Por cá chamamos-lhe a “Hora do Adeus” e até poderá haver quem jure a pés juntos que esta é uma música portuguesa, mas a verdade é bem diferente: aquela canção que nos habituámos a associar aos momentos de despedida tem origem num poema escocês, “Auld Lang Syne”, que é uma reflexão sobre o passado e a maneira como nos relacionamos com ele.
“Chegou a hora do adeus, irmãos vamos partir” é o primeiro verso da versão portuguesa do poema escocês que, em inglês, na sua versão original, convida a cantar “se um velho amigo for esquecido”.
Não será este um ponto de ordem nas negociações para o Brexit, que juntam à mesma mesa a equipa europeia (liderada pelo francês Michel Barnier) e a equipa britânica (encabeçada por David Frost), mas não faltam os casos em que, perante a melodia de um Brexit que se aproxima, cada parte decide dar a letra e o significado que melhor entendem.
Em que ponto está o Brexit e quais são os prazos?
Antes da resposta, uma pequena revisão de matéria. A 23 de junho de 2016, 51,9% de britânicos votaram a favor da saída do Reino Unido num referendo. A 31 de janeiro de 2020, depois de sucessivos adiamentos, duas eleições gerais, e já com um terceiro primeiro-ministro, Boris Johnson, o acordo de saída entre Bruxelas e o Reino Unido foi ratificado na Câmara dos Comuns e deu-se assim início à saída da UE. Nesse mesmo dia, começou o período de 11 meses previsto para as negociações para a relação futura entre o Reino Unido e a UE. E esse prazo termina daqui a pouco tempo: 31 de dezembro, mais concretamente.
Porém, não será boa ideia deixar tudo para aquela data. Isto porque qualquer acordo final que resulte da mesa de negociações entre Bruxelas e Londres terá depois de ser aprovado em várias sedes: o Parlamento Europeu, dentro de cada Estado-Membro da União Europeia e, por fim, na Câmara dos Comuns. Neste último caso, o calendário oficial aponta para a semana de 14 a 18 de dezembro como a última em que o plenário daquela câmara estará reunido. Porém, de acordo como Financial Times, há deputados que estão dispostos a agendar uma sessão plenária extraordinária entre 29 e 30 de dezembro.
Portanto, aceite que ficou a 31 de janeiro uma saída do Reino Unido da UE, passou desde então a caber aos responsáveis das duas equipas negociais chegar a um entendimento sobre a relação futura entre ambas as partes. É nessa fase que o processo do Brexit está.
Mas o que é que está em causa? Nos próximos pontos, deixamos algumas respostas.
Em que temas é que há acordo à vista?
No fundo, as negociações entre o Reino Unido e a UE para definir a relação futura entre os dois países passam por encontrar os trâmites que ambas as partes vão seguir daqui em diante nos vários temas em que até aqui tinham uma relação conjunta. Se isto parece vago, vale a pena então olharmos para os temas nos quais parece já haver princípios de acordo.
A fazer fé naquilo que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse no Parlamento Europeu a 25 de novembro, “houve progressos assinaláveis em várias questões importantes”. As áreas em causa, conforme explicado pela presidente da Comissão Europeia, são a “aplicação da lei e cooperação judicial, coordenação dos sistemas de segurança social, e também no domínio do comércio de bens e serviços e transportes”.
Sobre estas áreas, Ursula von der Leyen referiu mesmo que existe já uma base para um “possível texto final”.
Porém, e apesar daquelas notas de otimismo, o discurso de Ursula von der Leyen no Parlamento Europeu foi marcado por um tom negativo. “Francamente, não consigo dizer-vos hoje se no final haverá um acordo”, disse. Esta incerteza deve-se às questões que, praticamente 10 meses depois do início das negociações para a relação futura e a pouco mais de um mês de estas terminarem, ainda estão em aberto.
São esses os problemas, ou entraves, que abordamos no seguinte ponto.
Quais são as entraves a um acordo?
Em primeiro lugar, o tema das pescas. Esta era uma área até aqui regulada pela União Europeia e que, com a saída do Reino Unido da comunidade, vai ter de operar sob um novo regime. Aqui apresenta-se uma faca de dois gumes. Por um lado, a União Europeia quer garantir o máximo de acesso às águas costeiras britânicas, até aqui exploradas por frotas de países da UE — que, em 2019, detinham 55% do valor líquido quotas pesqueiras no Reino Unido. Por outro lado, os britânicos exportam entre 60 a 80% do peixe que as suas próprias frotas pescam — e se quiserem continuar a exportar com facilidade para a União Europeia aquilo que pescam terá de haver um acordo comercial.
E aqui chegamos ao segundo ponto, que é também o mais crucial: o comércio entre o Reino Unido e a UE. No seu discurso no Parlamento Europeu de quarta-feira, Ursula von der Leyen disse que tinha havido “progressos assinaláveis” também na área do comércio. Porém, não há para já sinais evidentes ou concretos dessa evolução — podendo esta ser uma declaração em que a presidente da Comissão Europeia prefere ver o copo meio cheio e de caminho convencer todos de que é assim mesmo que ele está. Mas há sinais em contrário.
Tudo porque o governo de Boris Johnson tentou fazer aprovar a chamada “lei do mercado interno”, onde se previa a possibilidade de o executivo britânico incumprir o acordo entre Bruxelas e o Reino Unido. Esse incumprimento seria especificamente na questão da fronteira entre a Irlanda do Norte (uma das quatro nações que formam o Reino Unido, além de Inglaterra, o País de Gales e a Escócia) e a República da Irlanda. Na sequência do Acordo de Sexta-Feira Santa, que pôs fim à violência entre separatistas e unionistas no Irlanda do Norte, ficou determinado que não haveria uma fronteira entre as duas Irlandas, apesar de serem parte de dois países diferentes.
Esta condição desse acordo firmado em abril de 1998 tem provado ser um verdadeiro quebra-cabeças na aplicação jurídica do Brexit. No caso do comércio, o governo de Boris Johnson quis uniformizar os standards comerciais, que dizem respeito a questões tão amplas como a assistência estatal a empresas privadas ou o controlo de qualidade necessário para vender os bens no Reino Unido e, mais importante, em futuros acordos comerciais — tanto com a União Europeia, como com os EUA. Essa uniformização levaria a uma centralização da definição dos controlos de qualidade (até aqui entregues a cada uma das nações sob a condição de respeitarem os padrões da UE) em Londres e numa nova zona aduaneira.
O problema é que, ao incluir a Irlanda do Norte nesta nova zona aduaneira que a lei do mercado interno procurava formar, aquela nação britânica passaria a ter efetivamente uma fronteira com a República da Irlanda, por força de não estar na mesma zona comercial. Na prática, isto levaria a que houvesse controlo fronteiriço (e possivelmente tarifas) aos bens que passassem entre as duas Irlandas — o que seria uma quebra do Acordo de Sexta-Feira Santa e também do acordo entre Bruxelas e Londres.
O próprio Ministro para a Irlanda do Norte, Brandon Lewis, admitiu a 8 de setembro que esta lei “quebra a lei internacional” — servindo de fraco atenuante quando acrescentou que isso só aconteceria “de uma maneira muito específica e limitada”. A proposta atraiu amplas doses de oposição e polémica. A partir de Bruxelas, Ursula von der Leyen recorreu ao Twitter para dizer que estava “muito preocupada com o anúncio do governo britânico e da sua intenção de quebrar o acordo de saída”. No final, deixou ainda uma máxima do direito internacional em latim: pacta sunt servanda. Isto é, os tratados têm de ser respeitados.
Very concerned about announcements from the British government on its intentions to breach the Withdrawal Agreement. This would break international law and undermines trust. Pacta sunt servanda = the foundation of prosperous future relations.
— Ursula von der Leyen (@vonderleyen) September 9, 2020
Do seu lado, Boris Johnson não poupou palavras quando falou deste tema na Câmara dos Comuns. “Lamento ter de dizer a esta câmara que nos últimos meses a União Europeia tem sugerido estar pronta para, a um ponto extremo e irrazoável, utilizar o Protocolo da Irlanda do Norte para lá do bom senso para simplesmente fazer pressão contra o Reino Unido nas nossas negociações por um acordo de comércio livre”, disse. No mesmo discurso, acusou a Comissão Europeia de estar a “colocar a possibilidade de fazer bloqueios às mercadorias alimentares e agrícolas dentro do nosso país”.
Tudo isto foi em setembro, mas a verdade é que esta questão continua no campo das possibilidades para o governo britânico. E, mesmo apesar de a Câmara dos Lordes ter votado contra a cláusula na “lei do mercado único” (com 433 votos contra e 165 a favor) que levaria àquela quebra da lei internacional, Boris Johnson já deixou claro que não desistirá dessa ideia.
“Qualquer correção dos Lordes será considerada quando o projeto-lei for devolvido à Câmara dos Comuns, mas consideramos que estas cláusulas são uma rede de segurança vital”, disse um porta-voz do primeiro-ministro britânico. Com isto, Boris Johnson deixa claro que a “lei do mercado interno” continua a ser uma hipótese para o caso de não haver um acordo com Bruxelas até 31 de dezembro de 2020. Porém, ao avançar com esta lei, o governo britânico continuaria a criar um controlo fronteiriço entre as duas Irlandas e, consequentemente, estaria a quebrar o Acordo de Sexta-Feira Santa.
E se essa notícia não será certamente bem recebida em Belfast ou em Dublin, também já se sabe de outra capital que também não vê com bons olhos esses desfecho. É disso que falamos a seguir.
O que significa Joe Biden para o Brexit?
A simpatia entre Boris Johnson e Donald Trump era, até aqui, conhecida. A possibilidade de um acordo comercial entre os seus países era, também, um projeto desejado — mais pelo primeiro do que pelo segundo, é certo, mas ainda assim um projeto em cima da mesa. Para Boris Johnson, essa seria uma tábua de salvação perante a possibilidade de uma rutura com a UE sem um acordo de comércio com Bruxelas. Para Donald Trump, seria uma maneira de prejudicar a UE (de onde surgem 51% das importações britânicas) ao mesmo tempo que abria um novo mercado para os EUA mediante a negociação de novas condições — o que implicaria uma redução dos padrões até aqui praticados no Reino Unido em setores como a alimentação ou a saúde, em especial a farmacêutica.
Tudo isto eram possibilidades (sobretudo no caso de as negociações com Bruxelas falharem) com Donald Trump na Casa Branca — mas, como se sabe, a partir de 20 de janeiro de 2020 o número 1600 da Pennsylvania Avenue de Washington D.C. terá outro inquilino, de seu nome Joe Biden. E o que ele teve para dizer até agora sobre este tema não é muito encorajador para a estratégia de Boris Johnson, em particular no que diz respeito à “lei do mercado interno” e ao que esta implicaria para a fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda.
Na sequência de uma tomada de posição de quatro congressistas norte-americanos (um republicano e três democratas) contra a proposta de “lei do mercado interno”, Joe Biden foi ao Twitter e ali deixou clara a sua posição: “Não podemos deixar que o Acordo de Sexta-Feira Santa, que trouxe paz para a Irlanda do Norte, seja uma vítima do Brexit. Qualquer acordo comercial entre os EUA e o Reino Unido tem de garantir o respeito pelo Acordo e de prevenir o regresso de uma fronteira rígida. Ponto final”.
We can’t allow the Good Friday Agreement that brought peace to Northern Ireland to become a casualty of Brexit.
Any trade deal between the U.S. and U.K. must be contingent upon respect for the Agreement and preventing the return of a hard border. Period. https://t.co/Ecu9jPrcHL
— Joe Biden (@JoeBiden) September 16, 2020
Este tweet foi publicado a 16 de setembro, isto é, cerca de um mês e meio antes das eleições que Joe Biden viria a vencer. Já depois disso, e após consulta da Sky News, a equipa de Joe Biden disse que o Presidente eleito dos EUA “reafirma” aquela sua posição. Assim, no fundo, Joe Biden deixa claro que o caminho mais fácil para haver um acordo comercial entre o Reino Unido e os EUA é se, antes disso, o Reino Unido chegar a um acordo comercial com a União Europeia.
Como seria de esperar, esta declaração foi bem recebida em Bruxelas. O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, lançou um comunicado onde agradecia o “claro apoio quanto à aplicação do acordo de saída que a UE concluiu com o Reino Unido no ano passado”. “Este acordo preserva a paz e a estabilidade na Irlanda e respeita integralmente o Acordo de Sexta-Feira Santa”, acrescentou o ex-primeiro-ministro belga.
O que acontece se não houver acordo?
Na prática, o Reino Unido passará a ser para a União Europeia um país-terceiro.
Isso significa que todas as áreas onde até aqui havia relações entre o Reino Unido e os Estados-Membros por intermédio da UE passará a haver uma relação caso a caso.
No caso do comércio, as relações entre a UE e o Reino Unido passariam a ser feitas sob os auspícios da Organização Mundial de Comércio, que estipula que na ausência de um acordo comercial pode ser imposta uma tarifa a um produto importado. Isto pode levar a um aumento generalizado dos preços de produtos que o Reino Unido importa e também daqueles que a UE importa do Reino Unido — e em casos mais preocupantes, porque também mais extremos, pode levar a situações de escassez no Reino Unido de produtos tipicamente importados de países da UE.
Essa é a má notícia.
A boa notícia é que, a partir daí, nada impede o Reino Unido e a União Europeia de se voltarem a sentar à mesa para chegar a novos tipos de acordos pontuais (chegando a temas como pescas, saúde, segurança social, turismo, educação) ou até mesmo sobre o comércio. Tudo isto é, porém, e como se tornou óbvio desde que o Brexit começou a ser desenhado no referendo de 23 de junho de 2016, bem mais fácil de dizer do que fazer.