiu à Parque Expo e ao Oceanário e ao Pavilhão Atlântico, estruturas que ficaram dessa grande exposição, e foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo. Por isso, muitos lhe chamavam o pai da Expo 98, mas ele, que não tinha filhos e vivia sozinho com a sua infindável biblioteca num apartamento perto dos Restauradores, preferia ser visto como tio.

A cultura, aliás, foi sempre uma porta de entrada e um meio de superação na vida de Mega Ferreira. “A cultura ajuda a sobreviver, ajuda a suplantar doenças, ajuda a tudo”, dizia nessa tal entrevista de 2020, ao Nascer do Sol. Foi por ela que se bateu, quer enquanto criador, quer enquanto gestor, e não só de um ponto de vista pessoal. Se havia coisa em que Mega Ferreira acreditava, era que Portugal se podia fazer cosmopolita através da cultura. E se havia coisa que odiava era a falta de cosmopolitismo do país.

Terá sido precisamente essa crença que o motivou a encabeçar, com Vasco Graça Moura, a candidatura de Lisboa à Expo 98. A ideia surgiu num almoço no Martinho da Arcada, em plena Praça do Comércio, no ano de 1988, onde Mega Ferreira se dedicava ao único exercício físico que praticou em vida: o “exercício mandibular”, dissera em tom de brincadeira a Fernando Alvim.

António Mega Ferreira: um cronista aventureiro em dez livros

Brincando com a vida, com “o melhor humor e a ironia mais brilhante”, como lhe reconheceu em palavras póstumas a Presidente da Fundação José Saramago, Pilar del Río, Mega era francamente (e felizmente) imprudente ao atirar-se de cabeça para os desafios mais sérios. Esse da Expo foi talvez o grande teste de fogo da sua vida. Perante o Golias Canadá, nada faria prever que o pequeno David português, concorrendo sob o tema dos Oceanos, levasse a melhor. Mas a contagem dos votos não enganou e na cerimónia parisiense de 1993 o veredicto final pendeu mesmo para o lado lusitano: mais de 150 países e organizações desaguariam em Lisboa em 1998, numa altura em que se comemoravam os 500 anos dos Descobrimentos portugueses.

Mega Ferreira no festival literário Folio, em 2016, numa aula sobre Cervantes

Carlos Barroso/Global Imagens

António Mega Ferreira assumiu o papel de comissário, presidiu à Parque Expo e ao Oceanário e ao Pavilhão Atlântico, estruturas que ficaram dessa grande exposição, e foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo. Por isso, muitos lhe chamavam o pai da Expo 98, mas ele, que não tinha filhos e vivia sozinho com a sua infindável biblioteca num apartamento perto dos Restauradores, preferia ser visto como tio, como declarou em 2018 ao jornal i.

Encantado pelos livros, desencantado com a política

Os livros eram a sua perdição. “Eu não tinha feito na Expo 98 um décimo do que fiz, do que imaginei, do que pus em andamento, se não fosse aquilo que li, que acumulei, que vi, que experimentei”, referiu ao Nascer do Sol. Ele queria saber sempre mais de tudo o que lhe interessava, nunca se ficava pela rama. O conhecimento era fértil nas suas palavras, a quem dedicou um roteiro afetivo, editado em outubro deste ano pela Tinta da China (“Roteiro Afetivo de Palavras Perdidas”).

Mega Ferreira, o homem os 7 ofícios

Nele, Mega Ferreira resgatou 80 palavras que entraram em desuso, outras que, quase perdidas, foram resgatadas por caprichos políticos, como “bazuca” ou “geringonça”. Um exercício algo lúdico, que implicitamente tem uma mensagem urgente: perdendo-se as palavras, perdem-se as ideias, perdem-se as referências, perde-se a história, perde-se a capacidade de comunicar e de dialogar e, em última análise, perde-se a democracia. Como referiu à Rádio Renascença, “a redução da capacidade de expressão traz consigo uma redução da intensidade da comunicação. Ou seja, as pessoas comunicam menos, e comunicam pior. E depois daí vem tudo, os mal-entendidos, os equívocos, todos os disparates provêm do mau uso da língua.” O empobrecimento da língua era para ele tão assustador como o estado do mundo, duas coisas indissociáveis.

Nunca se encantou pela política, pese os convites que recebeu para assumir o cargo de ministro da Cultura. Para quê assumi-lo, questionava-se, num país que não tem um lastro cultural sólido? Como agente e gestor cultural, Mega Ferreira fazia mais política do que num governo, até porque para ele a política devia obedecer a uma visão cultural.

Por isso é que Mega Ferreira, Taurino de seu segundo nome, escreveu até ao final dos seus dias, embora muito debilitado fisicamente. Em 1997 diagnosticaram-lhe um adenocarcinoma colo-rectal e em maio deste ano foi internado com uma anemia. Em casa, já só se conseguia deslocar de cadeira de rodas, entre livros e quadros por pendurar. “Pensar que vou viver mais uma série de anos sem escrever assusta-me mais do que a morte”, desabafou na “Prova Oral”. Deixou mais de 40 livros escritos, entre ensaios, biografias, romances e poesia, e outros projetos por acabar.

Nunca se encantou pela política, pese os convites que recebeu para assumir o cargo de ministro da Cultura. Para quê assumi-lo, questionava-se, num país que não tem um lastro cultural sólido? Como agente e gestor cultural, Mega Ferreira fazia mais política do que num governo, até porque para ele a política devia obedecer a uma visão cultural, em última instância, aquilo que enforma a visão da sociedade.

As reações à morte de António Mega Ferreira

O seu percurso não foi, contudo, unânime, principalmente quando foi nomeado por Isabel Pires de Lima, na altura ministra da Cultura do Governo de José Sócrates, para Presidente da Fundação do Centro Cultural de Belém (CCB). Assumiu o cargo entre 2006 e 2012. No seu mandato, terminou com a Festa da Música, adotando um modelo mais contido ao qual chamou Os Dias da Música, não conseguiu levar avante a sua proposta de construir mais dois novos módulos no CCB, onde tencionava instalar uma biblioteca, um auditório e uma área multiusos, e perdeu o Centro de Exposições, transformado em Museu Colecção Berardo na sequência do acordo celebrado entre o colecionador e o Estado.

Foi o homem que disse que gostaria de ficar conhecido na história como “um tipo que fez essas coisas todas” na área da cultura. “Se ficar por aqui, fico bem”

Gerardo Santos/Global Imagens

Aquando da sua saída, Mega Ferreira ainda podia exercer mais um mandato de três anos, mas não foi reconduzido pelo então Governo de Passos Coelho, que tinha como secretário de Estado da Cultura Francisco José Viegas, com quem fundou a revista Ler, no final dos anos 80. Viegas lembra o seu ex-colega como “um homem do renascimento (…) absolutamente genial, em determinados momentos capaz de golpes de asa que marcaram a cultura portuguesa”.

Eterno jornalista, eterna Itália

Por alturas em que os dois lançavam a revista Ler, já Mega tinha passado pelo Comércio do Funchal, jornal então dirigido por Vicente Jorge Silva, cofundador do Público, pelo semanário Expresso, pela Agência Noticiosa Portuguesa (ANOP, antecessora da agência Lusa), pelo semanário O Jornal, pela redação da RTP/Informação 2 e pela chefia de redação do Jornal de Letras, Artes e Ideias.

Em 1996 deixou o jornalismo, porém continuou a assinar crónicas em diversos meios, como Diário de Notícias, Expresso, O Independente, Público, Egoísta, Visão e JL. Nos últimos tempos, pouco ligava à imprensa nacional, ele que teve como primeiro emprego, em 1969, o de tradutor de imprensa estrangeira no antigo Secretariado Nacional de Informação do Estado Novo. “Os jornais em papel estão moribundos e o melhor jornal que circula em Portugal é o El País”, referiu no programa “Prova Oral”. Também assinava o New York Times, o The Guardian, o Le Monde. E o La Repubblica, da sua segunda pátria, a Itália, país de paradoxos que nunca o entediava: “Até morrer, todos os anos hei de ir a Itália”, disse ao Público, em 2017.

Trocava Pisa pela vizinha e quase desconhecida Luca, com a sua arquitetura medieval e renascentista. Trocava o óbvio pelo detalhe, em Itália e na vida, fazendo da observação e do estudo o seu métier, hábito e palavra afetiva em desuso.

A ela dedicou diretamente três livros (outros tantos, como os contos Hotel Locarno, de 2015, mencionavam-na nas suas páginas): Roma, exercícios de reconhecimento (2010), Itália, práticas de viagem (2017) e Crónicas Italianas (2021), este último vencedor do Grande Prémio da Literatura de Viagens Maria Ondina Braga, da Associação Portuguesa de Escritores.

Via Pompeia como uma impressão daquilo que seria a Roma antiga, capital do Império Romano, curiosamente uma das atuais candidatas a receber a Expo 2030. Escapava de Florença para ir a Prato, a 19km de distância, para ver os frescos de Fillipo Lippi. Trocava Pisa pela vizinha e quase desconhecida Luca, com a sua arquitetura medieval e renascentista. Trocava o óbvio pelo detalhe, em Itália e na vida, fazendo da observação e do estudo o seu métier, hábito e palavra afetiva em desuso.

António Mega Ferreira foi também Diretor Executivo da AMEC – Metropolitana, entre 2013 e 2019, a instituição cultural sem fins lucrativos que gere a Orquestra Metropolitana de Lisboa, a Academia Nacional Superior de Orquestra, o Conservatório de Música da Metropolitana e a Escola Profissional Metropolitana. Dirigiu o Círculo de Leitores; foi líder da representação de Portugal como país convidado da Feira do Livro de Frankfurt, em 1997 e com uma Expo 98 em gestação; foi um homem solteiro e sozinho por mais de 20 anos, farto de casamentos e relações falhadas; foi o “mentor da Lisboa contemporânea”, como lhe reconheceu o primeiro-ministro António Costa; e foi um racional que deixou sempre espaço de manobra para o impulso. Em suma, foi o homem que disse que gostaria de ficar conhecido na história como “um tipo que fez essas coisas todas” na área da cultura. “Se ficar por aqui, fico bem”. O essencial, dissera à Rádio Renascença, já estava feito.

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