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Entrevista ao cantor e artista, Eu.Clides a propósito do seu novo álbum "Declive". Conta ao Observador um bocadinho do percurso que fez até chegar onde está, e projetos para o futuro. 2 de Maio de 2023 Cupra City Garage Hotel, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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Depois de se lançar a solo, Eu.Clides editou o primeiro disco, "Declive", que apresenta a 4 de maio na discoteca Lux, em Lisboa, e a 2 junho no hotel M.Ou.Co, no Porto.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Depois de se lançar a solo, Eu.Clides editou o primeiro disco, "Declive", que apresenta a 4 de maio na discoteca Lux, em Lisboa, e a 2 junho no hotel M.Ou.Co, no Porto.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Ao primeiro disco, Eu.Clides encontra uma voz: “Os artistas parecem sempre super heróis. Não é real”

Dois anos depois de brilhar no Festival da Canção, Eu.Clides estreia-se num álbum cheio de inquietudes, ironias, parábolas bíblicas e desejo de afirmação. Mostra-o ao vivo esta semana em Lisboa.

E olhar mais para o que está dentro da cabeça?”, questiona Eu.Clides em “99”, sexto tema de Declive, primeiro álbum do artista de 26 anos que deu nas vistas quando, em 2021, se mostrou no Festival da Canção com “Volte-Face”. “Não há pressa”, entoava então na canção que o levou até à final.

Eu.Clides assim o fez. Não teve pressa, demorou-se. Exatamente dois anos até chegar a um disco de afirmação, num processo que descreve como “terapêutico”. Euclides Gomes, cabo-verdiano que correu mundo com Daara J Family e Mayra Andrade como guitarrista, libertou-se por fim da disciplina musical que lhe era imputada pelo perfecionismo da guitarra clássica e deixou-se levar pela vontade de cantar, mesmo não se considerando um prodígio. Afinal, “ser artista é muito mais do que saber cantar, é saber comunicar com as pessoas”, diz.

Declive, editado em março e que se mostra pela primeira vez ao vivo esta quinta-feira, na discoteca Lux, em Lisboa, carrega a herança musical de Cabo Verde, junta-lhe laivos de eletrónica, mantém a guitarra portuguesa por perto e deixa espaço para o inusitado – como os últimos segundos de “Foco”, que abre o disco, em que a percussão que se escuta ao longe não é mais do que o irmão do artista a lavar a loiça. É apenas uma das 11 canções em que se descortina o universo musical de Eu.Clides, que despertou para a música na igreja, onde o pai, pastor, cantava e tocava guitarra.

Em entrevista ao Observador, a poucos dias dos primeiros concertos, Eu.Clides fala sobre a sua relação com a fé, reconhece as contradições na igreja, critica os artistas vistos como super-heróis, defende a possibilidade de ser um artista “envergonhado” e frisa a sua urgência em deixar a nostalgia para trás e concentrar esforços em “falar do presente”.

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[ouça o álbum “declive” de Eu.Clides na íntegra através do Spotify:]

Há um ano estava no palco dos Prémios Play a receber a distinção de “Artista Revelação”. No discurso disse: “Pelo vosso barulho devem estar a pensar ‘Quem é o Eu.Clides?’”. Declive (2023) é uma resposta a essa pergunta?
(risos) É engraçado dizer isso. Não foi essa a intenção, mas acho que um primeiro disco é sempre essa afirmação forte. É o concretizar de um artista. Com este disco estou-me a apresentar artisticamente de outra forma do que com um EP, que é um experimentar de muita coisa. Este disco já tem uma proposta mais madura, diria eu.

Num primeiro disco sente-se essa pressão de dizer ao mundo ‘este sou eu’?
Eu senti, se calhar há pessoas que não sentem isso, mas eu senti bastante. Talvez porque eu pessoalmente dou muito valor aos discos.

Disse numa entrevista que “um disco é aquilo que representa um artista e um primeiro disco é algo que leva algum tempo”. Tomou muito tempo a fazer este álbum?
Sim, foram dois anos e houve muito sacrifício. Foram dois anos só para isso. Nem fiz muitas datas [de concertos] porque o objetivo era mesmo ter bastante tempo para desenvolver as ideias e muitas delas precisavam de tempo de maturação.

Das ideias às canções, como é que foi dando forma ao disco? 
Terminei o EP [“Reservado”(2021)] e já estava a começar a formar algumas ideias. Mas o momento em que o disco começou mesmo foi com a parceira com o Pedro da Linha no Festival da Canção. Começou-se logo a falar num disco porque eu já estava com essa ideia e o Pedro da Linha estava com vontade de trabalhar num disco comigo.

Foi ele que o abordou para fazerem o tema para o Festival da Canção, “Volte-Face”, em 2021?
Sim. Ele veio ter comigo, desenvolvemos uma amizade e surgiu a ideia de começar um disco. Eu também já tinha falado com o Tota para começar o disco e começou aí.

O que é que o Pedro da Linha e o Tota aportam a este álbum?
O disco navega muito entre os três. O Tota acaba por estar mais envolvido na parte lírica, o Pedro da Linha na produção, mas eu diria que todos acabam por tocar um pouco em tudo:  conceito do disco, o nome, foi tudo pensado juntos. É uma conversa, uma relação que está a ser partilhada.

No primeiro single, “Terra Mãe” (2020), diz: “Sai à rua e diz o que te vai na alma”. Imagino que criar canções seja um bocadinho mais do que isso. Menciona muitas vezes o seu letrista, o Tota. É difícil para um artista encontrar alguém que transponha a sua voz para palavras?
Acho que sim, mas para mim não foi difícil. Não estava à procura disso. Simplesmente conheci o Tota, tornamo-nos bastante amigos, comecei a partilhar algumas músicas, naturalmente ele começou a corrigir algumas letras, porque é muito intuitivo para ele, e a certa altura o “Terra Mãe” foi o primeiro tema que ele escreveu. Tinha-lhe falado do tema, mas não lhe tinha pedido uma letra. Disse-lhe só que seria um bom primeiro tema para o meu projecto, tinha um lado português de que eu estava a gostar também. Ele numa viagem de comboio decidiu escrever aquelas duas quadras e enviou-me. A partir daí senti: aquilo é tão forte, não consigo ter aquela qualidade.

A escrever?
Sim.

É comum na arte a existência de duplas criativas, realizadores e diretores de fotografia, intérpretes e letristas, que trabalham de forma contínua. Sentiu isso neste encontro, nesta parelha?
Sim, dificilmente vejo o meu projeto a acontecer sem o Tota, para ser honesto. O meu sonho de ter o meu projecto aconteceu antes de o conhecer, mas hoje não imagino o meu projeto sem ele, acho que ia perder muita qualidade. Muito devo-o a ele. Encontrei um parceiro que me ajuda bastante em áreas que eu não sou tão forte.

Vamos ao mote deste disco: “Não há altos sem baixos, mas, ao menos, enquanto há o pânico da descida e o esforço da subida, há vida”. É um disco sobre a viagem?
Sim, o disco acabou por ser muito terapêutico numa fase bastante baixa da minha vida. Estava com muitos stresses e crises de ansiedade, tinha largado toda uma vida antes, de guitarrista e instrumentista profissional, e decidi dedicar-me ao meu projeto. Lançar-me nisso foi muito complicado. A fase de fazer o disco foi um compromisso duro de se fazer. Por um lado dá-se muito valor a um primeiro disco, por outro não se tem assim tantos apoios. Está-se um bocado sozinho. Não é fácil de gerir.

"Um artista hoje tem que ser um bocado um mentor ou um modelo para as outras pessoas. Não é muito comum ver um artista a pôr-se do lado humano. Parecem sempre super-heróis, malta que sabe tudo e que não tem problemas na vida, dificuldades."

E renegar a estabilidade de uma carreira como guitarrista? 
Sim. Mas o processo acabou por ser muito terapêutico, quis dar muito de mim. O disco tem como intenção ser um disco virado bastante para fora e para as pessoas, mas por outro lado tentei pegar em muitas histórias minhas, e muitas experiências pessoais, trabalhar nisso tudo. Essa pesquisa foi algo que levou muito tempo e muito esforço.

É curioso dizer que é um disco “para fora” porque muitos dos temas do álbum são virados para dentro, como a saúde mental, um tópico abordado em várias faixas. “Foco”, a canção que abre o álbum, termina com a frase “fiz do precipício uma rampa”. Em “Gravidade Zero” ouvimos como “O esgotamento/ É uma sala de mau estar”.
É verdade.

Recentemente muitos artistas têm falado sobre saúde mental, não só nas suas letras, mas também publicamente, como a Maro, por exemplo [em Outubro, a cantora cancelou a digressão prevista e assumiu publicamente estar a passar por um esgotamento]. Fala sobre isso nas canções por também ter uma experiência pessoal?
Sim, é um assunto muito presente no meu dia a dia. Lidei com muitas crises de ansiedade em miúdo, a competir na guitarra clássica. Depois durante a minha fase de tour com diversos artistas tive esses mesmos problemas. Quando és miúdo temos o sonho de pisar um palco e tocar para milhares de pessoas, depois isso acontece e parece que não reagimos bem. Lembro-me uma vez de ter um ataque de pânico porque ia subir a um palco. Estava a tocar com um grupo que adoro e foi mesmo antes do concerto. É super estranho ter esse tipo de reações. Questionei-me: será que é isto que eu devo fazer? Será que não? Será que gosto de música ou não gosto? É um equilíbrio complicado. Para mim foi importante falar de tudo isso porque me ajudou a crescer de alguma forma. Daí eu dizer que [fazer este álbum] foi tão terapêutico, porque falei de assuntos bastante complicados, mas que nessa pesquisa de encontrar uma letra e uma mensagem acabei por aprender bastante e corrigir muitas coisas.

Em entrevista à rádio Mega Hits defendeu que este disco “não é triste”. “Tem momentos tristes”, mas “deixa-te bem no fim”, disse. Mesmo a “Venham mais 7”, que tem uma melodia alegre, mas uma letra sobre alguém ocupado por tantos demónios?
O que acho é que não é um disco destrutivo. Mas é engraçado falar do “Venham mais 7” porque acho que é o único tema do disco que não tem uma finalidade positiva, é só um gajo que se destrói sozinho. A ele e a quem o rodeia e é essa a história. Não tem moral. Destruiu e acabou. É o único tema assim. Se o disco fosse só feito de “Venham mais 7” eu diria que era um disco triste. No entanto, estando inserido no disco que está já não o vejo como um disco triste, porque há um storytelling, esta ideia de crescimento, de superação.

[o vídeo de “Foco”:]

É um baixo que antecede um alto.
Exatamente.

Disse há pouco que não era um disco destrutivo. A música tem de construir, de ter sempre uma moral a retirar?
Diria que sim. Há uma coisa que me irrita bastante nos artistas de hoje… Não gosto de ter este tipo de discurso para não ser mal compreendido, e não sei se está relacionado com o pop e com o mainstream, mas passa-me a ideia de que um artista tem que ser um bocado um mentor ou um modelo para as outras pessoas. Não é muito comum ver um artista a pôr-se do lado humano. Parecem sempre super-heróis, malta que sabe tudo e que não tem problemas na vida, dificuldades. É sempre aquela postura de ‘estou bem, estou fixe’, a passar uma mensagem de arrogância, para perceberem que não sofreu qualquer tipo de dificuldades. Acho que isso é um bocado estranho porque é pouco real.

Para mim o verdadeiro artista é aquele que acaba por tocar no assunto da construção. A arte na maior parte das vezes é uma procura e um descobrimento que o artista tem com as dificuldades, com coisas que tenta perceber. A arte é uma resposta a uma coisa que se procura da forma mais simples. Quando era miúdo e estava triste ia pegar na guitarra e tocar. Esse é o verdadeiro significado da arte. É pegar naquilo para compensar de alguma forma algo pelo qual tu se passa. Acho que se está a perder um bocado esse lado. Não estou a dizer que um artista não pode ser arrogante. Pode. Mas às vezes é sem finalidade. É gratuito.

Entrevista ao cantor e artista, Eu.Clides a propósito do seu novo álbum "Declive". Conta ao Observador um bocadinho do percurso que fez até chegar onde está, e projetos para o futuro. 2 de Maio de 2023 Cupra City Garage Hotel, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Em 2021, Eu.Clides participou no Festival da Canção e chegou à final com o tema “Volte-Face”.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Prefere um artista com quem se identifique mais do que um que lhe mostre a quem deve aspirar ser?
É isso. É exatamente isso. Gosto que o artista seja real, que transmita sensações reais e humanas. Mais do que criar este personagem. Às vezes as pessoas vêm ter comigo porque eu sou envergonhado e tentam moldar-me a um modelo que seja pouco humano. Pá, se eu sou envergonhado, sou envergonhado, aceitem. É a realidade. Um artista de que eu gosto bastante é o Thom Yorke, dos Radiohead, e ele é uma pessoa estranha. Mas isso não muda o facto de ele ser um excelente artista. Há muitas pessoas que se identificam com ele e com essa aura toda estranha dele. Não é um gajo que se está aí a gabar. Não é aquele modelo de artista da moda. Mas para mim é dos melhores que há e que já existiram. É autêntico.

Aproveite enquanto a bolha está a inchar/ Compre uma tenda e ponha à venda/ É pegar e largar/ O inquilino vai ter que se habituar/ Que agora mora onde calhar”. Falando de realidade, a letra da “Tê menos 1” retrata a crise da habitação. Um artista, um cantor, deve debruçar-se sobre os problemas do seu tempo?
Acho que sim. É muito importante falar do presente. Há um sentimento nostálgico em relação à arte, de tentar reproduzir coisas que já aconteceram ou que são nostálgicas. Acho que não é muito esse o intuito da arte. A arte tem de evoluir e de andar para a frente. É importante tocar em assuntos de hoje, comunicar com as pessoas que nos rodeiam. Para mim é importante passar essa mensagem para a malta da minha geração e para mim também. Pensar sobre esses assuntos, que tentei sempre ignorar um pouco. Às vezes a situação está mal, mas tentamos passar um bocado ao lado. Nas nossas idades é importante pararmos e pensarmos em certos assuntos que são sobre o nosso futuro e sobre o futuro dos nossos filhos um dia.

Há artistas que admira por esse posicionamento artístico?
Adoro o Zeca Afonso, por exemplo. Por mais músicas bonitas que se faça, para além disso, há todo um tempo e um momento para cada artista. Saber aproveitar esse momento é bastante importante. Isso é o que destaca os grandes artistas que são eternos. É o momento em que eles vivem e o posicionamento que têm em relação à sociedade.

Saber ler o que está a acontecer no mundo e transpô-lo para a arte.
Sim, de uma forma que seja natural. Para o Zeca Afonso fazia sentido, se calhar para mim não faz tanto. Se calhar não é a minha história.

Sendo a liberdade um tema também muito presente nas canções deste disco.
É verdade. É alta referência.

"Por mais músicas bonitas que se faça, há todo um tempo e um momento para cada artista. Saber aproveitar esse momento é bastante importante. Isso é o que destaca os grandes artistas que são eternos."

Mencionou que enquanto guitarrista se sentiu a competir. Lembra-me um verso de “Dos Tempos Em Que Íamos Ser Tudo”. “Música era arena/ E eu competia/ Se valia a pena/ Já não sabia”.
Não foi só um sentimento de competição. Eu literalmente competi em competições de guitarra nacionais, internacionais. Há semifinais, finais, há um júri, malta que vem assistir à competição. Literalmente vivi metade da minha vida a competir numa área que para mim é tão pouco competitiva, não faz sentido ser competitiva, é pouco natural.

Este verso vem daí?
Vem daí, completamente. Foi uma dificuldade que tive, poder reconstruir-me em relação a muita coisa que acabei por passar nessas alturas. Foi algo que levou tempo. Sinto que agora estou numa fase em que já me estou a reconstruir de muita coisa, mas há certas coisas que me perturbaram artisticamente e musicalmente. Algumas competições são positivas para muitos alunos e a mim ajudaram-me a ter foco e tudo mais, mas há certos ambientes que não são naturais. Há que saber passar a atitude certa para a malta que vai competir. Muitos miúdos têm 10, 11 anos. Eu comecei com 8, 9 anos a competir. Às vezes o ambiente não é dos melhores, é meio estranho.

O que sofreu nesse processo?
Com o passar do tempo deixei de me divertir a tocar. E isso perturbou-me muito. Lembro-me de estar em Paris com o meu professor e de fazer um exame de guitarra e ter 19. Tudo certo. Mas ele não estava a gostar. Isso perturbou-me muito. Ele dizia-me: “tu estás bem? Estás bem aqui em Paris, com a tua família? Estás-te a adaptar bem? Parece que não te divertes com o que estás a fazer.”

E tinha razão?
Completamente. Eu estava perturbado, nem sabia o que havia de fazer. Pus-me a estudar que nem um doente a ver se acontecia alguma coisa, se era falta de nível ou se precisava de estudar mais. Não sabia o que é que era. Faltava-me a naturalidade da relação que um músico deve ter com a música. Deve ser algo divertido. Acho isto em relação a qualquer trabalho, não só na arte.

Como é que se libertou desse sentimento? 
Larguei tudo (risos). Decidi fazer o meu projeto. Aí já não há regras. Pego na guitarra não só quando me apetece, às vezes forço-me a trabalhar, mas tento sempre divertir-me. Gosto de experimentar, não me bloqueio em fazer só uma coisa. Decidi cantar, não sou um grande cantor, mas bora na mesma.

Di-lo assim, pacificado com o assunto?
Sim. O meu pai sempre me mostrou Dire Straits, sou grande fã de Mark Knopfler. Ele não é um grande cantor, vamos assumir, vamos dizer a verdade, não é um grande cantor, mas é um dos meus artistas favoritos, por exemplo. Ser artista é muito mais do que saber cantar, é saber comunicar com as pessoas. Sinto que quando canto acabo por comunicar melhor, mesmo se a minha voz estiver tremida ou se eu estiver todo nervoso. Acabo por comunicar melhor com as pessoas. Não só por ter uma letra, mas o canto é algo muito transparente numa pessoa.

É por isso que quem sai com as melhores notas do conservatório não se torna necessariamente artista?
Sim, o conservatório não está moldado para criar artistas, está moldado para criar bons músicos intérpretes. Ser artista é algo que envolve todo um outro lado da vida e de campo. Não há um padrão de estudo.

É preciso viver.
É isso.

Entrevista ao cantor e artista, Eu.Clides a propósito do seu novo álbum "Declive". Conta ao Observador um bocadinho do percurso que fez até chegar onde está, e projetos para o futuro. 2 de Maio de 2023 Cupra City Garage Hotel, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Tímido, o artista cabo-verdiano quer trilhar um caminho na música em português. Mas, por enquanto, viver em Portugal não faz parte dos planos.

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Há pouco mencionou Paris, onde vive hoje. O que é que a cidade lhe dá, enquanto artista?
Oportunidades. Em Paris estão sempre a acontecer coisas. Por acaso agora estou bastante calmo, mas houve uma certa altura em que me aconteciam coisas todos os dias. A toda a hora aparece um artista de que gostas na rua, num bar. Há muitas oportunidades. E depois é a grandeza da cidade, a mistura cultural. É enriquecedor estar num lugar em que se é pequenino. Há tanta coisa à nossa volta que não somos ninguém. Gosto dessa sensação. Por exemplo, houve fases no conservatório em que não tive tanta competição.

No conservatório cá, em Aveiro?
Aveiro e Coimbra. Houve outros anos em que tive seis, sete colegas que tocavam melhor do que eu. Para mim era fixe ter esse tipo de, não era competição, mas saber que tinha ali alguém que tem muito para me ensinar. Só o estar ali e conviver faz-me estar motivado para melhorar.

Ver os outros a fazer bem é mais estímulo do que frustração ou inveja?
Sim, completamente. Sinto-me pequeno, mas sou bastante ambicioso. Não me destrói ver alguém que é muito melhor do que. Dá-me pica (risos). Dá-me motivação. Sei que ele pode ser maior porque já chegou a um resultado que é mais próximo de quem ele é, mas ele nunca vai ser quem eu sou. Também sei as minhas qualidades e sei onde é que vou ser diferente.

O tema “Gravidade 0” tem algumas frases em francês. Há a vontade de cantar uma música integralmente em francês?
Sim. Não sou um grande escritor, mas já escrevi em francês, que é uma língua muito natural para mim. Acho que sim, que é possível.

Aprendeu-a desde pequeno ou só em Paris?
Em Paris. Cá tive francês, mas, vou ser honesto, estudava um ou dois dias antes do exame, tentava passar e estava tudo bem. Fui para lá mesmo a zeros. Depois lá apanhei muito rápido. Comecei a tocar, quando se está numa sala só com franceses, temos mesmo de nos fazer à cena.

Como muitos artistas, o primeiro contacto com a música é através da igreja. Neste disco praticamente todas as canções têm referências a esse universo: “Meu Senhor”, em “Tê Menos 1”, “Fiz as Preces”, em “Venham mais 7”, “Eu sou o anjo de pedra”, em “57 Rue de Turbigo”, “Avé Maria”, em “4ª feira”, “Mas qual fé”, em “Gravidade 0”. Arrisco dizer que se concretiza de forma mais evidente no tema “S. Eu”, em que a própria estrutura da música lembra uma oração. “S. Eu, te adoro/ S. Eu, te exalto/ Seja lá quem é que/ São Eu sou/ (In nomine meo)/ São sãs as repetições/ Tão sãs as repеtições/ Graças me dou porque еles/ Não são eu”. Isto é uma consequência natural dessa origem ou é uma coisa altamente pensada?
É algo muito pensado. Mas não diria que tem tudo a ver com as minhas origens. Sou cristão, mas não me considero uma pessoa muito religiosa. Muitas das referências que estão aí são irónicas, até meio arrogantes. No “S. Eu” falo de uma pessoa que se exalta a ela mesma. Sou eu a exaltar-me a mim mesmo. É aquela coisa que dizia antes, hoje em dia os artistas querem todos brilhar muito, não só artistas musicais, mas malta famosa, têm muito essa necessidade de querer ser luz para as pessoas. Há varios temas que tocam nesse assunto. O “4ª feira”, por exemplo, é completamente irónico, com a ideia de querer ser luz para as pessoas. E depois no “S. Eu” há a ideia de querer exaltar-me, e adorar-me. Mas depois no fim digo: “Se eu me adoro/ Se eu me exalto/ Então que se salve/ Quem puder”. Porque para mim essa é a atitude contrária à da que um artista deve ter.

E, depois, muitas dessas ideias… Eu cresci na igreja, mas há muitas coisas da igreja que eu considero bastante exageradas. A ideia do “S. Eu” surgiu de uma viagem que fiz a Roma, em que estive no Vaticano e houve algumas coisas que me perturbaram.

"Nasci em Cabo Verde, depois vivi oito anos em Lisboa, depois cinco anos na Palhaça (vila no distrito de Aveiro), três em Pombal, cinco em Coimbra, depois em Paris. Estive muito habituado a estar em "n" escolas e muitas das vezes sentir-me aquele miúdo que não conhece ninguém. Sei o que é ficar à espera que alguém viesse ter comigo. Entrar numa escola e ficar tudo a olhar."

Como por exemplo?
O exagero. Sou cristão, para mim é tudo muito mais voltado a Cristo do que a terceiros. Não aprecio a adoração que às vezes se faz a uma pessoa como qualquer outra. Tenho muita dificuldade com isso. Na religião, como na arte, há aquela ideia de bajular um artista porque ele é famoso e perturba-me um pouco. [Neste disco] há muitas dessas referências, que podemos chamar de religiosas, mas muitas delas são do ponto de vista de ‘vamos ter calma’ (risos). Todo o disco é inspirado por parábolas. Eu gosto da bíblia, gosto dos ensinamentos. Não gosto do que as pessoas fazem com o que lá existe e é isso que acaba por me perturbar.

Tem uma relação com a fé livre ao ponto de ironizar com ela?
Sim. Sem querer desenvolver muito porque acho que vai ser chato para algumas pesosas, mas até Jesus era um pouco assim. Passava-se com o exagero da religião. Há uma história na bíblia em que [ele] chegou à frente de um templo, uma igreja, e as pessoas aproveitavam a entrada na igreja para vender coisas. A bíblia conta que ele mandou aquilo tudo ao chão. Não é comum vermos histórias em que Jesus está exaltado, mas há essa crítica à religiosidade, que na bíblia não é propriamente vista com bons olhos. São assuntos para se ter um equilíbrio. Por ter crescido na igreja gosto de tocar em alguns destes assuntos. Muitos deles até para desconstruir coisas com as quais cresci, outras que são muito portuguesas, do catolicismo. Quero ser uma pessoa simples, só isso.

Como olha para estas polémicas com o altar-palco e as Jornadas da Juventude? Abalam a sua relação com a igreja enquanto instituição?
Sem querer desenvolver muito, tudo aquilo que não tem a ver com a bíblia ou com Jesus Cristo não tenho tendência para dar muita atenção.

Falava há pouco de todo o disco ser inspirado por parábolas. A música “99” parece referir-se à Parábola da Ovelha Perdida, que conta a história de um pastor que abandona 99 das suas ovelhas para procurar uma que se perdeu, como se tivesse mais valor que todas as outras.
Essa parábola é muito bonita. A ideia surgiu de uma conversa que tive com a minha mãe, que trabalha numa creche. Um dia chegou a casa toda chateada porque havia um miúdo árabe lá na escola e ela tinha de fazer um prato específico para ele todos os dias. Ele não podia comer o que os outros comiam porque os pais tinham hábitos religiosos e não queriam que ele comesse algumas coisas. A minha mãe estava chateada porque todos os dias tinha de se esforçar por causa daquele rapaz. Eu percebo, mas eu via por outra perspetiva, porque eu saltei de cidade em cidade…

Porquê?
Muito por causa da vida dos meus pais. Nasci em Cabo Verde, depois vivi oito anos em Lisboa, depois cinco anos na Palhaça (vila no distrito de Aveiro), três em Pombal, cinco em Coimbra, depois em Paris. Estive muito habituado a estar em “n” escolas e muitas das vezes sentir-me aquele miúdo que não conhece ninguém. Sei o que é ficar à espera que alguém viesse ter comigo. Entrar numa escola e ficar tudo a olhar. Eu vi-a por isso o caso de outra perspetiva, que é: aquele miúdo vai crescer e vai-se lembrar que na escola dele o tratavam de forma especial porque ele vem de um sítio diferente. Acho que isso é um ato de muito respeito e muito amor e fez-me lembrar a parábola da ovelha perdida.

Relaciono-me muito com isso por causa das viagens e de trocar de cidade. Um rapaz de uma turma vir ter comigo e perguntar-me como é que me chamava mudava-me por completo. Era a diferença entre chegar a casa triste por estar num sítio em que não conheço ninguém e em que ninguém me curte ou aquilo dar-me esperança. Para aquele miúdo foi só dizer: “olá, como é que te chamas?” O “99” nasceu daí. Aliás, muita gente não apanhou, mas o “99” é sobre um miúdo numa escola e a ideia que se tenta passar é que ele está sozinho, que os pais dele não estão lá. Daí ele dizer “Quando saio pelo portão ninguém me espera“. É a ideia de sair da escola, estar em frente ao portão, toda a gente “volta ao lar menos a fera“. Aquele é a ovelha negra, ninguém olha para ele.

Já se sentiu assim?
Muitas vezes. Não por ser preto (risos). Por trocar de cidade. Mas acho que ainda assim estou num país em que as pessoas são muito bondosas. Aqui em Portugal, em qualquer cidade senti-me sempre muito bem recebido. Isso é bastante positivo.

[o vídeo de “Venham Mais 7”:]

Outra história literalmente transposta para uma música no disco é da “Rue de Turbigo”, que recupera o caso do fotógrafo René Robert, que esteve nove horas estendido no chão sem que ninguém o ajudasse, no centro de Paris, no ano passado. Morreu de frio, aos 84 anos, provavelmente confundido com uma pessoa sem-abrigo. Porque escolheu recuperar este caso?
Houve uma fase em que o Tota veio a Paris e estivemos a trabalhar em letras e a visitar a cidade. Nessa viagem ele descobriu essa história, partilhou comigo e decidimos fazer uma canção sobre isso.

A canção acaba com uma provocação: “Mas tu que estás revoltado. Eu sei que te ias calar também”. É um tema sobre a insensibilidade que temos para com os outros?
Sim, é isso. Nessa rua há uma Cariátide que está relacionada com generosidade e achámos engraçado ele ter morrido exatamente debaixo dessa cariátide. A ideia que passa é que é ela que está a relatar a história, a ver tudo, e que acaba por ter mais sentimentos do que o próprio ser humano.

Voltar a viver em Portugal faz parte dos planos, pensa nisso?
Sim, já pensei várias vezes. Atualmente não estou com ideias de voltar. Estou a gostar de estar fora. Às vezes estar aqui cansa-me, para ser honesto. Apesar de gostar bastante de Portugal, artisticamente cansa-me porque começo a ficar bastante confortável. Fico bem. Parece que não tenho tanta vontade de fazer música, não tenho tanta raiva. Quando estou lá sinto mais isso. Ninguém fala comigo, ninguém comunica, estou meio perdido, à minha volta estão a acontecer mil e uma coisas, o contexto é muito francês. O meu projeto acontece mais cá. Estar lá dá-me uma energia fixe.

Estando “bem”, como diz, não consegue fazer música?
Eu estou bem em França (risos). Não é a ideia de estar bem, é a ideia de conforto, de estar demasiado confortável.

A música nasce do desconforto?
Sim, a inspiração, a vontade de me superar nasce do desconforto.

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