O que estava prometido era simples. Nesta reunião de 16 de março do Conselho do BCE, que incluía a divulgação de projeções macroeconómicas frescas, a autoridade monetária iria subir os juros em meio ponto percentual (50 pontos base) e, baseada nessas mesmas projeções, “avaliar a trajetória subsequente da política monetária“. Os juros subiram na medida indicada mas se essa “avaliação” sobre os próximos passos foi feita, isso não foi comunicado publicamente, porque Christine Lagarde não deu qualquer pista sobre o que pode acontecer nos próximos meses – num reconhecimento de que as tensões no sistema bancário já tornaram obsoletas as tais (novas) projeções económicas.
Logo no início da conferência de imprensa, que começou como habitualmente meia hora após a divulgação da decisão sobre os juros, Christine Lagarde explicou que o debate tido no Conselho do Banco Central Europeu (BCE) se baseou nas novas projeções económicas que o staff do banco central atualiza de três em três meses. Mas sublinhou que o trabalho dos economistas terminou “no início de março” e foram utilizados dados até meados de fevereiro – ou seja, desatualizados em quase um mês.
Uma “fotografia” da economia com um desfasamento temporal de um mês poderia não ser muito significativa para as decisões de política monetária – e, normalmente, não é. Mas quando, no espaço desse mês, a banca europeia entrou em stress, a concessão de crédito deu sinais claros de abrandamento e um dos maiores bancos do continente europeu – o Credit Suisse – se viu a um passo do abismo, torna-se “impossível” definir uma trajetória com convicção e credibilidade.
Foi a própria presidente do BCE que o reconheceu. “É impossível, neste momento, determinar à partida qual será a trajetória das taxas de juro“, disse Lagarde, repetindo que existe um nível de incerteza muito grande em relação à forma como a inflação vai evoluir e, também, a forma como a crise bancária irá evoluir. Os investidores e analistas, bem como a população em geral, ficou sem saber o que esperar dos próximos tempos, embora tenha ficado claro que há um pendor no sentido de haver mais aumentos dos juros.
BCE abre o flanco a poder mudar política caso stress na banca piore
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O que vai determinar o rumo das taxas de juro no futuro próximo? O BCE identificou três fatores que vão ser decisivos:
1) A avaliação que é feita pelo BCE das “perspetivas para a evolução da inflação à luz dos dados económicos e financeiros que forem chegando”;
2) “A dinâmica da inflação subjacente” (a que exclui os preços da energia e alimentos não-processados e que tem vindo a preocupar mais o BCE porque espelha mais o enraizar da inflação na economia);
3) “A robustez da transmissão da política monetária”. Aqui, o BCE abre o flanco para poder interromper a subida dos juros (ou, até, baixá-los, em teoria) porque já foi indicado que se houver turbulência em áreas como os juros da dívida pública ou os mercados financeiros isso seria, em si, um fator que perturba a estabilidade dos preços [definida como uma inflação de 2%]. Desde julho que o BCE passou a referir-se à estabilidade financeira não como uma espécie de mandato secundário mas, sim, como um fator sine qua non para se atingir o controlo da inflação.
“Vemos muita incerteza no horizonte da política monetária, porém, a menos que haja algum contágio do stress do setor bancário, os investidores devem estar preparados para que o ciclo de subidas de juros continue“. O comentário é de Felix Feather, analista do banco de investimento Abrdn, que sublinha que “o aumento de 50 pontos base desta quinta-feira é um sinal da determinação que o BCE já manifestou para reduzir os níveis de inflação”.
Governadores nem discutiram aumento menor. “Três ou quatro” queriam juros inalterados
Christine Lagarde comentou que “três ou quatro” dos membros do Conselho do BCE (que podem ser governadores de bancos centrais nacionais mas, também, membros da comissão executiva do próprio BCE) aceitaram o aumento de 50 pontos base mas defenderam que se deveria tomar uma decisão diferente e “dar mais tempo” para deixar os aumentos já feitos produzirem um efeito que se possa avaliar.
Isso foi amplamente interpretado, nos mercados, como uma indicação de que alguns teriam preferido um aumento menor, de 25 pontos base. Porém, não terá sido assim. Após a conferência de imprensa, fontes do BCE disseram à agência Reuters que o cenário de subir apenas 25 pontos base nem foi posto em cima da mesa – ou seja, os dissidentes terão defendido que as taxas de juro ficassem inalteradas no mesmo nível.
Mário Centeno, que teve direito de voto nesta reunião, poderá ter sido um dos governadores que defenderam que os juros ficassem na mesma, a julgar pelas posições públicas que assumiu recentemente – até mesmo antes da turbulência financeira recente. “Temos de ter alguma paciência para permitir que este aumento de 300 pontos base [três pontos percentuais, desde julho, de -0,5% para 2,5%] produza um impacto sobre a inflação, porque esse é o nosso principal objetivo“, disse Centeno a 6 de março.
A taxa de juro mais relevante, a dos depósitos do BCE, subiu esta quinta-feira para 3%. E o consenso entre os analistas é que este não foi o último aumento dos juros, sobretudo depois de Christine Lagarde ter dito que a “inflação está a melhorar em algumas áreas, mas não muitas“. Os dados da inflação, disse Lagarde, “ainda não estão a dirigir-se numa direção que confirme” que o ritmo de subida dos preços está a desacelerar para níveis condicentes com o objetivo de 2%.
As novas projeções macroeconómicas – as tais que Lagarde considera que já estavam desatualizadas mesmo antes de serem divulgadas – apontaram para um cenário em que a inflação regista uma média de 5,3% em 2023 mas, depois, a expectativa é que ela baixe para 2,9% em 2024 e para 2,1% em 2025. Já a inflação subjacente, que exclui os preços da energia e de alguns produtos alimentares, deverá em 2023 ser mais forte do que se previu em dezembro. A média neste indicador – que está a preocupar o BCE mais do que a inflação global – será de 4,6% em 2023, 2,5% em 2024 e 2,2% em 2025.
“Apesar destas projeções, o BCE mantém a mensagem de que a inflação continuará ‘demasiado elevada por demasiado tempo'”, salienta Carsten Brzeski, economista-chefe do banco holandês ING. Porém, o mesmo especialista, em nota de análise, admite que podemos estar perante o “início da fase final do ciclo de aperto monetário por parte do BCE”, antevendo-se daqui para a frente “um abrandamento do ritmo e da intensidade de eventuais aumentos de juros no futuro”.
O ING antecipa mais dois aumentos, de 25 pontos base cada um, até ao verão, chegando aos 3,5% e fazendo, depois, uma pausa para ver como evoluem a inflação e os outros indicadores económicos.
BCE manteve aumento de 50 pontos para não lançar pânico nos mercados?
Nos bastidores do aumento de taxas de juro em 50 pontos base, nesta quinta-feira, terá estado um debate intenso e uma decisão tomada em cima da hora. Não foi Lagarde que o disse (foram “fontes do BCE” que falaram com as agências noticiosas após a conferência de imprensa), mas o BCE só chegou a um consenso para se cumprir a subida prometida de 50 pontos depois de o Banco Nacional Suíço ter lançado uma linha de cedência de liquidez ao Credit Suisse. Sem essa notícia, que ajudou a tranquilizar os investidores depois da quarta-feira “negra” para as ações da banca europeia, teria sido ainda mais difícil atingir um consenso e subir os juros em 50 pontos.
As agências noticiosas da área financeira também avançaram que o BCE não quis deixar de subir as taxas de juro em 50 pontos, como tinha sido prometido, por receio de que isso gerasse “pânico” nos mercados. Recorde-se que esta tinha sido a primeira vez que o BCE disse antecipadamente (na última reunião, a 2 de fevereiro) que provavelmente na reunião seguinte iria subir os juros – dizendo até que seriam 50 pontos – e poderá ter sido a última vez.
“Ao comprometer-se com este aumento [de 50 pontos, nesta reunião de março] quase incondicionalmente, o BCE encurralou-se a si próprio – desnecessariamente, na nossa opinião – o que lhe deixou pouco espaço de manobra caso houvesse algum tipo de choque”, diz Anna Stupnytska, economista da gestora Fidelity. E esse choque ocorreu mesmo, com a ameaça de uma instabilidade na banca que o BCE garantiu estar a “monitorizar” e que jurou combater, com as “ferramentas” que estão ao seu dispor, “caso seja necessário”.
De qualquer forma, depois de ter sido noticiado, minutos antes da decisão do BCE, que o vice-presidente da autoridade monetária (o espanhol Luis de Guindos) teria dito a governantes europeus que alguns bancos do Velho Continente poderiam estar vulneráveis, o vice-presidente do BCE descartou ter passado essa mensagem. “Lembro-me muito bem do que disse” aos responsáveis políticos nos últimos dias, disse – e o que terá dito, de acordo com o próprio, foi que “os bancos estão resilientes, têm rácios de capital mais elevados do que na anterior crise, maiores almofadas de liquidez e exposição limitada às instituições – a banca está resiliente”.
“Veremos se esta estratégia será bem sucedida a devolver a tranquilidade aos mercados“, diz Anna Stupnytska, acrescentando que os últimos dados da concessão de crédito no primeiro trimestre de 2023 “já mostraram um aperto significativo das condições de crédito e uma menor procura por empréstimos bancários”. Se a este contexto de crédito mais difícil e mais caro se juntar um cenário de instabilidade na banca, o resultado não será animador, diz Anna Stupnytska.
A Fidelity considera, neste momento, que “as vulnerabilidades no setor bancário que estão a vir ao de cima irão ter um impacto direto na vontade dos bancos de conceder crédito, levando a condições de financiamento ainda mais apertadas que, por sua vez, iriam ter um impacto sobre a economia real potencialmente mais cedo e de forma mais dura do que se previa“. É por isso que a Fidelity considera que se o BCE fizer mais aumentos da taxa de juro “isso, provavelmente, representaria um erro de política monetária que, depois, acabaria por ter de ser rapidamente corrigido nos meses seguintes”.