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É caso para usar a expressão: do oito ao oitenta. Ou melhor: do zero aos 25. É que António Joaquim deixou o Tribunal de Loures, em março, sob o rótulo de inocente injustamente preso durante mais de um ano pelo homicídio do triatleta Luís Grilo, mas setembro trouxe uma reviravolta na história. E que reviravolta. Não só passou de ilibado a condenado pelo crime, como lhe foi aplicada a pena máxima permitida em Portugal. A decisão foi tomada esta terça-feira pelos juízes desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, em resposta aos recursos apresentados pelo Ministério Público (MP) e pela defesa de Rosa Grilo — que tinham ficado descontentes com o veredicto anterior.
António Joaquim está agora no mesmo nível que Rosa Grilo, a viúva do triatleta, de quem era amante: são considerados coautores do crime e estão ambos condenados a 25 anos de prisão — já que a Relação manteve a pena aplicada à arguida.
É uma mudança completa na história, que volta a alinhar-se com aquela que era a versão dos inspetores da PJ e dos procuradores do MP que investigaram o assassínio. Só que o Tribunal de Loures decidiu em março deste ano que não, que Rosa Grilo era a única responsável: tinha sido ela a planear matar o marido, a disparar o tiro fatal, a livrar-se do corpo e a simular o seu desaparecimento para confundir as autoridades — tudo isto, sozinha. Mas os desembargadores da Relação de Lisboa que analisaram os recursos discordaram e afirmam mesmo que o tribunal de júri que decidiu absolver António Joaquim “errou na avaliação das provas e no raciocínio que levou a cabo”.
Mas é apenas no “raciocínio” que os desembargadores se baseiam para o condenar. Isto porque, admitem desde logo, “inexiste prova direta da prática de tais crimes por qualquer dos arguidos”: ninguém os viu a cometer o assassínio. Só que há outras provas indiretas que permitem concluir — pela “experiência”, pela “probabilidade” e pela “intuição humana” — que Rosa e António mataram Luís Grilo e simularam o seu desaparecimento para ficar com meio milhão de euros do seguro de vida.
E, concluem, era “impossível” que Rosa Grilo tivesse feito tudo sozinha “sem a colaboração efetiva e imprescindível” de António Joaquim, segundo o acórdão da Relação a que o Observador teve acesso. “Ambos os arguidos estavam conluiados e juntos no momento em que foram cometidos os crimes e que houve entre eles concertação de movimentos e de atitudes, nomeadamente, quanto a comunicações e contactos”, lê-se. Matar Luís Grilo era um “objetivo comum”, resumem.
Mas como é que passamos de um arguido absolvido para um arguido condenado à pena máxima? Como é que um tribunal escreve a história de uma maneira e outro a reescreve de uma maneira completammente diferente? O que fez os desembargadores duvidar que Rosa Grilo tivesse feito tudo sozinha? Quatro grandes detalhes levaram a esta reviravolta.
Pena máxima. Do “comportamento bizarro” à “frieza”, Rosa Grilo perdeu o caso mas não perdeu a pose
Foi ele quem disparou por saber manejar a arma com “destreza”. Com Rosa havia um “sério risco de falhanço”
Na verdade, esta dúvida começou logo ainda com o Tribunal de Loures que absolveu o funcionário judicial fundamentando-se no princípio in dubio pro reo que prevê que, em caso de dúvidas, se favoreça o arguido. Não quer dizer que o tribunal tivesse a certeza de que António Joaquim fosse inocente, mas a existência de dúvidas bastou para o ilibar. Ou seja, os juízes não o condenaram não porque estivessem certos de que não participou no crime, mas sim porque havia algumas dúvidas quanto ao seu envolvimento.
Só que os desembargadores da Relação vêm agora dizer que essas dúvidas não existem. Há certezas. E a primeira está relacionada com qual dos dois arguidos empunhou a arma e premiu o gatilho. A acusação dizia que tinha sido António Joaquim, mas o Tribunal de Loures considerou que foi Rosa Grilo. Em que é que ficamos? Foi ele, de acordo com o acórdão mais recente que tem exatamente 200 páginas.
Para o justificar, os desembargadores alertam para dois pontos: primeiro, o arguido era “o dono da arma e quem sabia manejá-la com destreza”; segundo, Rosa Grilo era “totalmente inexperiente nessa matéria”. Pelo que havia “um sério risco de falhanço” se esta “tarefa” ficasse a cargo da arguida — e ambos receavam que isso acontecesse. “Não faz qualquer sentido que tenha sido esta a efetuar tal disparo, sendo possível afirmar com a necessária segurança que quem disparou foi o arguido António Joaquim”, conclui a Relação.
Da “canseira” da “Sra. D. Rosa” às estrias na arma. A versão de bolso do julgamento de Rosa Grilo
“Só pode ter sido António Joaquim” a ajudar Rosa Grilo a transportar o corpo do marido, uma “tarefa impossível” para ela
Segundo ponto: o transporte do corpo. O percurso feito com o cadáver de Luís Grilo foi longo, complexo e com obstáculos. Teve de ser deslocado da cama onde estava num quarto do primeiro andar e descer dois pisos até à garagem através de escadas — uma tarefa que, para os desembargadores “não seria fácil, mesmo para duas pessoas” e “impossível” para uma. A não ser, escrevem, que “o cadáver fosse arrastado (em cima ou embrulhado no edredão em que seria mais tarde encontrado)”. Só que esta hipótese implicaria que se “batesse com partes do corpo em cada degrau das escadas” — o que revelaria hematomas, hematomas esses que não foram encontrados na autópsia.
Para a Relação, é “manifestamente ilógico” admitir que tenha sido Rosa Grilo a única a transportar o corpo do marido. Primeiro porque é mulher e estaria a transportar “um homem de constituição física robusta e atlética”. Depois, os juízes lembram um detalhe que a própria explicou em julgamento: nessa altura, a arguida teria “menor capacidade física” do que o normal pois encontrava-se debilitada fisicamente, com hemorragias na sequência de uma medicação de preparação para o exame médico a que se iria submeter.
Portanto, é “muito mais razoável e sensato concluir que houve ajuda de outra pessoa”. Quem? “Só pode ter sido o arguido António Joaquim”, lê-se no acórdão lido pelo Observador, em que os juízes explicam que chegaram a esta conclusão “perante os elementos disponíveis e face ao raciocínio” que foram “desenvolvendo”.
Arma de António Joaquim não pode ter regressado à sua casa “sem intervenção” dele. E “não havia maneira” de terem sido os angolanos
Outro indício. Sendo a arma do crime de António Joaquim, esta foi levada por ele da sua casa até à casa de Luís e Rosa Grilo na noite do crime — segundo este novo acórdão. Isto porque, para a Relação, nada aponta para que a arma tenha saído e voltado à casa do arguido “sem intervenção” dele. E não, “não havia maneira” de terem sido os angolanos — a quem Rosa Grilo atribui a autoria do crime.
Segundo a arguida, Luís Grilo teria morrido às mãos de três homens (dois angolanos e um “branco”) que lhe invadiram a casa em busca de diamantes — uma tese que não é para a Relação “minimamente credível”. Na versão de Rosa, a arma já estava na sua casa porque ela própria a tinha ido buscar para se proteger dos angolanos, acabando eles próprios por usar a arma para matar o marido. E depois teria sido também ela a devolver a arma à casa de António Joaquim, após o crime, sem que ele se apercebesse de nada.
A Relação considera que Rosa Grilo, “apesar de algumas deambulações e hesitações na procura de uma versão que tivesse alguma credibilidade e não comprometesse o coarguido, acabou por fornecer outro dado muito relevante que também não pode deixar de corresponder à verdade: a arma utilizada para matar o Luís Grilo foi a arma indicada na acusação”. “Se assim não fosse, não haveria qualquer justificação para aquela arguida sentir necessidade de explicar como a aludida arma saiu de casa do arguido sem o seu conhecimento, serviu para matar o Luís Grilo e voltou a ser colocada no local original”, lê-se.
Ter havido uma intervenção do funcionário judicial neste ponto “é não só razoável, como se apresenta convincente e até mesmo inevitável, face a critérios lógicos do discernimento humano” e “considerando o relacionamento existente entre ambos os arguidos” — ambos mantinham uma relação sentimental. Ainda assim, depois de fazerem estas considerações ao longo do acórdão, os desembargadores optam por, em jeito de conclusão, não “tomar posição” relativamente a este ponto já que é “irrelevante para a decisão”.
O local do cadáver, os contactos telefónicos “compatíveis” e os festivais de música quando o triatleta ainda estava ‘desaparecido’
Além dos três pontos fundamentais que levaram os desembargadores a aplicar agora a pena máxima a António Joaquim, há ainda outros factos secundários que são importantes para a decisão de o condenar não só a ele, mas também Rosa Grilo. Um deles o facto de os dois arguidos terem estado no local onde o corpo de Luís Grilo foi encontrado no verão de 2018 — numa estrada de terra batida em Álcorrego, no concelho de Avis, localidade onde viviam familiares de Rosa Grilo — semanas antes do crime. Para a Relação este não foi um “simples passeio”, já que “a arguida era conhecida nessa zona e não seria normal aí aparecer com a pessoa com quem mantinha relacionamento extraconjugal que até então era mantido em sigilo”.
Depois, os contactos telefónicos “entre os arguidos são compatíveis com o envolvimento de ambos nos factos ocorridos”: o fluxo de mensagens trocadas nos momentos antes e depois do crime, os telefones que estiveram desligados ao mesmo tempo e o facto de terem apagado, em simultâneo, as mensagens que os dois haviam trocado, exemplifica o tribunal. Tudo isto é, para a Relação, “indício seguro que estiveram juntos no período de execução dos factos”.
Mais: “Numa altura em que não se sabia o que tinha acontecido” a Luís Grilo e “sendo admissível a hipótese de o mesmo estar desaparecido e voltar a aparecer, não era normal o arguido aceitar divertir-se com a arguida Rosa Grilo em festivais de música e fins de semana lúdicos“, aponta o acórdão.
Quanto à tese dos angolanos, além de dizer que não é “minimamente credível” a Relação questiona até o facto de Rosa Grilo a ter apresentado. “Ninguém no seu perfeito juízo, ou com o mínimo de bom senso, se coloca a si próprio na cena do crime, participando mesmo no seu desenvolvimento – seja por vontade própria ou contra a sua vontade”. Aliás, o facto de a arguida dizer que estava presente quando o seu marido foi morto é uma “afirmação que deve ser levada muito a sério e que deve ser assumida como verdadeira”. “Se isso não tivesse acontecido, nunca o teria assumido”, consideram os desembargadores.
Por isso, quanto à principal arguida no caso, a viúva Rosa Grilo, a condenação mantém-se nos 25 anos de prisão. Já António Joaquim, o seu amante, fica para já condenado a 24 anos pelo crime de homicídio qualificado e um ano pelo crime de profanação de cadáver. O arguido foi também condenado à pena de suspensão de funções, enquanto durar a pena de prisão. No entanto, a história não tem fim à vista já que esta decisão pode ela ser também ela revertida.
E não, António Joaquim não irá imediatamente para a prisão porque ainda poderá recorrer: a prisão apenas se efetiva após decisão em última instância e o trânsito em julgado. Quanto a Rosa Grilo, não é certo: à partida não poderia recorrer uma vez que houve dois tribunais — o de Loures e o da Relação — a tomar a mesma decisão, a de a condenar à pena máxima. No entanto, a defesa entende que a regra dupla conforme não se aplica neste caso, porque condenação de António Joaquim “altera todos os factos”. Nesse sentido, o consultor João de Sousa, que faz parte da sua equipa de defesa, avançou ao Observador que a arguida vai recorrer.
E, assim, aquele que foi um dos crimes mais mediáticos de 2018 não tem fim à vista.