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As memórias de Al Pacino quando era ainda Sonny Boy: "Deambulávamos pelas ruas. Consegui sair vivo, eles não"

Chega às livrarias a 22 de novembro a autobiografia de um dos mais aclamados atores do cinema americano. O Observador faz a pré-publicação de um excerto, sobre a infância do jovem Alfred James.

Sempre que surgem perguntas como “qual o melhor ator de sempre?”, este é um dos nomes que invariavelemnte surge nos primeiros da lista. Foi Michael Corleone e foi Serpico, foi o protagonista de “Um Dia de Cão” e o mafioso de Donnie Brasco, foi o Advogado do Diabo (ele mesmo) e Vincent Hannah em “Heat”. É imediata a referência a uma mão cheia de papéis e filmes porque, tal como o nome parece existir desde sempre, de tal maneira nos é próximo: Al Pacino.

Existem as teorias e as informações mais ou menos confirmadas, as imagens que fazemos sobre a vida privada que não conhecemos e os tiques que supomos serem eco de uma personalidade real. Mas depois existe a história verdadeira — e é essa que faz parte deste novo livro, “Sonny Boy”, um conjunto de memórias escritas em jeito de autobiografia, que atravessa filmes e personagens, sucessos e falhanços, a infância, a adolescência e a idade adulta, amigos, desilusões, paixões e outros relacionamentos.

Fazemos aqui a pré-publicação do livro que, na sua edição portuguesa, chega às livrarias no próximo dia 20 de novembro (Presença). Neste excerto, Al Pacino recorda momentos e pessoas que, na infância, foram fundamentais na formação da personalidade que mais tarde haveria de conquistar Hollywood: a mãe, o avô, o pai (ainda que quase sempre ausente) e a rua, os amigos que, fora de casa, eram a segunda família do pequeno Alfredo James Pacino, que desde cedo viu no cinema o caminho a seguir.

A capa da edição portuguesa de "Sonny Boy", livro de memórias de Al Pacino, publicado pela Presença (a 22 de novembro nas livrarias)

Já representava desde pequeno. A minha mãe costumava levar-me ao cinema quando eu tinha apenas 3 ou 4 anos. Ela fazia alguns biscates, trabalhava como operária fabril durante o dia e, quando chegava a casa, a sua única companhia era o filho. Então, levava-me ao cinema. Ela não sabia que estava a oferecer-me um futuro. Senti uma imediata ligação com os atores que representavam no grande ecrã. Como nunca tinha amigos com quem brincar no nosso apartamento, e ainda não tínhamos televisor, dispunha do tempo que quisesse para ficar a meditar no último filme a que assistira. Em casa, percorria as personagens na minha mente e voltava a dar-lhes vida, uma a uma. Aprendi, desde muito novo, a fazer amigos com recurso à imaginação. Por vezes, ficamos satisfeitos na nossa solidão pode ser uma bênção disfarçada, especialmente para as pessoas com quem partilhamos a nossa vida.

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O cinema era onde a minha mãe podia refugiar-se no escuro sem ter de partilhar o seu Sonny Boy com alguém. Esta era a alcunha pela qual me tratava, a primeira pessoa a fazê-lo, antes de todos os outros come- çarem a chamar-me Sonny. Adotou-a do cinema, quando a escutou na voz de Al Jolson, numa música que ficou muito conhecida. Dizia assim:

“Sobe para o meu joelho, Sonny Boy
Embora só tenhas três anos, Sonny Boy
Não tens como saber
Não há como mostrar
O que significas para mim, Sonny Boy”

Aquilo ficou-lhe na cabeça por uma dúzia de anos e, quando nasci, em 1940, esta cantiga ainda estava tão fresca na memória da minha mãe que começou a entoá-la para mim. Fui o primeiro filho dos meus pais e o primeiro neto dos meus avós. Todos fizeram uma grande algazarra por minha causa.

Quando nasci, o meu pai só tinha 18 anos, e a minha mãe poucos mais. O bastante para dizer que eram jovens, mesmo para a época. Talvez eu ainda não tivesse 2 anos quando se separaram. Nos primeiros anos da minha vida, a minha mãe e eu andávamos constantemente de um lado para o outro, sem estabilidade nem certezas. Vivíamos em quartos mobilados no bairro de Harlem e, mais tarde, mudámo-nos para o apartamento dos seus pais, no South Bronx. Praticamente não recebíamos ajudas do meu pai. Um tribunal acabou por nos atribuir cinco dólares por mês, o suficiente para pagar o quarto e a alimentação na casa dos seus pais.

Muito anos depois, nos meus 14 anos, a minha mãe voltou a levar o meu pai a tribunal para lhe pedir mais dinheiro, que ele dizia não ter e que nós não recebíamos. Fiquei a pensar que o juiz foi muito injusto com a minha mãe. Faltavam décadas para que os tribunais viessem a sensibilizar-se, de alguma forma, com as necessidades de uma mãe solteira.

Foi uma revelação saber que tinha sido entregue a outrem, pelo menos temporariamente, aos 16 meses. Ter estado dependente por completo da minha mãe, sem conhecer outra realidade, para depois ser destinado a uma vida inteiramente distinta — foi uma rutura profunda. Pouco depois, comecei a fazer terapia. Teria, por certo, aspetos com os quais precisava de aprender a lidar.

Para encontrar uma primeira memória em que esteja com o meu pai e com a minha mãe, tenho de recuar até aos 3 ou 4 anos. Estou a assistir a um filme qualquer com a minha mãe no balcão do Dover Theatre. Era uma espécie de melodrama para adultos, e a minha mãe estava completamente absorvida. Sei que estava a assistir a algo com grande significado para os adultos e imagino que fosse relativamente empolgante para um miúdo da minha idade estar ali sentado a partilhar aquele momento com a mãe. Mas eu mal conseguia acompanhar a trama, e a minha atenção dispersava-se. Do alto do balcão, comecei a olhar para as filas da plateia em baixo. E vi um homem de um lado para o outro à procura de algo. Envergava o uniforme da polícia militar, onde o meu pai cumprira o serviço militar durante a Segunda Guerra Mundial.

A silhueta ter-me-á parecido familiar porque gritei «Papá!» instintivamente. A minha mãe pediu-me baixinho que me calasse. Não compreendi porquê. Como poderia pedir-me tal coisa? Voltei a chamá-lo em voz alta. «Papá!» E ela continuou a sussurrar-me, «Chiu, quieto!», porque o meu pai estava á procura dela. Como passavam por alguns problemas, a minha mãe não queria que ele a encontrasse, mas fora descoberta.

Quando o filme acabou, recordo-me de caminhar na rua, no escuro da noite, com a minha mãe e o meu pai, e o letreiro luminoso do Dover Theatre a ficar para trás. Eu seguia ao meio e levam-me os dois pela mão. Pelo canto do olho direito, reparei num coldre à cintura do meu pai, de onde despontava uma grande arma com um punho em branco-pérola. Anos depois, quando interpretei um polícia no filme Heat — Cidade sob Pressão, a minha personagem trazia uma arma com um punho idêntico. Apesar de pequeno, compreendi de imediato: É algo poderoso. E perigoso. Depois, o meu pai foi-se embora. Partiu para a guerra e acabou por regressar, mas não para nós.

Mais tarde na vida, quando atuava no meu primeiro espetáculo na Broadway, a família do lado do meu pai foi ver-me. Eu era um jovem ator de vanguarda que passara a maior parte do tempo no bairro de Greenwich Village e que, aos poucos, foi percorrendo o seu caminho na Broadway. Depois do espetáculo, duas das minhas tias e um ou dois filhos fizeram-me uma visita surpresa nos bastidores. Começaram a cobrir-me de beijos, a abraçar-me e a felicitar-me. Eram Pacinos e, embora os conhecesse das suas ocasionais visitas à minha avó paterna, senti-me um pouco envergonhado.

Porém, no meio daquela conversa de circunstância, veio à baila algo que me comoveu até aos ossos. Disseram algo sobre «o tempo em que estiveste connosco». E perguntei-lhes: «Que querem dizer com o tempo em que estive convosco?» Responderam-me: «Quando estiveste connosco, lembras-te? Oh, sim, Sonny Boy, eras pouco mais do que um bebé, ainda não tinhas ano e meio, viveste com a tua avó e o teu avô, pais do teu pai.» E voltei a questionar: «Quanto tempo lá vivi?» Cerca de oito meses, disseram, quase um ano.

De repente, as coisas começaram a compor-se na minha cabeça. Eu fora afastado da minha mãe durante oito meses enquanto o meu pai estava na guerra. Mas não me levaram para um orfanato nem para uma família de acolhimento; fui piedosamente entregue a uma familiar de sangue — à mãe do meu pai, minha avó, no que foi uma completa dádiva de Deus. Neste mundo e ao longo da minha vida, sempre tive quem cuidasse de mim, e a minha avó talvez tenha sido a primeira pessoa a fazê-lo.

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Em 1971, na Broadway, durante a peça "The basic Training of Pavlo Hummel"

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Esta constatação deixou-me de rastos. Fui invadido por uma súbita clareza acerca de atitudes inexplicáveis da minha vida até então, aos 28 anos — o meu modo de vida, as escolhas e as formas como lidei com tudo isso. Foi uma revelação saber que tinha sido entregue a outrem, pelo menos temporariamente, aos 16 meses. Ter estado dependente por completo da minha mãe, sem conhecer outra realidade, para depois ser destinado a uma vida inteiramente distinta — foi uma rutura profunda. Pouco depois, comecei a fazer terapia. Teria, por certo, aspetos com os quais precisava de aprender a lidar.

A mãe do meu pai chamava-se Josephine e, provavelmente, foi a pessoa mais encantadora que conheci na vida. Era uma deusa. Tinha um semblante angelical. Era o tipo de mulher que, nos velhos tempos, descia até à Ilha Ellis para receber os que chegavam pela primeira vez, italianos ou quaisquer outros que não soubessem falar inglês, e poder ajudá-los. Protegeu-me e lutou tanto por mim que, no acordo de divórcio dos meus pais, foi-lhe concedida permissão para poder visitar-me. O marido, o meu avo e homónimo Alfredo Pacino, saiu de Itália e chegou a Nova Iorque no início do século xx. O casamento deles foi combinado, e o meu avô trabalhava como pintor da construção civil. Bebia, o que resultava num comportamento inconstante e imprevisível.

Não tenho memória alguma do tempo que passei em casa deles, longe da minha mãe. Imagino que ela sentisse remorsos por causa deste arranjo. Sentiu decerto. É claro que não estivemos muito tempo afastados, mas, em tão tenra idade, oito meses é demasiado tempo.

Quando o meu filho Anton era pequeno, antes dos 2 anos, lembro-me de uma vez em que estávamos os dois, sem a mãe, no cruzamento da rua 79 com a Broadway. O seu olhar parecia completamente perdido. E pensei: É porque nã0 Sabe onde está a mãe. De facto, estava à procura dela — observava quem passava a ver se a via. Tinha quase a minha idade nos tempos em que vivi com os pais do meu pai. Nunca vira o meu filho tão desorientado, nem antes nem depois. Peguei nele e disse-lhe: «A mamã está a chegar, não te preocupes.» Foi o que precisou de ouvir.

Os pais da minha mãe viviam num prédio de seis pisos da avenida Bryant, no South Bronx, num apartamento do último andar, onde as rendas eram mais baratas. Era uma casa em constante atividade, com apenas três divisões, todas utilizadas como quartos. Eram pequenos, embora não para mim. Por vezes, chegavam a viver ali seis ou sete pessoas em simultâneo. Vivíamos por turnos. Ninguém tinha um quarto só para si e, durante longos períodos, eu dormia no meio dos meus avós. Noutras ocasiões, quando passava a noite num sofá-cama onde devia ser a sala de estar, nunca sabia quem acabaria deitado ao meu lado — um familiar de passagem pela cidade ou o irmão da minha mãe, regressado do serviço militar cumprido na guerra. Estivera no Pacífico e, como muitos outros homens que experienciaram combates, não falava da sua experiência na guerra. Introduzia paus de fósforos nos ouvidos para abafar as explosões que não conseguia deixar de escutar.

O nome original do pai da minha mãe era Vincenzo Giovanni Gerardi, e viera de uma antiga povoação siciliana cujo nome era, como mais tarde vim a saber, Corleone. Aos 4 anos, partiu para os Estados Unidos, possivelmente de forma ilegal, onde passou a ser James Gerard. Por essa altura, já tinha perdido a mãe; o pai, que era um pouco autoritário, voltara a casar e mudara-se com os filhos e a nova esposa para Harlem. O meu avô teve uma educação severa ao modo dos ambientes de Dickens, embora tenha sido a minha primeira e verdadeira figura paterna.

Encontrávamo-nos no exterior havia cerca de uma hora quando ouvimos alguma agitação. As pessoas corriam para o prédio dos meus avós. Alguém me disse: «Acho que é a tua mãe.» Não acreditei. Pensei: Como podem dizer uma coisa destas? A minha mãe? Não é verdade. Corri atrás delas. Vi uma ambulância em frente ao prédio e, a sair pelas portas da frente, a minha mãe levada numa maca. Tentava o suicídio.

Quando tinha 6 anos, regressei a casa depois do meu primeiro dia de escola e encontrei o meu avo a fazer a barba na casa de banho. Estava em frente ao espelho, vestindo a sua camisola BVD e com os suspensórios caídos para os lados. Fiquei ali especado, diante da porta aberta da casa de banho. Queria partilhar uma ocorrência com ele. «Avô, um menino da escola fez uma coisa muito má. Por isso, fui dizer à professora, e ela castigou-o.»

Sem interromper o escanhoar da barba, o meu avô disse-me simplesmente: «Então, és um queixinhas, hem?» Tratou-se uma observação fortuita, como se dissesse «Gostas de tocar piano? Não sabia». Só que aquelas palavras acertaram-me em cheio. Senti-me a deslizar pelas ombreiras da porta da casa de banho. Fiquei de rastos. Não conseguia respirar. O meu avô nada mais disse. E nunca mais voltei a fazer queixa de ninguém na minha vida. Embora, neste instante, ao escrever, esteja a denunciar-me.

A sua mulher, Kate, era a minha avó. Tinha cabelo louro e olhos azuis como a Mae West, algo relativamente raro entre os italianos, o que a fazia distinguir-se de todos os meus parentes. Talvez houvesse sangue germânico na sua família. Quando eu tinha aproximadamente 2 anos, julgo, ela sentava-me na mesa da cozinha e dava-me comida para bebés à colher enquanto me contava histórias extravagantes que inventava, em que eu era sempre a personagem principal. O que deve ter provocado algum impacto. Um pouco mais velho, dava com a minha avó na cozinha a descascar batatas para as refeições, e eu comia-as cruas. Tinham um baixo valor nutritivo, embora eu adorasse o sabor. Por vezes, dava-me biscoitos para cães, que eu também comia.

A minha avó era conhecida pelos seus cozinhados. Confecionava comida italiana, claro, embora não morássemos num bairro italiano. De facto, éramos os únicos italianos das redondezas. Talvez houvesse outro no lado oposto da rua, um miúdo chamado Dominic, divertido e que tinha um lábio leporino. Quando me preparava para sair porta fora, a minha avó travava-me os movimentos com o habitual pano húmido que parecia trazer sempre numa das mãos, dizendo-me: «Limpa o molho da cara. As pessoas podem pensar que és italiano.» Verificava-se uma espécie de estigma contra os italianos quando começámos a viajar para os Estados Unidos, o que só se intensificou com o eclodir da Segunda Guerra Mundial. Os Estados Unidos da América tinham passado quatro anos a combater a Itália e, embora muitos ítalo-americanos tivessem partido para lutar contra os compatriotas e ajudar ao derrube de Mussolini, outros acabaram rotulados como estrangeiros inimigos e colocados em campos de detenção. Quando estes ítalo-americanos voltaram da guerra, contraíram muitíssimos matrimónios com pessoas de outros grupos.

As restantes famílias do nosso prédio eram provenientes da Europa de Leste e de outras regiões do mundo. Escutava-se toda uma cacofonia de idiomas. Ouvia-se tudo o que se dizia. A nossa pequena área, entre as avenidas Longfellow e Bryant, e da rua 171 à rua 174, era uma miscelânea de nacionalidades e etnias. No verão, quando nos íamos refrescar para a cobertura do prédio por não termos ar condicionado, ouvíamos o murmúrio de diferentes línguas numa diversidade de pronúncias. Foi uma época gloriosa: muitas pessoas pobres de diversos guetos tinham-se mudado para ali, e estávamos a fazer algo do Bronx. Quanto mais para norte seguíssemos, mais prósperas eram as famílias. Nós não éramos prósperos. Fazíamos pela vida. O meu avô era estucador e tinha de trabalhar todos os dias. Naquele tempo, os estucadores eram muito procurados. Especializara-se naquele trabalho e era muito apreciado. Levantou um muro no nosso beco a pedido do senhorio, que gostou tanto do trabalho que manteve a renda da nossa família em 38,80 dólares por mês enquanto ali vivêssemos.

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Na década de 70, fotografado no intervalo dos ensaios de uma peça de teatro

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Até eu ser um pouco mais velho, não me deixaram sair sozinho do prédio — vivíamos nas traseiras, e as vizinhanças eram relativamente inseguras —, e não tinha irmãos. Não dispúnhamos de televisor nem de muitas distrações além de alguns discos do Al Jolson, e, quando eu tinha 3 ou 4 anos, costumava cantar por cima enquanto tocavam para entreter a minha família. As minhas únicas companhias, além dos meus avós, da minha mãe e de um cachorrinho de nome Trixie, eram as personagens dos filmes que ia ver com a minha mãe, às quais depois dava vida. Terei sido o único menino de 5 anos a quem levaram a ver Farrapo Humano. Senti-me bastante impressionado com o desempenho de Ray Milland no papel de alguém completamente dominado pelo álcool e que lhe valeu um Óscar. Enquanto luta para se libertar do álcool, sofre de delírios e alucinações, observando um morcego a esvoaçar num canto do quarto do hospital e a acometer sobre um rato que sobe pela parede. Milland levava-nos a crer que fora apanhado no terror deste desvario. Eu não poderia esquecer a cena em que está sóbrio, procurando freneticamente a bebida que escondera quando estava embriagado, embora não consiga lembrar-se onde. Eu tentava interpretar esta cena fingindo revirar um apartamento invisível, vasculhando armários, gavetas e cestos que ninguém via. Tornei-me tão bom nestas singelas representações que comecei a fazê-las a pedido dos meus familiares. Desmanchavam-se às gargalhadas. Julgo que se impressionavam com a graciosidade de um miúdo de 5 anos a fingir que remexia uma cozinha imaginária como se estivesse entre a vida e a morte. Era uma energia que surgia de dentro de mim e começava a descobrir o modo de a canalizar. Com apenas 5 anos, já pensava: Estarão a rir de quê? Este homem está a lutar pela vida.

A minha mãe tinha sensibilidade para estas coisas. Acho que foi por isso que se sentia atraída por este tipo de filmes. Era uma mulher bonita, embora delicada e emocionalmente frágil. Visitava, ocasionalmente, um psiquiatra quando o meu avô tinha dinheiro para pagar as consultas. Não sabia que a minha mãe estava com problemas até certo dia, por volta dos meus 6 anos. Preparava-me para sair e ir brincar para a rua, sentado numa cadeira da cozinha enquanto a minha mãe apertava os atacadores dos meus sapatinhos e me vestia uma camisola para que não apanhasse frio. Percebi que estava a chorar, ignorava o que se passaria, embora não soubesse como perguntar. Cobriu-me de beijos e, quando eu ia a sair de casa, deu-me um enorme abraço. Era pouco comum, mas, como eu estava ansioso para descer à rua ao encontro dos outros miúdos, nunca mais pensei naquilo.

Encontrávamo-nos no exterior havia cerca de uma hora quando ouvimos alguma agitação. As pessoas corriam para o prédio dos meus avós. Alguém me disse: «Acho que é a tua mãe.» Não acreditei. Pensei: Como podem dizer uma coisa destas? A minha mãe? Não é verdade. Corri atrás delas. Vi uma ambulância em frente ao prédio e, a sair pelas portas da frente, a minha mãe levada numa maca. Tentava o suicídio.

Não me explicaram; tive de descobrir por mim o que sucedera. Soube depois que tinha sido levada, para que pudesse recuperar, até ao Bellevue Hospital, onde as pessoas que cometiam este tipo de atos ficavam durante algum tempo. É um período que me é de certo modo vago, mas recordo-me de estar sentado à mesa da cozinha, no apartamento dos meus avós, e os adultos discutiam o que fazer. Não conseguia entender muito bem, embora fingisse que era mais um adulto no meio deles. Anos depois, participei no filme Um Dia de Cão, e uma das cenas finais, que mostrava a personagem interpretada por John Cazale transportada numa maca, já sem vida, levou-me a pensar no momento em que vi a minha mãe a ser carregada para a ambulância. Contudo, não creio que ela quisesse morrer nesse instante, ainda não. Regressou com vida à nossa casa, e eu voltei a ir para a rua.

Em pequeno, era o relacionamento com os meus amigos na rua que me dava sustento e esperança. O nosso grupo incluía os meus três melhores amigos: o Cliffy, o Bruce e o Petey. Cada dia era uma nova aventura. Deambulávamos pelas ruas ávidos de vida. Em retrospetiva, tenho a noção de sentir mais amor pela família do que qualquer um dos três. Penso que isso terá feito toda a diferença. Consegui sair vivo, eles não.

Até hoje, uma das minhas memórias preferidas é a de estar a descer a escada do meu prédio e sair para a rua numa primaveril manhã de sábado. Não teria mais de 10 anos. A rua estava vazia, e o dia radioso. Lembro-me de olhar para o topo do quarteirão e de ver o Bruce a cerca de cinquenta metros. Senti uma alegria interior que me marcou para sempre. O dia estava claro e fresco, tudo num tranquilo sossego. Virou-se, sorriu, e eu também, só por sabermos que estávamos vivos. O dia estava repleto de possibilidades. Algo estava para acontecer.

Fazíamos tudo o que podíamos para nos divertir. Passávamos horas a fio deitados de barriga para baixo, à pesca nas grelhas do esgoto nos limites dos nossos quarteirões, esperançados em detetar entre a sujidade do fundo algo brilhante que pudesse ser uma moeda perdida. Não era uma busca em vão — cinquenta cêntimos podiam mudar algo na nossa vida.

De poucos em poucos quarteirões, havia terrenos baldios onde foram plantados jardins Victory no auge da Segunda Guerra Mundial. Depois de Eleanor Roosevelt ter criado o seu jardim Victory na Casa Branca, começaram a surgir um pouco por toda a parte, inclusivamente no bairro de South Bronx. Porém, quando chegou a nossa vez de podermos utilizá-los, depois da guerra, estavam atrasados e cobertos de entulho — as flores tinham ido para o Céu. Estas parcelas eram delimitadas por passeios. De quando em quando, ao olharmos para um destes passeios, víamos uma folhinha de relva a nascer no meio do cimento. Certa vez, o meu amigo Lee Strasberg designou assim o talento: uma folhinha de relva a crescer de um bloco de cimento.

Passámos a juntar-nos e a brincar nestes jardins Victory cheios de lixo. Resultaram em belos campos de beisebol se conseguíssemos reunir detritos suficientes para assinalarmos as bases. Muitas vezes, quando jogava beisebol num destes terrenos, vislumbrava, ao longe, o meu avô de regresso a casa, vindo do trabalho, por volta das cinco da tarde. Onde quer que estivesse, assim que o via, disparava ao seu encontro no passeio, quase sem lhe dar tempo para ali chegar, a fim de lhe pedinchar alguns trocos para um gelado.

Olhava-me do alto e entrava a mão no bolso até onde parecia ser o fundo das calças, tirando-a depois como uma grande dádiva: uma moeda cintilante. Dizia-lhe de fugida «Obrigado, avô!» e saía a correr. Se o visse passar quando estava a segurar no taco, gritava para lhe chamar a atenção na esperança de que me visse a bater a bola e a alcançar a base. Ele parava e ficava a observar cerca de um minuto e, sempre que isso sucedia, eu falhava. Todas as vezes. Quando voltava a casa, dizia-lhe que, depois de se ter ido embora, tinha conseguido um triplo, e ele acenava com a cabeça, sorrindo.

Nas vizinhanças, eu parecia ludibriar a morte com alguma regularidade. Sentia-me como um gato com bem mais do que nove vidas. Passei por mais percalços e acidentes do que aqueles que posso contar. Por isso, deste punhado, escolherei alguns que mais se destaquem ou tenham mais significado. Num dia de inverno, estava a patinar em cima do gelo do rio Bronx. Não tínhamos patins de gelo, e trazia calçado um par de ténis, fazia piruetas e exibia-me para o meu amigo Jesus Diaz, na margem. Num certo momento, enquanto me ria e ele aplaudia, atravessei subitamente a camada de gelo e caí nas águas geladas abaixo. Sempre que tentava arrastar-me para fora, o gelo não se aguentava, e eu voltava para a água gelada. Julgo que me teria afogado naquele dia não fosse o Jesus Diaz. Conseguiu encontrar um pau comprido com o dobro da sua altura, afastou-se tanto quanto pôde da margem e, com o pau, puxou-me para um local seguro. Como eu estava encharcado e gelado, levou-me daquele ambiente glacial para o apartamento que partilhava com a família num prédio em que o pai era o responsável pela manutenção. O Jesus Diaz deu-me roupas suas para vestir.

Por volta da mesma idade, passei por uma das mais constrangedoras experiências da minha vida. Sinto até algum embaraço ao contá-la agora, mas porque não? É para isso que aqui estamos. Eu não teria mais de 10 anos, e pus-me a andar em cima de uma fina vedação de ferro, como se dançasse sobre uma corda bamba. Chovera toda a manhã e, como seria de esperar, escorreguei, caí e a barra de ferro atingiu-me em cheio entre as pernas. Senti tantas dores que mal consegui andar até casa. Um rapaz mais velho viu-me a gemer pela rua, pegou em mim e levou-me até ao apartamento da minha tia Marie. Era a irmã mais nova da minha mãe e vivia no terceiro andar do prédio dos meus avós. Aquele bom samaritano estendeu-me numa cama e disse: «Fica bem, pá!»

Naquele tempo, era habitual os médicos irem a casa, ainda que os consultórios fossem ao fundo da rua. A minha família esperava pelo doutor Tanenbaum, e eu continuava deitado na cama com as calças completamente descidas até aos tornozelos, enquanto as três mulheres da minha vida — a minha mãe, a minha tia e a minha avó — me examinavam e pressionavam o pénis, meio em pânico. Eu pensava: meu Deus, leva-me agora enquanto as ouvia sussurrar entre si ao prosseguir com a inspeção. O meu pénis ficou bem ligado, bem como o trauma. Sou assombrado por este pensamento até hoje.

As nossas vizinhanças de South Bronx eram bem apetrechadas de personagens muito curiosas, a maioria inofensiva. Havia um sujeito que aparentava ter 30 e muitos ou 40 anos, que usava um cabelo em tonalidades de preto e vermelho e um fato e uma camisa de colarinho com uma gravata folgada e esfarrapada. Parecia saído de uma missa dominical em que as cinzas lhe foram despejadas em cima. Caminhava sozinho, tranquilamente, pelas ruas e quase nunca falava; quando o fazia, só dizia «Não matamos o tempo; o tempo é que nos mata». Nada mais. Acaso viesse ter connosco, uma vez que fosse, e nos dissesse «Como estão, amigos?», teríamos ficado em choque. Claro que eu desconfiava ligeiramente dele, como todos nós. Éramos como um bando de animais selvagens e sabíamos que ele era um ser á parte da nossa espécie. O nosso instinto dizia-nos que não era como nós e, por isso, nem queríamos saber mais. Limitávamo-nos a aceitá-lo. Nessa altura, havia uma maior noção de privacidade comparando com o mundo atual, uma certa conveniência e distância que as pessoas concediam umas às outras. Talvez ainda assim seja nas terras mais pequenas, e é algo que carreguei comigo ao longo da vida.

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Em 1973, fotografado no set de "Serpico", filme de Sidney Lumet

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Porém, as trevas podem estar à espreita na esquina errada. Uma vez, pelos meus 8 ou 9 anos, estava sozinho na avenida Bryant a lançar uma bola contra a parede do prédio onde morava. Um miúdo meu conhecido, chamemos-lhe Steve, vinha de um enorme terminal rodoviário junto à estação ferroviária sobrelevada, na qual costumávamos brincar no interior dos autocarros vazios, recolhendo do chão os bilhetes de papel com diversas cores, e fingíamos que era dinheiro. O Steve trazia um olhar vazio e estranho como se estivesse verdadeiramente atordoado. E perguntei-lhe: «Ei, Steve, que se passa?»

Olhou-me nos olhos e disse: «Um rapaz fez chichi na minha boca.»

E voltei a perguntar: «Porque havia alguém de fazer chichi na tua boca?»

Respondeu-me: «Não sei.»

«Ele fez chichi na tua boca.»

«Sim, ali no terminal rodoviário.»

O Steve não compreendeu o que se passara, nem eu, na minha tenra idade. Não entendia as subtilezas nem tinha experiência. Mais tarde na vida, compreenderia o que poderá realmente ter sucedido. Era o tipo de coisa que poderia ter acontecido numa qualquer rua de qualquer cidade, e acontecera ali. Encontrei forma de tirar aquilo da minha cabeça. Há situações pelas quais passámos enquanto crescemos e, apesar de nos marcarem, mal conseguimos processá-las, ou recordá-las com grande pormenor a menos que entremos numa espécie de estado hipnótico. Contudo, não deixamos de as interiorizar. Na altura, sabia que sucedera algo realmente muito incorreto e que o Steve pareceu ficar bastante arrasado e desamparado.

Só sabia que, com amigos como o Cliffy, o Bruce e o Petey, nunca me sentia desamparado. Quando éramos um pouco mais velhos, pelos 11 ou 12 anos, formávamos grupos e explorávamos as vizinhanças, aventurando-nos além do nosso quarteirão em busca de novos horizontes. Chegávamos a determinado local, e outro grupo batia-nos. Avançávamos para um local diferente, e éramos agredidos por outro. Aprendemos muito rapidamente os limites do nosso território e ficávamos sossegados tanto quanto conseguíamos.

Fazíamos tudo o que podíamos para nos divertir. Passávamos horas a fio deitados de barriga para baixo, à pesca nas grelhas do esgoto nos limites dos nossos quarteirões, esperançados em detetar entre a sujidade do fundo algo brilhante que pudesse ser uma moeda perdida. Não era uma busca em vão — cinquenta cêntimos podiam mudar algo na nossa vida. Subíamos até ao alto dos edifícios e saltávamos de uma cobertura para outra. Nas noites de sábado, quando víamos rapazes poucos anos mais velhos do que nós a começar a sair com raparigas, e que já as levavam ao cinema ou a passear no metro, subíamos para as montras proeminentes das lojas e atirávamos-lhes lixo. Às vezes, partíamos ao meio uma cabeça de alface que também lhes lançávamos. Um feijão-verde arremessado a meia dúzia de metros pode magoar bastante. No verão, abríamos as bocas de incêndio, o que fazia de nós uns heróis para todas as jovens mães, que deixaram os filhos pequenos brincar no meio da água. No South Bronx, fazia bastante calor em meados de julho. Pendurávamo-nos nas traseiras dos autocarros e saltávamos por cima dos torniquetes no metro. Se queríamos comida, roubávamo-la. Nunca pagávamos por nada.

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