Não é falso o episódio que muitas vezes se conta para ilustrar que Joe Berardo percebia pouco de arte. Alegórico ou não, ele próprio o deixou registado em 2007 no catálogo do Museu Coleção Berardo que então se publicou com chancela da editora britânica Thames & Hudson. “Quando me casei, em 1969, fui comprar mobília para a casa e comprei o meu primeiro quadro. Na loja de móveis, vi uma tela pendurada na parede, que me agradou muito, e comprei-a. Quando cheguei a casa, apreciei-a melhor e vi que era uma reprodução”, começou por contar. “Então, muito frustrado, disse à minha mulher: ‘Acho que fomos enganados, julgava que isto era um original e afinal é uma cópia’. Ela disse-me: ‘Se quiseres o original, tens de ir ao museu do Louvre.’ Era uma cópia da Mona Lisa.”
Hoje debaixo de fogo por causa de dívidas à banca, a viver a desonra depois da alta-roda, dono de um nome tóxico que faz antigos amigos e conhecidos recusarem sequer falar com jornalistas, para não serem associados ao caso, o empresário madeirense e por enquanto comendador é, pelo menos, dono de uma boa coleção de arte. Coleção que faz vibrar os olhos dos credores, na esperança de com ela verem parte das dívidas saldadas – se isso for juridicamente viável.
Aparentemente, José Manuel Rodrigues Berardo não quis apostar dinheiro em arte apenas porque se tratava de bom investimento. “A minha paixão pelo colecionismo remonta aos bancos de escola”, disse na entrevista institucional de 2007. “Em miúdo colecionava selos, postais de navios transatlânticos que passavam pela ilha da Madeira e caixas de fósforos.”
Cresceu, emigrou para a África do Sul, onde passaram a chamar-lhe Joe, e terá feito fortuna em empresas de exploração de ouro. Não percebia nada de arte. Mas a coleção fez-se.
Há quase 20 anos, nas páginas do jornal Público, o curador e crítico de arte João Pinharanda disse que esta era “a única coleção portuguesa capaz de dialogar com congéneres internacionais”. Mais ou menos na mesma época, quando as obras do empresário estavam expostas em Sintra (a seguir deram origem ao Museu Coleção Berardo no Centro Cultural de Belém, em Lisboa), o mesmo especialista acrescentou que o acervo era “o único com capacidade para dar ao público nacional uma visão permanente, abreviada que seja, da panorâmica da arte internacional do século passado”. Em 2001, a curadora e crítica Luísa Soares de Oliveira subscreveu os elogios e destacou que a coleção “tem um pendor cosmopolita muito forte, que tem sido equilibrado ultimamente por aquisições dentro da arte portuguesa atual”. Em 2004, o historiador e curador Pedro Lapa, que viria a dirigir o Museu Berardo de 2011 a 2017, afirmou que a coleção estava “consagrada consensualmente”.
As pinturas, os desenhos, as esculturas, as instalações e os vídeos que nas últimas semanas têm estado no centro de uma vasta polémica – com a hipótese de serem penhoradas pelos bancos a quem o empresário madeirense alegadamente deve 962 milhões de euros, ou a hipótese de nunca transitarem para as mãos do Estado, mesmo que o dinheiro dos contribuintes seja utilizado para as comprar –, não têm par no nosso país no que ao colecionismo particular e à arte contemporânea diz respeito.
Nesta construção, por detrás de Berardo, hoje com 74 anos, esteve Francisco Capelo, dez anos mais novo. Conheceram-se em 1988. Até ao ano 2000, foi ele quem escolheu, aconselhou e comprou 594 obras. Ponto de partida: nenhuma limitação em termos de movimentos artísticos, técnicas ou nacionalidades, mas apenas obras posteriores a 1945. “O pós-Segunda Guerra foi um momento de desolação que permitiu a gestação de uma nova perceção da condição humana e um momento da criação artística particularmente rico de consequências para o futuro”, justificava Capelo num catálogo da Coleção Berardo publicado em 1996 para acompanhar a abertura do Museu de Arte Moderna de Sintra.
Familiar do africanista português Hermenegildo Brito Capelo (1841-1917), que fez famosas explorações ao lado de Roberto Ivens no Continente Negro, Francisco Capelo militou no Partido Comunista quando era adolescente, mas no fim da década de 70 enfrentou o que pode ser descrito como crise existencial. Saiu do partido, começou a fazer psicanálise e diz que foi a arte a ajudá-lo a rever a sua atitude em relação a si e ao mundo – escreveu o próprio no texto de 1996.
Estudou economia na Universidade Católica de Lisboa, trabalhou em várias instituições – Banco Português do Atlântico, Totta, Banif e na corretora de Pedro Caldeira –, até que no início dos anos 1990 começa a gerir os negócios de Joe Berardo, de acordo com um perfil publicado pela revista “Visão”.
“Obras de grande categoria”
É certo que à escala global se trata de um acervo modesto. Nem de perto nem de longe integra as 200 maiores coleções do mundo que fazem parte da lista anual elaborada desde há quase 30 anos pela publicação americana ArtNews. Aí, os lugares cimeiros em 2018 foram ocupados por Roman Abramovich (o empresário russo que é dono do clube de futebol Chelsea), Haryanto Adikoesoemo (empresário indonésio), Mohammed Afkhami (investidor iraniano) ou Paul Allen (cofundador da Microsoft). De acordo com a mesma lista, 91% dos grandes colecionadores mundiais apostam em arte contemporânea, 113 vivem na América do Norte e 54 na Europa, 39,5% vêm do setor financeiro e 17% do imobiliário. Berardo, obviamente, não consta.
O crítico e historiador de arte Bernardo Pinto de Almeida, quando pensa nas obras do comendador, conclui que “foram muito bem compradas” e destaca o facto de “não corresponderem a nomes e a assinaturas”, pois na sua maioria são “obras de grande categoria e grande representatividade de artistas, épocas e escolas”. “Não envergonham nenhuma boa coleção, mesmo que haja ali uma ou outra peça mais frágil”, explicou esta semana. Pinto de Almeida foi também antigo administrador em nome do Estado na Fundação Berardo (entidade responsável pela gestão do museu no CCB).
A coleção não foi adquirida de uma só vez, fez-se aos poucos a partir da década de 80 e com maior consistência nos anos 90, quando o mercado da arte contemporânea estava em recessão e era mais barato comprar. Infinitamente mais barato do que hoje. As primeiras 500 obras custaram 74 milhões de euros atuais. A primeiríssima de todas foi uma tela de Vieira da Silva: “Composition”, de 1948, que pertenceu a Pierre Granville (1908-1996), descrito como o maior colecionador da pintora portuguesa.
Teve uma primeira apresentação em Lisboa, em 1993, na Galeria Valentim de Carvalho, de Maria Nobre Franco. O nome de Berardo não foi desvendado nessa ocasião e nos círculos da crítica houve quem tivesse dúvidas sobre se as obras seriam autênticas. Quatro anos depois, a coleção instalou-se em Sintra. A 17 de maio de 1997, com sete meses de atraso face ao inicialmente previsto, era inaugurado o Sintra-Museu de Arte Moderna/Coleção Berardo, no edifício do antigo casino da vila, mediante protocolo de cedência por uma década, assinado com a Câmara Municipal, quando era presidente Edite Estrela. Nesse período, muitas das obras passaram também a estar em depósito no CCB e algumas exposições temporárias já as utilizavam.
Diz-se que Capelo quis fazer de Berardo o novo Calouste Gulbenkian. Mas talvez seja mito, até porque Capelo sempre viu a coleção como sua e não do dono do dinheiro. No catálogo de 1996 chegou a escrever que esperava que as pessoas o compreendessem melhor a si mesmo depois de verem as obras expostas em Sintra. E foi isto antes de se desentenderem e Capelo sair, para mais tarde criticar as aquisições seguintes: Alexander Calder, Tony Cragg, Chagall, John Baldessari, Ana Mendieta, etc.
Provavelmente insatisfeito com a solução Sinta, em 1996 Berardo começou as primeiras abordagens junto do Estado central para tentar que a Coleção fosse exibida no CCB, onde Capelo tinha exposição permanente da sua própria coleção de design. Terá conversado com Manuel Maria Carrilho, então ministro da Cultura, com o Governo de Durão Barroso, com José Sócrates em pessoa. Finalmente, o museu como hoje o conhecemos, abria portas em junho de 2007, através de um polémico acordo de comodato (cedência) por dez anos, renovado em 2016, até 2022.
“Não é por dinheiro que coleciono”
Em rigor, não se sabe quanto obras Berardo detém. Há 14 anos, a imprensa falava em quatro mil, o que poderia corresponder à contagem integral de séries fotográficas, por exemplo, que por si só não constituem obras independentes. Sabe-se, sim, que há um antes e um depois de Capelo como conselheiro. “As aquisições começaram a estar mais relacionadas com opções que fui tomando e com conselhos que vou solicitando”, declarou Berardo em 2006. E há antes e um depois da abertura do Museu Coleção Berardo, já que em 2007 e 2008 houve 214 compras, como previsto no protocolo de comodato com o Estado. É de supor, pelas declarações de há menos de três do diretor artístico à data, Pedro Lapa, que desde 2008 o acervo esteja parada ao nível das aquisições.
Além deste acervo no CCB, o empresário tem muito mais coleções. Azulejos desde o século XVI até hoje; cartazes publicitários originais; móveis e objetos art déco (que há anos estão para dar origem a um museu em Lisboa, sendo julho o novo prazo previsto); minerais e gemas (estão no Jardim Tropical Monte Palace, no Funchal); faianças; estanhos portugueses; arte africana (que a Câmara de Estremoz quer integrar num museu até outubro próximo).
“Não é por dinheiro que coleciono. Conheço-me bem e sei que no dia em que vender uma obra perco uma paixão e tenho de arranjar outra”, declarou na entrevista de 2007. “Sei que é difícil de compreender, porque as pessoas sabem que os negócios são a minha forma de ganhar a vida. Não quero nem consigo encarar as minhas coleções como um negócio, não é disso que se trata.”
Em 2006, a coleção era composta por 862 obras, segundo uma lista apensa ao protocolo assinado com o Estado (lista que se encontra nesta ligação). Alguns criadores fundamentais do século XX, e com alta cotação no mercado, estavam representados. Bacon, Basquiat, Dalí, Duchamp, Frank Stella, Gilbert & George, Hockney, Koons, Mondrian, Picasso, Warhol. As obras valiam 316 milhões, disse a leiloeira Christie’s numa avaliação pedida pelo ministério de Isabel Pires de Lima, em 2006.Terá existido uma outra avaliação em 2009, esta a pedido de Berardo, que apontou um valor de 509,5 milhões de euros para as coleção no CCB e de 61,6 milhões para outras obras sob a alçada da Associação Berardo, noticiou o “Correio da Manhã”, segundo o qual a avaliação foi executada pela galeria americana GaryNader e consta de um relatório do Banco de Portugal
“É a partir de uma falha, um vazio institucional, o escasso investimento do Estado português em arte moderna e contemporânea, que deve ser analisada a relevância do espólio reunido pelo comendador”, escreveu em 2005, no Público, o crítico e historiador de arte Óscar Faria. Acrescentou um precioso resumo: “A coleção inclui importantes acervos, nomeadamente dedicados ao surrealismo, à arte pop, à arte povera, à land art e ao minimalismo. Em termos do contexto nacional, ela inclui obras de muitos dos artistas centrais para uma compreensão do que foi o século XX: Amadeo, Álvaro Lapa, Ana Hatherly, Helena Almeida, Júlio Pomar, Maria José Aguiar, Joaquim Bravo, Julião Sarmento, Paula Rego, Joaquim Rodrigo, Pedro Cabrita Reis, Alberto Carneiro, António Areal.” Já em termos internacionais: Picasso, Warhol, Francis Bacon e reticências.
Bernardo Pinto de Almeida não ficaria espantado se hoje a coleção “já estivesse a valer o dobro ou triplo”, até mil milhões de euros, duas vezes o Orçamento do Estado para a Cultura em 2019. A especulação no mercado da arte ultrapassou nos últimos anos limites inimagináveis, com preços-recorde consecutivos e leiloeiras espalhadas por todo o mundo, incluindo nos chamados países emergentes. A título de exemplo, no acervo do Museu Berardo encontram-se duas esculturas em madeira de Jeff Koons, o mesmo artista de que há dias foi vendida uma obra em leilão por nada menos que 81 milhões de euros, a obra mais cara de sempre de um artista vivo, e existe também uma pintura de grande formato de Francis Bacon, autor que em 2013 também deu lucros estratosféricos.
O crítico notou que, além do mais, a Coleção Berardo também se valorizou por estar no CCB nos últimos 13 anos. “Se é exibida permanentemente, se por causa disso há obras cedidas para exposições noutros países, o conjunto valoriza-se. É muito diferente de uma coleção que está em casa do proprietário, porque aí, creio eu, não se valoriza tanto.”
O museu é hoje uma das instituições culturais mais populares do país: 998.831 visitantes no passado, dizem os números oficiais (apenas atrás do Mosteiro dos Jerónimos, o monumento de maior audiência em Portugal, com um milhão e 79 mil pessoas em 2018, segundo a Direção-Geral do Património Cultural).
O crítico Alexandre Pomar não quis adiantar um valor de mercado para o acervo de Berardo, porque isso dependeria, por exemplo, “do momento e do local em que as obras fossem vendidas e se o fossem individualmente ou em conjunto”, mas confirmou que algumas peças serão muito valiosas, enquanto outras terão preços medianos. O professor universitário e crítico de arte Delfim Sardo, que entre 2003 e 2006 dirigiu o Centro de Exposições do CCB, também não quis falar em valores, porque “o trabalho de avaliação é muito especializado e difícil”, mas acrescentou que “é de presumir que a coleção, em geral, se tenha valorizado ao longo dos anos e que em princípio poucas ou nenhumas peças se tenham desvalorizado”.