Em dia de publicação de listas e números, pedimos a duas pessoas de gerações distintas que nos escrevessem um texto onde retratassem as suas memórias da escola secundária. Maria Filomena Mónica, 75 anos, recorda o tempo do Colégio das Doroteias, em Lisboa. Daniela Pereira, 18 anos, fala de um passado muito próximo na Escola Secundária Stuart Carvalhais, em Massamá. Uma chegou ao 10.º ano em 1959, a outra em 2014. Aqui ficam os seus relatos, separados por 55 anos.
Maria Filomena Mónica
“No meu tempo, não havia rankings, anunciando as “boas” e as “más” instituições, nem escolas mistas com meninas e meninos debaixo do mesmo tecto. Por outro lado, raros eram os pais que seleccionavam os estabelecimentos de ensino pela sua real ou suposta qualidade. Especialmente no caso das raparigas, os factores sociais contavam, e muito, na selecção das escolas.
Entrei num colégio de freiras, as Doroteias, aos 3 anos, ou seja, em 1946, por a minha mãe ter decidido que as suas filhas teriam de ser educadas entre gente socialmente “adequada”. Não estive lá muito tempo pois, ao segundo dia, fugi, quase tendo sido atropelada. Como morava a cinco minutos da escola, nada de grave aconteceu, mas, pelo sim pelo não, a minha mãe desistiu da ideia de voltar a enfiar-me ali à força. Só regressaria no ano seguinte, desta vez ao lado da minha irmã Isabel que, por ser um ano mais nova do que eu, me obedecia em tudo. Se descontarmos os disparates a que me entregava para que as colegas me admirassem, a estadia no colégio nada tinha de excitante, nem mesmo quando passei para a 1.ª classe.
A 4 de Julho de 1952, fiz o exame da 3.ª classe, que o regime salazarista decretara como o termo da escolaridade obrigatória. Tudo se passou numa escola situada em Campolide. Ainda recordo a vergonha de ter de atravessar aquele bairro pobre envergando a minha farda de gala. O mal-estar foi agravado pelo facto de ter decidido comungar nesse dia — suponho que para Deus me auxiliar — o que me obrigou a estar várias horas em jejum. Sofrendo já de hipoglicémia, fui socorrida, em vias de desmaiar, por uma senhora que me deu um copo de água açucarado. Evidentemente, passei, o que fez com que, sem esforço, me encontrasse na 4.ª classe, finda a qual transitei para o que então se designava como “Ensino Liceal”. Naquela altura, este dividia-se em três fatias: o 1.º ciclo (que incluía o que é hoje o 5.º e 6.º), o 2.º ciclo (que ia do 7.º até ao 9.º) e o 3.º ciclo (que incluía os actuais 10.º, 11.º e 12.º anos). O Ensino Secundário hoje vigente corresponde assim ao meu 3.º ciclo do Ensino Liceal.
Por as freiras me terem colocado na primeira fila, passei todo o ano escolar de 1957/8 amuada. A deslocação teve, contudo, o efeito de uniformizar as minhas notas. Não que as elevasse – as classificações andavam pelos 12 ou 13 valores – mas as oscilações acabaram. A 6 de Junho de 1958, era admitida ao exame do final deste ciclo. Lá fui, mais uma vez, de farda de gala, com o objectivo de ser submetida a provas, escritas e orais, ao lado das pobres de Cristo que andavam no ensino público. Como seria de esperar, as professoras do Liceu olhavam-me com irritação. No final, obtive 14 a Ciências e 12 valores a Letras. Ninguém, nem eu, deu qualquer importância ao acontecimento.
Terminado este ciclo tive de me inscrever no que se chamava uma “alínea”, ou seja, um ramo disciplinar. A evolução das minhas notas não possuía qualquer lógica. Uma vez que não via em mim qualquer apetência especial, escolhi a g), que juntava matérias das Ciências Exactas e Humanidades. Eis a lista das disciplinas que passei a frequentar: Inglês, História, Filosofia, Geografia, Matemática e Organização Política e Administrativa da Nação. No que corresponde ao actual 10.º ano, reprovei a História, uma disciplina que hoje me fascina, tendo obtido um 14, a classificação mais elevada, em Organização Política e Administrativa da Nação, uma matéria cujo conteúdo me escapava (provavelmente terei copiado).
Em 1959, continuei a escrever o diário que iniciara dois anos antes. Como o nível de ensino que agora frequentava era suposto ser mais exigente, tinha algumas docentes que não eram freiras. Eis o que escrevi sobre as professoras (entrada de 11 de Dezembro de 1959): “Eu gosto de observar os professores e só há pouquíssimo tempo comecei a observá-los como seres normais e humanos e não como o antónimo de alunos. Até aqui, havia uma barreira entre professores e alunos que nunca podia desaparecer. Só agora vi que as professoras também têm a sua vida lá fora, a sua ‘verdadeira’ vida. Vou dizer, já que estou numa espécie de introdução, o que acho das professoras. Madre Maia. – Acho-a inteligente, boa professora, culta, sabe educar-nos, confia e não aldraba, é nossa amiga, compreende-nos. Não sei se é por ter estas virtudes todas que não serve para mim. É um ‘torrãzinho de açúcar’, dá-me manteiga e a mim vê-me só como a 2ª Mena (a do colégio). Não me vê como terna, meiga e apaixonada … (letra incompreensível). Madre Pais. – Fria por fora e apaixonada e ardente por dentro. Orgulhosa, não ‘procura’ as alunas para palestras (como a Madre Maia). Como professora, é a melhor de todas. (…) Srª Dª Eugénia: Deve ser amorosa para com os filhos e marido. Tenho pena de ter de dar aulas, porque se vê que estaria melhor a tratar dos filhos. É culta e inteligentezeca, embora não saiba as ‘coisas de cor’. Gosto dela e é a única que não acha sempre graça às minhas piadas e até me ralha. Tem personalidade e está-se maribando para as freiras. É girota. Achei um amor vê-la com os filhos e foi desde esse dia que passei a considerá-la mais. Srª Dª Helena: Boa para um quartel. Mania que é bestial e que tem piada. Madre Subdirectora: Só lhe interessa o que podem dizer dela e adora que digam que ela é simpática. Não é fixe e é do tipo de quem não podemos confiar. É capaz de gostar de nós. Sra Dª Ialina. – É chique, snob (from Mayfair, oh!) e amorosa. Adora escrever no quadro e falar das diferentes classes e pronúncias. Não deve ser tão boa mãe como a Sra Dª Eugénia”. Eis a apreciação que, aos 16 anos, fazia de quem me ensinava.
Naquela época, só uma minoria de jovens tinha acesso ao liceu. Mesmo o Ensino Primário era, para muitos pais, um luxo: os filhos eram obrigados, desde cedo, a participar nos trabalhos rurais, sendo a escola vista como uma coisa para meninos ricos. No Secundário, o desnível entre grupos sociais ainda era mais nítido. Apenas os jovens considerados como candidatos ao Ensino Superior ali se inscreviam. Mais do que ter uma boa classificação, o que era importante, quando se ia em busca de um emprego, eram os apelidos. Na altura, não o sabia, mas pouco a pouco fui verificando que era isto que sucedia.
Nas férias da Páscoa, antes de terminar o ano final do Liceu, fui até ao ISCEF, na Rua do Quelhas, a fim de ver o curriculum do curso de Economia, aquele a que a área disciplinar que eu tinha seleccionado me dava acesso. Nem queria acreditar. Diante de mim, estavam os nomes das cadeiras que faziam parte do curso. Este incluía uma disciplina tão horrenda quanto Contabilidade Geral.
O meu destino era o casamento com um noivo das classes altas, se possível com algum dinheiro. Só então contemplei a hipótese de me matricular num curso superior. Não em Economia, mas noutro qualquer. Falei com algumas das colegas do colégio que, numa tarde de Primavera, se tinham juntado para tirar a última fotografia da turma. Das trinta e cinco, apenas uma estava decidida a ir para a Universidade. Eu e a Luísa.
Convenci os meus pais – o que não foi simples – a deixarem-me frequentar o curso de Filosofia. A três meses do final do liceu, não era fácil mudar para a alínea d), não tanto por razões burocráticas – podia inscrever-me em quantas cadeiras quisesse – mas por ter de preparar, em doze semanas, as disciplinas de Grego, Latim e Literatura Portuguesa. Prometi-lhes que, se me pagassem explicações em Latim e Grego me encarregaria de estudar, sozinha, Literatura Portuguesa. Embora duvidassem da possibilidade de eu fazer em semanas o que era suposto levar dois anos, acederam. E foi assim que fui a exame, insistindo até em me apresentar a provas nalgumas das disciplinas, como a Matemática, que eram contempladas na abandonada alínea g).
O facto de me ter metido em casa a ler a “História da Literatura Portuguesa”, de A. J. Saraiva e Óscar Lopes, fez com que obtivesse um 16, uma classificação idêntica à de História, matéria que subitamente passara a interessar-me. Em Julho, como estava previsto, reprovei a Grego; em Setembro, repeti esta disciplina. As notas obtidas foram boas, pelo que a média me permitiu ficar dispensada do exame de admissão à Faculdade.
A minha passagem pelo Secundário foi vivida com a inconsciência própria de uma adolescente a quem nada era pedido, a não ser ter filhos, bordar e passar a ferro. Se alguma lição se pode tirar da minha errática passagem pelo Ensino Secundário é a de que, se o quisermos, é possível aprender, mesmo com maus professores, com manuais idiotas e com exames palermas. Mas é melhor reagir. O Estado português montou, desde há muito, um esquema de ensino que obriga adolescentes de 15 anos a decidir a futura profissão. Era assim no meu tempo e é assim agora. A culpa não é apenas dos políticos. Em vez de preguiçosamente deixarem a selecção nas mãos de um Ministério que montou um sistema burocrático, as Universidades deveriam exigir que lhes fosse dada autonomia para serem elas a escolher os seus alunos.”
Daniela Pereira
“Há seis meses que sou aluna do curso de informação turística e nunca me senti tão feliz. Festas atrás de festas, novas amizades, mas acima de tudo muito estudo. Mas para chegar aqui tive que trabalhar muito.
Sempre me considerei uma pessoa responsável, que luta pelo que quer e trabalha para isso. A história de como entrei na faculdade começa precisamente com a minha entrada no secundário. Escolhi a área de letras e humanidades, não porque “é mais fácil” ou para “fugir à matemática”, mas sim porque sempre me senti fascinada com história.
Entrei para o secundário em 2014 e lembro-me de estar completamente ansiosa de aprender e fazer novas amizades… ânsia que passou rapidamente. Senti-me, durante os três anos, pressionada, não só pelos outros mas principalmente por mim, para ser sempre a melhor e dar tudo de mim para atingir os meus objetivos custe o que custar.
Nunca tive muita sorte com professores ao longo dos meus anos de ensino obrigatório, e o secundário não foi exceção. Tive professores que insistiam em jogar ao braço de ferro connosco, demonstrado o seu poder intocável e a nossa insignificância, mas também tive professores que para além de serem excelentes no que faziam eram também excelentes pessoas que se preocupavam e continuam a preocupar connosco.
Para mim, acho que as alturas mais stressantes desta época foram as temidas apresentações orais que provocavam transpirações da cabeça aos pés, nervosismos insuportáveis e que me faziam questionar se não seria na realidade a criatura ignorante que os professores me faziam sentir. Deste stress consegui desenvolver a capacidade de não demonstrar as minhas inseguranças… por dentro estava a sentir-me arrebatada, mas por fora aparentava-me mais confiante do que nunca, conseguindo disfarçar o nervosismo que me assombrava.
Vivi o meu secundário a tentar encontrar o curso que deveria ingressar na faculdade uma vez que, sinceramente, não me via a fazer nada que me desse trabalho.
Visitei a futurália, uma exposição de faculdades que apresentam os seus cursos, por duas vezes, à procura de cursos que me chamassem à atenção. Hoje em dia penso nos cursos que pus como opção e questiono-me sobre o porquê de se terem destacado. Cursos como marketing, ciências da comunicação ou até mesmo arqueologia, que nada têm a ver comigo.
Acabei por deixar mais ou menos definida a área na qual gostaria de trabalhar, no meu 11° ano, sem influência de exposições ou professores. Foi após uma visita guiada em Lisboa, que me fez adorar a junção da história com o turismo e com a interação humana, conhecendo novas pessoas e culturas.
Consegui entrar na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, no curso de Informação Turística no ano de 2017, nunca deixando para trás a dúvida sobre se este seria o curso certo para mim, mas definitivamente é este o curso que eu quero.
Do secundário para a faculdade notei uma diferença gigantesca, novas formas de avaliação, uma autonomia à qual não estava habituada e um ritmo de trabalho avassalador. Tenho, em média, 8 cadeiras por semestre, muitas delas com conteúdos dos quais não tenho conhecimentos, que me exigem trabalhos atrás de trabalhos e frequências, para os quais o secundário não me preparou.
Terminei agora o meu primeiro semestre e o balanço, apesar de tudo, é bastante positivo. Fiz novas amizades, descobri novos lugares, adquiri mais conhecimentos e com uma abrangência maior e, acima de tudo, sinto que cresci como pessoa.”