Foram três dias de congresso — tecnicamente foram dois e meio, já que o primeiro foi exclusivamente online — com muitos (mesmo muitos) discursos, alguma discussão interna, uns quantos recados e avisos à navegação e muita (mesmo muita) ambição: acabar com o jardinismo-albuquerquismo na Madeira, eleger dois eurodeputados, entrar num governo de esquerda a curto prazo, ganhar dimensão autárquica e ajudar a eleger um Presidente da República em 2026. Coisa pouca para um partido que, ainda há quatro anos, em plena crise-Joacine, muitos davam como morto.
Ainda assim, numa reunião magna com poucos momentos de apoteose, a defesa do Estado da Palestina acabou por ser a grande cola dos congressistas presentes no Pavilhão Municipal da Costa da Caparica — não havia referência à Palestina que não levantasse a audiência e aquecesse o ambiente. Isso e a inestimável ajuda do pai-fundador, Rui Tavares, das duas formiguinhas de serviço, da candeia que vai à frente e do augadeiro de serviço, que ajudou a matar a sede, a poupar plástico e a salvar o planeta. São oito as Papoilas de Ouro do Congresso do Livre.
Prémio Cola UHU: Palestina
Não há causa que una o congresso do Livre como a da Palestina e um teste simples comprova-o: à primeira referência à situação em Gaza, qualquer congressista consegue levantar a plateia e encher a sala de gritos de “a Palestina vencerá”. Ainda assim, e se o consenso sobre o apoio à Palestina e ao seu reconhecimento enquanto Estado independente é evidente, a história não acaba aqui – e um debate na tarde de sábado demonstrou-o, quando uma congressista tentou incluir uma referência explícita à condenação do Hamas no programa eleitoral e rapidamente recuou perante as críticas do congresso. Pelo meio, o congressista Miguel Santos foi corrigi-la e argumentar que, neste momento, só importa condenar o “genocídio” do povo palestiniano. A plateia concordou, recorrendo a mais uma chuva de palmas, e voltou a concordar e a aplaudir quando ouviu o cabeça de lista às europeias, Francisco Paupério, atirar que a luta pela paz não está a concurso e que o televoto não trava o genocídio, numa referência à Eurovisão. Aqui não há desacordo.
Prémio Pai Há Só Um: Rui Tavares
Não esteve no primeiro dia de Congresso (que foi exclusivamente virtual) e a coisa ia derrapando. No sábado, apareceu pela hora do almoço e ouviram-se alguns suspiros de satisfação. E em boa hora apareceu porque a coisa podia descarrilar. Multiplicou-se em conversas no pavilhão, andou de um lado para o outro, interveio três vezes, repetiu vários apelos à união do partido e deixou a mensagem que queria deixar: ou Livre tem juízo e deixa de se comportar, aqui e acolá, como uma agremiação juvenil, ou ainda se arrisca a acabar como outros partidos que se perderam em lutas internas. Rui Tavares continua a ser a figura mais reconhecida, mais respeitada e mais aplaudida no Livre. É o pai-fundador e continua a ser o grande cimento do partido. Ainda, aparentemente, sem herdeiros à altura.
Prémio Papão: PAN
Tendo em conta que tem como pai-fundador um historiador, parece natural que o Livre conheça bem a máxima que dita que quem não se lembra do passado está condenado a repeti-lo. Por isso, o partido sabe que é importante ter presente o que já aconteceu com o PAN, que fez o percurso ascendente que o Livre está a percorrer, apenas para acabar por se perder em jogos de poder e lutas internas recorrentes. Este fim de semana, vários dos principais dirigentes empenharam-se em lembrar os “riscos” de um partido fazer do seu “assunto principal” os conflitos internos; Rui Tavares foi mais longe e criticou a tendência do PAN para se fechar sobre nichos “ambientalistas e animalistas”. O guião do Livre para crescer e para se consolidar parece, em resumo, ser uma espécie de guião anti-PAN. Para cúmulo, os congressistas acabaram a chumbar uma moção que defendia que adotassem como causa a alimentação “exclusivamente vegetariana”. Dúvidas houvesse, nem o menu enganava: os congressistas podiam escolher entre almoçar rolo de entremeada ou jantar chili com carne (além das opções vegan), algo que dificilmente ocorreria num evento do PAN.
Prémio I Have a Dream: João Manso
No congresso do Livre há muitos (mesmo muitos) aplausos (há discursos em que os congressistas passam mais tempo em pé do que sentados), louvores, abraços e outras formas de elogio, sendo muito raros os momentos de tensão ou de ataques diretos entre os congressistas. Até o representante da lista C – a mais minoritária – se focou sobretudo em espalhar a paz e o amor. João Manso subiu ao palco para exigir mais democracia interna, mas acabou a agradecer ao partido por permitir que “maluquinhos” como ele discutam cada decisão e cada ideia. A “política colaborativa” que defende, e que até inclui reuniões de direção à porta aberta, ainda não está no ponto em que quer que esteja, é verdade; mas a lista C continua a acreditar que o Livre se fará uma “máquina de semear sonhos”, e agora tem dois lugares no órgão de direção para tentar montar algumas dessas peças.
Prémio Formiguinha: Tomás Pereira& Pedro Mendonça
Os dois principais assessores de Rui Tavares são também os homens fortes do “presidente” no partido. Logo na sexta-feira, Tomás Cardoso Pereira e Pedro Mendonça (na foto) participaram no debate sobre o regimento para tentar acalmar a contestação, passar a mensagem da direção e meter algum juízo nas cabeças pensantes do Livre. Nos restantes dois dias, para além de serem os mais ativos na gestão de vários detalhes, foram eles que asseguraram, nos bastidores, que tudo corria como previsto: Tomás Cardoso Pereira, chefe de gabinete parlamentar, fez um dos discursos mais aplaudidos sobre o caminho trilhado pelo partido e o futuro que deve seguir; Pedro Mendonça ia gerindo os passos de Rui Tavares e os contactos com a comunicação social. Os dois são essenciais para que o fundador consiga dar resposta às várias solicitações dentro e fora do partido.
Prémio Candeia: Isabel Mendes Lopes
Durante muito tempo, o Livre foi conhecido como o partido de Rui Tavares – e quando tentou alterar essa ideia de partido unipessoal, lançando uma nova protagonista (Joacine Katar Moreira), deu asneira. Agora, parece estar finalmente a surgir um novo rosto com peso no partido – peso suficiente para chegar ao congresso, definir o guião e antecipar os caminhos que o Livre quer percorrer no futuro. É o caso da dirigente e líder parlamentar Isabel Mendes Lopes, que no sábado chegou a um congresso relativamente pobre em discussão política para dizer que o partido tem de estar pronto para uma “mudança de ciclo para o próximo governo das esquerdas”. Na mesma intervenção, Mendes Lopes ainda pediu que essa convergência aconteça já nas próximas presidenciais, na tentativa de voltar a colocar um Presidente de esquerda em Belém. Dois traços de fundo da estratégia política do Livre que Rui Tavares viria, horas depois, sublinhar e desenvolver, depois de a sua ponta de lança ter preparado o terreno. No final do congresso, Mendes Lopes passou a ser co-porta-voz do Livre, consolidando-se assim o seu estatuto de figura de peso. Candeia que vai à frente alumia duas vezes.
Prémio Must-Have: Tote-bag
As tote-bag, aqueles sacos de pano muito giros, muito urbanos, muito na moda, estão para os militantes do Livre como o blazer e os botões de punho estão para para os militantes do CDS ou as camisolas de gola alta estão para os bloquistas (ou alguns pedronunistas no PS): quem quer ser alguém no Livre têm de ter uma. Mesmo num partido heterogéneo e muito democrático dentro de portas (talvez demasiado democrático, vão suspirando alguns dirigentes), as tote-bag são um must-have. Foi vê-las a pontuar a paisagem do Pavilhão Municipal da Costa da Caparica durante o fim de semana, com o desenho da inevitável papoila ou com com inscrições como “feminist”, “Europe” ou “Tax the Rich”.
Prémio Carreira: O Aguadeiro
O XIV Congresso do Livre foi uma lição de como organizar um catering interno. Para além das refeições servidas no Pavilhão Municipal da Costa da Caparica, preparadas com a ajuda de militantes – e servidas por turnos –, diligentes membros do partido ia gerindo uma mesa para distribuir água, quer pelos congressistas quer pelos jornalistas, a quem também foram oferecendo café e até chocolates. Um ponto de honra: ninguém se sentiu condicionado, coagido ou comprado por ter o Livre a oferecer água e comida; regista-se a apenas a cortesia, a originalidade de recuperar profissões como o aguadeiro e o facto de não haver quase nenhuma garrafa de água no recinto.