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O homem trazia um capacete na cabeça e um colete laranja fluorescente. Gritou “Allahu Akbar” (Alá é grande, em português) e disparou com uma metralhadora para o grupo de suecos, vestidos com a camisola da sua seleção de futebol, que estavam em Bruxelas para assistir ao jogo entre Bélgica e Suécia, de apuramento para o Euro’2024. Matou dois homens e feriu um terceiro. Acabou por morrer na sequência de uma troca de tiros com a polícia.
Entre o atentado e a sua morte, terá publicado um vídeo nas redes sociais onde reclama a autoria do ataque e diz ter-se inspirado nas ações do Estado Islâmico. Foi isso que confirmou o porta-voz da procuradoria belga, esta terça-feira. “Nesta fase, não há indicações de uma potencial ligação com a situação entre Israel e a Palestina”, acrescentou.
O ataque em Bruxelas, porém, aconteceu dias depois de um outro atentado em França, em que um homem matou um professor numa escola em Arras, depois de também gritar que “Alá é grande”. No seu telemóvel também foi encontrada uma mensagem de áudio onde declarava lealdade ao Estado Islâmico e dizia ter ódio “pela França, pelos franceses e pela democracia”.
Nenhum dos casos parece ter uma ligação direta ao que se passa ao novo conflito israelo-palestiniano, depois de um ataque de larga escala do Hamas que matou mais de mil israelitas e da resposta militar de Telavive sobre Gaza, que também já matou mais de duas mil pessoas. Mas, numa altura em que as imagens de mortos, feridos e reféns dominam as imagens dos telejornais de todo o mundo, o terrorismo de inspiração islâmica volta a aparecer na Europa. O que lança a questão: poderá uma situação influenciar a outra?
Ataques de “lobos solitários” podem repetir-se
Os especialistas ouvidos pelo Observador não têm dúvida que sim. E admitem a possibilidade de mais ataques individuais — os chamados “lobos solitários” — nos próximos dias. “Isto é uma situação habitual. Quando há um ataque terrorista bem sucedido e em larga escala, cria um fenómeno de emulação. Inspira outros por todo o mundo, que tendem a pensar ‘agora é o momento de entrar em ação’”, resume ao Observador Raffaello Pantucci, investigador especializado em terrorismo do Royal United Services Institute (RUSI). “As ações terroristas por indivíduos são muito mais comuns nesta situação do que a ação por grupos organizados, que precisam de muito mais tempo para preparar e montar um ataque.”
O mesmo aponta Alexandra Preitschopf, especialista em antissemitismo da Universidade de Salzburgo, que aponta como o ataque do Hamas a 7 de outubro pode servir como uma espécie de “modelo” para ataques islamistas na Europa: “Embora não haja uma ligação direta entre os atuais ataques em Bruxelas e em Arras, em França, com o conflito israelo-árabe, eles mostram claramente que há um potencial para a radicalização na Europa que não pode ser subestimado”, diz.
Os grupos islamistas terroristas recorrem muitas vezes ao impacto emocional do conflito israelo-árabe para tentar mobilizar muçulmanos e radicalizar o discurso. Não por acaso, na sequência do ataque do Hamas, vários canais de Telegram associados ao Estado Islâmico celebraram a operação, de acordo com a Liga Anti-Difamação, organização histórica norte-americana que monitoriza os sinais de antissemitismo.
Preitschopf também lembra que o conflito é frequentemente invocado em vários ataques de caráter terrorista, como o ataque de Mohammed Merah a uma escola judaica em 2012, e o de Amedy Coulibaly — dois dias depois do ataque ao Charlie Hebdo — a um supermercado kosher em 2015, ambos em França. Nos dois casos, sublinha a investigadora, os atos foram “justificados” como formas de vingança pelas mortes de palestinianos e defesa dos muçulmanos.
Raffaelo Pantucci dá outro exemplo: “Muitos dos europeus que se juntaram ao Estado Islâmico já tinham participado em protestos de defesa da Palestina ou contra Israel, alguns tinham até ido a Gaza”, nota. “Não é uma ligação necessariamente direta, mas fez parte do seu caminho que resultou na adesão a estes grupos”.
Se inicialmente os investigadores do atentado em Bruxelas tinham excluído das motivações do atacante o conflito israelo-palestiniano, esta terça-feira reconheceram que o atacante “partilhou várias demonstrações de apoio ao povo palestiniano nas suas redes sociais”. Para o porta-voz da procuradoria belga, isso significa que, afinal, “o tema pode ter tido influência”.
Os dois investigadores destacam claramente o aumento do fenómeno do antissemitismo na Europa ao longo dos últimos anos, mas alertam também para o crescimento da islamofobia, que dizem poder aumentar na sequência dos atentados do Hamas. “Temos de promover entre os jovens uma consciência democrática e educá-los para a complexidade do tema do conflito no Médio Oriente”, alerta Preitschopf. “Temos de estimular a empatia pelas vítimas de ambos os lados do conflito e, ao mesmo tempo, não reduzir a sua complexidade política a uma visão a preto e branco de um perpetrador de um lado e de uma vítima do outro.”
Uma “Kristallnacht 2.0″? Antissemitismo torna-se mais visível depois de ataque do Hamas
Os primeiros sinais em território europeu de reação aos acontecimentos das duas últimas semanas em Israel e Gaza não são, contudo, nesse sentido.
O número de suspeitas de crimes de ódio, sobretudo relacionados com antissemitismo, dispararam ao longo dos últimos dias. A polícia de Londres, por exemplo, dá números claros: “No ano passado, no período entre 30 de setembro e 13 de outubro, assistimos a 14 incidentes antissemitas e 12 crimes antissemitas. Este ano, no mesmo período, tivemos 105 incidentes antissemitas e 75 crimes antissemitas”, afirmou o comissário da Scotland Yard, Laurence Taylor.
O cenário repete-se noutras cidades europeias. Em Berlim, rapidamente surgiram relatos de estrelas de David a serem gravadas em portas de casas de residentes de origem judaica. Em Carcassonne, alguém escreveu numa parede “Matar judeus é um dever”. Nas sinagogas de Madrid e do Porto, picharam nos muros “Acabem com o apartheid israelita”. As comunidades judaicas na Europa dizem sentir-se acossadas, em particular com a convocatória do grupo para que fosse assinalado um “Dia da Raiva” por todo o mundo, na passada sexta-feira — dia em que aconteceu o atentado em Arras, onde um professor foi morto.
“O Hamas agora incentiva a violência declarada contra judeus, restaurantes, lojas e sinagogas judaicas por todo mundo. Há alguns palestinianos que exigem abertamente uma espécie de Kristallnacht 2.0”, lamentava ao jornal Haaretz Stephan Kramer, ex-secretário-geral do Conselho Central de Judeus na Alemanha, invocando a memória do pogrom promovido pelo Partido Nazi, em que lojas e casas de judeus foram destruídas.
O antissemitismo não é um fenómeno novo nas sociedades europeias. Só em França, o país europeu com a maior comunidade judaica, os crimes de ódio contra judeus representam 60% de todos os crimes contra uma religião — sobre um grupo que equivale a menos de 1% de toda a população, lembra o Figaro. Uma sondagem promovida pela CNN em 2018 dava conta de que mais de um quarto dos europeus considera que os judeus têm demasiada influência no mundo financeiro e que um terço diz saber “pouco ou nada” acerca do Holocausto.
A cada vez que Israel volta a aparecer nas notícias, a tendência é que esses sentimentos venham ao de cima, afirma Alexandra Preitschopf, destacando uma habitual “demonização de Israel, definido como um Estado de apartheid, terror ou nova incarnação do nazismo”. “Se vemos Israel como ‘um mal absoluto’, um criminoso de guerra e um ‘assassino de crianças’ e encaramos como vítimas apenas os palestinianos, é mais difícil que haja empatia em relação à população judaica”, acrescenta.
A investigadora afirma que essa perceção tem tendência a degenerar em violência sempre que o conflito em Israel, Gaza e na Cisjordânia se intensifica — como aconteceu na sequência da última invasão a Gaza por Israel, em 2014, diz. Ideia corroborada por um paper do norte-americano Centro para o Estudo do Ódio e Terrorismo de 2019, que aponta como os meses “com o número mais elevado de crimes de ódio reportados ao FBI foram sempre em tempos de conflito entre israelitas e palestinianos”.
“O fenómeno já é sentido desde a Segunda Intifada, em 2000, quando houve um aumento da solidariedade com a Palestina por parte da extrema-esquerda e de muitos muçulmanos”, contextualiza Preitschopf. O problema é que, explica a académica, “essa solidariedade é muitas vezes acompanhada não só por uma visão crítica de Israel (o que é completamente legítimo), mas também por manifestações de antissemitismo. Desde ataques verbais, a graffiti, passando por crimes de ódio online e até atos explícitos de violência e terrorismo.”
“Do rio até ao mar”. Manifestações pró-palestinianas são antissemitismo?
O mesmo já se registou em alguns países europeus ao longo dos últimos dias, como numa manifestação em Berlim e Duisburg, promovida por um grupo de apoio à causa palestiniana, em que alguns organizadores distribuíram doces aos participantes e dançaram, num aparente ato celebratório dos ataques do Hamas.
Die PFLP-Vorfeldorganisation Samidoun (https://t.co/P6Zlq9siao) verteilt auf der Sonnenallee in Berlin-Neukölln Süßigkeiten und bejubelt den Hamas-Terror als »Sieg des Widerstands« pic.twitter.com/UpvS2an0JU
— Frederik Schindler (@Freddy2805) October 7, 2023
O governo alemão reagiu banindo a organização em causa, a Samidoun. E não tem sido o único a recorrer a medidas duras. França, por exemplo, proibiu todas as manifestações pró-palestinianas, por receios de “aumento de perturbações na ordem pública”.
Já a ministra britânica do Interior, Suella Braverman, pareceu abrir o leque de ações que podem vir a ser consideradas crimes de ódio antissemitas. Numa carta para os órgãos policiais, a ministra defendeu que alguns atos em público como a exibição de suásticas, mas também carregar a bandeira palestiniana ou entoar cânticos como “Do rio ao mar, a Palestina será livre” (que se refere ao território do rio Jordão até ao mar Mediterrâneo e pode ser interpretado como a abolição do Estado de Israel) podem ser considerados crimes de ódio, se forem usados para “intimidar” a população judaica.
Ações que a investigadora Alexandra Preitschopf considera serem “infelizmente necessárias” para “proteger a vida judaica na Europa”, mas com as quais o investigador Raffaello Pantucci não concorda. “É claro que o nível de brutalidade no ataque a Israel e o subsequente bombardeamento a Gaza inflamam as pessoas e percebo que a polícia queira cancelar manifestações. Mas essa é a abordagem errada, porque só leva a que as pessoas tentem expressar a raiva de outra forma”, alerta.
“Temos de ter muito cuidado e garantir que as manifestações devem continuar a acontecer com base no direito à liberdade de expressão, algo que consideramos fulcral nas sociedades ocidentais”, acrescenta o membro do RUSI.
Wadea Al-Fayoume, a criança de seis anos esfaqueada que ilustra como o risco de islamofobia também é real
Até porque há sempre o risco de o pêndulo tombar para o outro lado. Embora não à mesma escala que os crimes de ódio antissemitas, o número de incidentes islamofóbicos também aumentaram desde que o novo conflito deflagrou no Médio Oriente. O comissário da Scotland Yard que anunciou o aumento de incidentes antissemitas em Londres também apontou que, na mesma data, houve agora “58 incidentes islamofóbicos e 54 crimes islamofóbicos”. No mesmo período do ano passado, os números correspondentes eram 31 e 34.
O caso mais visível aconteceu nos Estados Unidos da América, no estado do Illinois. Ali, um senhorio atacou a sua inquilina e o filho dela de seis anos, Wadea Al-Fayoume. Ambos têm origem palestiniana e o atacante terá sido motivado por causa da atual guerra no Médio Oriente — a mãe sobreviveu, mas a criança, que foi esfaqueada 26 vezes, acabou por morrer. O procurador-geral norte-americano, Merrick Garland, reconheceu que o caso “aumenta os receios das comunidades muçulmanas, árabes e palestinianas” no país e que irá reforçar a vigilância contra qualquer crime de ódio.
Alexandra Preitschopf é especialista em antissemitismo, mas não tem dúvidas em reconhecer que há nesta situação também um risco para as comunidades islâmicas por toda a Europa: “Há o risco de os muçulmanos serem estigmatizados neste contexto como ‘potenciais terroristas’”, diz. “É por isso que devemos enfatizar que a maioria da população muçulmana na Europa ocidental não é islamista e que os muçulmanos liberais também são eles próprios muitas vezes considerados inimigos pelos islamistas.”
Pantucci alerta que, quer no caso do antissemitismo, quer no caso da islamofobia, eventos como os recentes têm tendência a fazer aumentar o número de crimes de ódio — mas não é certo se são os crimes que aumentam em si ou as denúncias. “Agora, não há dúvidas de que há um aumento geral do antissemitismo na Europa já há alguns anos e também um problema de islamofobia em algumas sociedades europeias, ligada a uma extrema-direita que é antissemita e antimuçulmana”, afirma. “Vivemos na Europa tempos muito polarizados e, neste ambiente, os crimes de ódio têm tendência a florescer.”
Essa polarização também preocupa Preitschopf, que diz estarmos perante um momento em que é necessário “defender a nossa democracia e a nossa sociedade aberta e liberal”. E a investigadora aponta vários alvos: “A influência islamista, o antissemitismo e o ódio ao Ocidente, o terrorismo e, ao mesmo tempo, o populismo de extrema-direita e as tendências iliberais”. Mas, para isso, crê que a educação pode não ser suficiente. “Infelizmente, parece-me que teremos também de nos focar no trabalho da polícia e em medidas de segurança para reduzir o risco de crimes de ódio e de terrorismo.”