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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Bruno Nogueira: "A primeira coisa que me dizem sempre é 'epá, não há muito dinheiro'"

A poucas semanas de iniciar uma tour por Portugal com um espectáculo de stand-up, Bruno Nogueira fala sobre a carreira, a cultura em Portugal, a série "Sara", que escreveu, e a paixão pela jardinagem.

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Um rapaz magrinho, alto, bem parecido começou a dar nas vistas pela imprevisibilidade e uma forma muito seca de confrontar as pessoas. Bruno Nogueira chegou ao “Curto Circuito” em 2003, antes havia aparecido em algumas séries e telenovelas em papéis menores, revitalizou o programa e mostrou que um outro tipo de abordagem era possível neste género de programas. Por vezes era uma bandalheira, sim, mas fazia parte de um processo. Processo que, revela nesta entrevista, passa pela sua curiosidade em experimentar coisas novas e não ter medo de falhar — que, no fundo, é a pior coisa que pode acontecer quando se tenta.

Também em 2003 surge no “Levanta-te e Ri” e destaca-se numa geração de comediantes que aí surge. Até chegar a “Os Contemporâneos”, onde tem uma participação muito ativa na escrita dos sketches, fez parte de programas como “Manobras de Diversão” ou apresentou “O Pior Condutor de Sempre”. Já foi talk show host, em “Lado B”, argumentista e ator em algumas das melhores séries de comédia da televisão portuguesa, como “Último a Sair” e “Odisseia”. E sentou-se no lugar do morto numa ótima viagem pela música popular portuguesa em “Som de Cristal”. Também faz teatro regularmente e não é estranho vê-lo associado a projetos inesperados, como o espectáculo “Deixem o Pimba em Paz”, onde colabora com Manuela Azevedo dos Clã na interpretação de canção pimba.

Aos 37 anos decide voltar aos palcos de stand-up. Passou as últimas semanas a preparar uma tournée numa pequena sala do São Jorge e no passado dia 7 de Outubro estreou na RTP2 a sua mais recente criação, a série “Sara”. Nos últimos anos também desenvolveu uma paixão por árvores e plantas, onde encontra um escape para as tensões do dia-a-dia. Foi precisamente no São Jorge que o encontrámos. Quisemos saber afinal o que estava ele ali a fazer.

A Sara não sabe chorar e isso deu uma série no cinema

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Em que projeto está a trabalhar aqui no São Jorge?
Estou a testar material para stand-up. Em Portugal não há nenhum clube de comédia para testar stand-up, então eu descobri uma sala no São Jorge que leva cerca de 30 pessoas. Portanto, juntei-me ao Salvador Martinha, ao Eduardo Madeira e ao Luís Franco-Bastos, que também estão a preparar espectáculos, e estamos todos os dias a testar naquela sala textos novos. A meio de novembro vou começar uma tournée.

Porque é que decidiu voltar a fazer stand-up numa altura em que o “Levanta-te e Ri” regressou?
Isso foi coincidência, já estava a fazer há três meses. Porque deixei de fazer de fazer durante muito tempo, o último espectáculo original que escrevi foi há uns dez anos. Depois ia fazendo pontualmente stand-up mas era uma coisa muito descomprometida, em convenções, coisas desse género. E depois do “Levanta-te e Ri” havia muito stand-up, comecei a experimentar outras coisas, desinteressei-me um bocadinho do stand-up, enquanto espectador continuei a achar piada, mas não sentia vontade de fazer. Agora surge-me outra vez a vontade de fazer e de estar sozinho em palco a poder dizer coisas minhas. Vem só dessa vontade, que só surgiu agora.

Quando parou de fazer stand-up, parou porque queria mudar algo ou sentia que era ingrato, na altura, fazer stand-up em Portugal? Entretanto o panorama mudou.
No princípio havia uma grande confusão sobre o que era stand-up. Eram anedotas? Estava tudo a aparecer e havia muita gente a experimentar e eu na realidade assustei-me um bocadinho com aquilo tudo. E como tive sempre vontade de experimentar várias coisas, achei que era uma boa altura, quando aquilo estava muito povoado, de ir experimentar outras coisas e voltar quando estivesse mais calmo. Deveu-se a isso, era muito ruído, estava a acontecer muita coisa, e como eu tinha outros interesses, a paixão pelo stand-up na altura não era forte o suficiente para largar tudo e aproveitar só aquilo.

"Eu preparava um texto de stand-up de dez minutos e ia testá-lo pela primeira vez em direto para milhões de pessoas, não só para milhões de pessoas, estava também a fazê-lo ao vivo ali, para um público que estava ali presente. Era um risco absoluto."

O “Levanta-te e Ri” [SIC, 2003] foi importante para aquela geração?
Foi. Hoje em dia seria muito irresponsável fazer, na medida em que, na altura, eu era inconsciente. Eu preparava um texto de stand-up de dez minutos e ia testá-lo pela primeira vez em direto para milhões de pessoas, não só para milhões de pessoas, estava também a fazê-lo ao vivo ali, para um público que estava ali presente. Era um risco absoluto, corria bem, felizmente, mas era um risco enorme. Hoje em dia já seria mais complicado fazer um direto de stand-up sem saber se aquilo corria bem ou mal. Mas foi importante o “Levanta-te e Ri”, para mim e para outras pessoas que apareceram no mesmo momento. Eu próprio descobri que gostava de fazer stand-up com o “Levanta-te e Ri”, não tinha grande experiência de stand-up, já tinha feito uma vez ou outra e com o “Levanta-te e Ri”, com o retorno que me dava com o riso e o gostar de estar em palco sozinho e do perigo que isso era, foi aí que desenvolvi a vontade de fazer stand-up.

O seu stand-up era uma continuação do Bruno Nogueira e da personagem que tinha no “Curto Circuito” [SIC Radical, 2003]…
Sim, e no “Manobras de Diversão” [SIC, 2004] também havia assim uma personagem que era eu com um taco de basebol e um gorro a embirrar com tudo. Hoje em dia oiço aquilo e há coisas muito primárias, ainda se estava a experimentar, mas na altura fazia sentido, porque não se dizia grande coisa. Quando se queria falar de alguém usava-se o nome tipo “Bimbo da Costa”, como se usava no “Contra-Informação”, era muito raro alguém fazer um monólogo de um talk-show ou de um stand-up e falar nos nomes. Depois abusou-se um bocadinho disso, eu próprio abusei um bocadinho disso, estereotipei uma série de pessoas. Quando vês à distância já não te identificas com aquilo, mas não me arrependo, faz parte de uma época. Mas é muito engraçado ver como é que na altura se pensava, ou como eu pensava que era uma forma de deixar uma marca.

[“Levanta-te e Ri”:]

https://www.youtube.com/watch?v=DEXfpIRVu10

Mas quando montou essa personagem para o “Levanta-te e Ri” era porque não sabia fazer melhor?
Não, era porque a minha persona tímida vinha do pânico. Isso não era construído, era por causa do pânico. E de não achar especial graça àquilo que eu estava a dizer. E era porque de facto aquilo era o que eu sabia fazer, era como sabia escrever na altura, era o tipo de coisas que me divertiam na altura e que, de alguma maneira, eu sentia que era diferente daquilo que as outras pessoas estavam a fazer. Isso também me aliciava, não percorrer o mesmo caminho que outros estavam a fazer.

“Há pessoas que acham que têm a solução para aquilo que o espectador quer”

Quando apareceu no “Curto Circuito” era muito diferente de tudo o resto e, também, de tudo o que estava para trás no programa. Foi um refresco para o programa. Para aquela geração apresentou um tipo diferente de interagir com as pessoas, por exemplo, quando estava a cobrir os festivais, a forma como deixava as pessoas desconfortáveis era diferente do que se fazia até então. Isso era uma forma de lidar com a sua timidez?
Aquilo era mesmo uma provocação. Tinhas três horas em direto sem praticamente alinhamento nenhum. Para o bom ou para o mau, deixas o animal à solta. Pode correr bem, pode correr mal, mas o que é certo é que podias experimentar. Podias fazer, testar os limites da televisão, os limites do espectador. Qual era o preço? Não verem no dia seguinte, mudarem de canal, para mim pouco me importava esse preço naquela altura. Acho que a liberdade criativa te dá um perigo que é muito fascinante quando estás a fazer televisão, ou teatro, ou stand-up, estás a fazer aquilo para testar os teus limites e para ver até onde é que consegues levar a tua criatividade. O problema é quando começas a pensar demasiado, a pensar que há pessoas em casa que vão achar que isto é de mais, que vão estar com as crianças e elas não deviam ver. Aí estragou-se tudo, aí não és tu a pensar, é o produtor a pensar, o diretor do canal a pensar, o público em casa a pensar, já não és tu. Portanto, eu acho que nunca fui tão puro como aí, aí era um animal à solta, era indomável.

[“Curto Circuito”:]

https://www.youtube.com/watch?v=yf49yEMiUFs

Mas quando escreveu e protagonizou o “Último a Sair” [RTP1, 2011], a sua personagem também tinha uma grande liberdade, não?
Sim. Mas estou a falar da liberdade que me permitia fazer o que me apetecesse com o meu corpo e com a minha voz. Ou seja, podia saltar para cima do balcão de apresentação, podia deitar-me e ficar a dormir cinco minutos e o outro apresentador apresentava, ou ir-me embora se me apetecesse, ou desligar as luzes todas do estúdio como aconteceu, ou ir para a régie realizar e ficar o Fernando Alvim a atender chamadas. Claro que há muitas coisas que são ao lado e não têm piada, mas daquilo acontece qualquer coisa, começas a afinar o que pode ser interessante. No “Último a Sair” também, mas já obedece às regras de um reality show falso, com determinadas coisas, mas ainda assim tem essa liberdade. E muitas das coisas que aconteceram no “Curto Circuito”, em última análise, serviram para experimentar coisas no “Último a Sair”.

[“Último a Sair”:]

No tempo do “Curto Circuito” já não podia era ir com uma caçadeira para o estúdio, como fez Herman José na Roda da Sorte.
Pois, com a caçadeira não. Mas isso é um momento de liberdade também ótimo. Hoje em dia era impensável, uma pessoa ir com uma caçadeira para onde quer que fosse. Ou era impensável eu estar três horas sem guião, três horas em que podes dizer o que queres, podes ir embora se te apetecer. Isso hoje em dia é impensável, já há telepontos, o programa é mais pequeno, já há mais patrocinadores, tem que se ter cuidado com o que se diz, já é tudo mais formatado. Aquilo tinha piada pela vertigem de descambar e ser de mais. Mas esse perigo já não há na televisão em geral e é uma pena. É aquela coisa que eu costumo dizer: é sempre pensado para aquilo que o espectador quer.

E o que é que o espectador quer?
Ninguém sabe, mas há pessoas que acham que têm a solução para aquilo que o espectador quer. E vão formatando as coisas até ficarem aborrecidas e cinzentas, pastosas e às tantas já não é nada. É aquilo que quer o senhor de Seia, aquilo que quer o senhor do Algarve, ou o que quer uma criança de Lisboa… é impossível encontrar essa fórmula. E as pessoas estão sempre à procura de uma fórmula que não existe. Quer dizer, existe, chama-se telenovela, futebol ou telejornal, são as coisas que funcionam sempre. Está-se sempre a tentar encontrar o consenso em tudo. Às tantas perde-se a personalidade.

E há uma grande necessidade de deixar tudo explicado para a audiência.
Há um grande perigo de pôr as pessoas a pensar. Um objeto artístico que põe as pessoas a pensar deixa toda a gente em pânico, principalmente quem contrata. E eu não consigo compactuar com essa ideia de que o público é burro ou não consegue encontrar a solução para um pequeno problema que se apresenta numa coisa qualquer que eu escreva. Eu não consigo alinhar, tento combater isso. Para já é muito paternalista, essa ideia de que tem de ser uma coisa que o público entenda. E o público não é burro. Se lhes derem constantemente pastilhas elásticas para a cabeça, claro que eles vão aproveitar, estão cansados e não sei quê. Mas se apresentares outras coisas, há outra fatia de público que está disposta a pensar. E não quer dizer que seja mais especial por causa disso, quer só dizer que procura outra coisa. E tem de haver espaço para tudo, tem de haver espaço para quem não lhe apetece sentar, mas também para quem está disposto a levantar-se de uma cadeira e ir a um dicionário, uma enciclopédia, perceber qualquer coisa.

"Não consigo pensar se uma coisa é para o grande público, ou se agora isto é um público só suburbano de trinta anos" (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

No fundo é educar a audiência.
Percebo isso, mas não faço nada com esse intuito. O que faço é como se fizesse para mim, o que eu gostaria de ver, e o que gostaria de ver é uma coisa que me desafiasse e que me estimulasse enquanto espectador. É um ciclo muito egoísta, não consigo pensar de outra maneira. Não consigo pensar se uma coisa é para o grande público, ou se agora isto é um público só suburbano de trinta anos. Não consigo fazer isso, consigo pensar no que eu gostaria de ver. E depois o que apresento, o que escrevo, é o mais fiel possível ao tempo que estou a viver: eu, com 37 anos, neste momento sou aquilo. Não há como estar a mentir a quem está a ver.

Quando fez o “Odisseia” [RTP1, 2013], era aquela personagem?
Sim, era aquela pessoa que não só tinha acabado de fazer uma viagem de autocaravana com amigos, como também se tinha separado. Era um reflexo daquilo que eu era naquele momento, é uma espécie de biografia codificada, mas claro que é uma coisa muito separada da realidade. Aquilo que eu era naquele momento, se eu vir as coisas que fiz e comparar com uma agenda pessoal daquilo que me estava a acontecer, faz todo o sentido. Não estava a tentar fazer uma coisa para ir buscar referências. É um bom diário pessoal/profissional.

[“Odisseia”:]

Escreveu agora a série “Sara” [RTP2, 2018], que é virada para o meio audiovisual português. Na altura quando pensou no “Odisseia”, também pensou enquanto crítica ao meio, que nunca há dinheiro suficiente para arriscar neste tipo de séries?
Agora que penso nisso… sim. Porque é uma coisa recorrente que é muito cansativa de ouvir. A primeira coisa que me dizem sempre é “epá, não há muito dinheiro”. Nunca ouvi nenhum produtor a dizer “olha, hoje para este, temos um bocadinho mais”. Uma pessoa sente-se sempre a regatear. Sempre. Independentemente do ponto da carreira em que estás, estás sempre a regatear, a ter de convencer as outras pessoas. Quer dizer, gostas de ganhar dinheiro, mas para fazeres coisas precisas de dinheiro, porque há equipas envolvidas. As pessoas chamam-te porque gostaram de ver não sei o quê, mas depois esquecem-se que esse “não sei o quê” custou dinheiro. E querem o “não sei o quê” mas a metade do preço. E isso não é possível. Não é possível fazeres uma coisa com a mesma qualidade a não ser que haja disponibilidade e pessoas com muito valor no que estão a fazer. Essa lengalenga que se ouve sempre, em teatro, televisão ou cinema, é uma coisa que está colada à pele de quem cria, como é o meu caso. A primeira coisa que te apresentam é uma dificuldade.

É uma coisa portuguesa?
É. Acontece sempre: primeiro está aqui a dificuldade, vamos ver o que consegues fazer com essa dificuldade. E por vezes cansa. Eu na realidade gosto é de juntar pessoas, gosto de criar coisas com pessoas de que gosto e fazer uma espécie de puzzle. Mas é sempre bom sentires que ao teu lado também está alguém que te apoia. Acho que há sempre essa motivação dos canais para “bora lá, vamos fazer”, mas há sempre uma necessidade de te dizerem que estão na penúria. E depois vês a seguir que compram jogos de futebol, galas caríssimas… não é não haver dinheiro, não há é para isto. São coisas diferentes. Há dinheiro, muito, mas não é para isto que queres fazer. São coisas diferentes.

“A qualquer momento podes dizer algo que arruína a tua vida para sempre”

O que o levou a querer trabalhar em televisão?
Foi tudo um bocadinho por acaso. Fui parar ao “Curto Circuito” porque me convidaram para fazer uma espécie de casting, depois fui ficando. Fui parar à representação meio por acaso, quando acabei o décimo segundo, sabia que queria representar, não sabia se era comédia, ou outra coisa. As coisas foram aparecendo e eu em função do ponto em que estava fui avaliando se fazia sentido ou não. E no “Curto Circuito” havia esse fascínio para saber como funciona o mundo da televisão, muito mais o direto, que é uma coisa que me alicia bastante, há aquela coisa de poder ser trágico a qualquer momento. A qualquer momento podes dizer algo que arruína a tua vida para sempre. Esse risco eu gosto. E o risco de ser uma coisa irrepetível. No “Lado B” [RTP1, 2010] houve um ou dois talk-shows que tivemos que gravar. Era um live on tape, gravado do princípio ao fim, como se fosse um direto, mas não é a mesma coisa. Sabendo que as pessoas estão a ver naquele momento, há uma injeção de adrenalina que te estimula uma coisa, quando sabes que não pode ser repetido, não acontece. E o “Curto Circuito” tinha isso, em direto, todos os dias, não há grande alinhamento. Boa sorte. Isto para um puto de vinte e poucos, é um luxo.

[“Lado B”:]

De onde vem a vontade de representar?
Sabia que queria experimentar, gostava de experimentar porque sou curioso por natureza, como gosto de experimentar coisas na música, na televisão ou no cinema. Gosto de experimentar e saber o que posso acrescentar ali. Não tenho aquelas ideias preconcebidas de que tenho de fazer isto para ser visto aos olhos das pessoas de uma certa maneira. Tenho a vontade de experimentar ao máximo. Enquanto espectador há uma série de coisas que me interessam, desde fotografia, música, dança, cinema, televisão, apresentação, que eu gostava de experimentar. Não tenho nada a perder. O máximo que pode acontecer é correr mal e voltar para a zona de conforto. Mas gosto desta ideia de risco, gosto da ideia de fracasso. De possível fracasso, é uma coisa que não afasta, que na realidade me estimula.

Há alguma coisa, alguma ideia que já correu mal?
Ui, tantas. São coisas menos visíveis, mas já houve coisas que fiz que percebi que estava a fazer 60% do que poderia ser 100%. Não é por falta de esforço meu, não tinha as capacidades para fazer a 100%. Aprendes mais do que perdes, na minha opinião. Acho que só quando te juntas com pessoas que te fazem a vida negra, com má gente, seja nesta profissão ou noutra qualquer, aí é que tens a perder. Quando é experimentar e há o risco do fracasso, mesmo que haja um cheiro a fracasso no ar, acho que não consigo encarar como uma tragédia grande. Tragédia é teres uma doença, uma coisa qualquer irrecuperável. Errar numa peça? Não levo tanto a sério para me deitar abaixo.

Na maior parte do tempo trabalha com pessoas que gosta.
Não consigo fazer de outra maneira. Há pessoas em que reconheço imenso talento, mas sei que vou chocar com elas e sei que não vai correr bem e que a maneira delas trabalharem é muito distante da minha. Continuo a admirá-las enquanto espectador, mas não consigo dar o passo de as trazer para as coisas. Tem só a ver com isso. Para mim é o mais importante, num grupo de dez pessoas num projeto, basta uma para contaminar as outras todas e o projeto ter uma pedra na engrenagem. E é a coisa que mais me preocupa quando estou a escolher pessoas é esse equilíbrio difícil. Encontrares pessoas com quem empatizas e que admiras.

"Grande parte do preconceito do cinema português é culpa de quem faz, mas também culpa de quem vê, que não se atualizou com o que foi acontecendo. E não foram feitas as pazes com o público. O preconceito que havia com a novela... Um ator que fizesse novela... havia encenadores que crucificavam atores que fizessem novela, porque achavam que o teatro é que era puro."

Gosta mais de fazer de si próprio como em programas como o “Último a Sair” e o “Odisseia”? No “Último a Sair” parecia que vocês se divertiam bastante. Se eu escrevesse e tivesse de protagonizar, aquilo parece o sonho molhado de gozo com o “Big Brother”.
Aquilo foi escrito com o João Quadros e o Frederico Pombares. Está muito colado à nossa pele. Eu estava presente para poder apontar a personagem para onde me interessava. Como é uma versão aumentada de ti próprio, que era o que acontecia no “Último a Sair”, dá-te muito gozo a fazer. Claro que não dá para fazer aquilo sempre, estares sempre a fazer de ti, às tantas é uma coisa que deixa de… é interessante porque é esporádico. Mas ali é muito bom. É bom por várias coisas, pela provocação ao espectador, que não entende bem, e acha mesmo que és aquele ser abjeto. Deixar essas pessoas baralhadas para mim é um regalo. A ideia de poderes dizer as coisas mais horríveis e haver uma ou outra pessoa que pensa “ele de facto é muito mau”. Se soubesses o quentinho que me dá no estômago, é uma coisa que eu adoro. E para as pessoas que entendem o que se está a passar, é igualmente bom.

Para as pessoas que não entendem o que se está a passar isso torna-se mais intenso? Estou a pensar na forma como as pessoas se relacionam com as telenovelas, há sempre aquela história da atriz que interpreta a má na novela e é atacada por alguém.
Eu não consigo entender isso, é preciso teres algum problema para confundires o que se passa, para não perceberes que é outra pessoa com outro nome, que está tudo na televisão. Eu percebo que há muitas pessoas que estão muito sozinhas e para quem aquilo é quase família e elas não se conseguem distanciar. Mas é uma patologia, tu encontrares alguém na rua e não conseguires ter o discernimento que é a atriz ou o ator e que não é a mesma coisa da novela. É uma patologia, não consigo levar a sério.

“Continuo espantado com a quebra de compromissos de lealdade”

Como surge o desejo de fazer um programa como o “Som de Cristal”?
Surge no seguimento do “Deixem o Pimba em Paz” que era desta curiosidade que eu tinha de perceber como funcionavam os bastidores, as digressões e a vida destes cantores populares. Perceber que há ali uma dignidade e uma persistência, uma necessidade muito maior de provar o valor que têm. Ouve lá, os camarins deles são em casas de rações e muitas vezes nem sequer têm uma entrada para o palco a não ser pela frente onde está o público. Aquilo começa e há imensa gente com cartazes, gente a cantar e a dançar, eu não consigo de deixar de sentir admiração por isso. Se me apresentassem um palco em que não tinha camarim, em que me tinha de me vestir num canto atrás de uma carrinha e depois ia atuar… Eu entrava em palco já derrotado. Esta gente não tem isso: “É para vestir ali? Bora lá. O público é isto, o palco é isto. As condições mínimas são estas, som e luz? Bora”. Eu acho isso admirável. Por isso é que me faz muita confusão quando vejo outros músicos mais privilegiados, digamos assim… houve um ou dois, muito específicos, que querem à força abafar e não dar espaço a este tipo de visibilidade e tipo de cantores. Demonstra uma tremenda insegurança, que a idade, a carreira não lhes mostrou nada.

[“Na Minha Cama com Ela”, Deixem o Pimba em Paz”:]

Nunca tinha concebido aquela realidade de como eles funcionam na estrada, especialmente o Quim Barreiros, aqui é de loucos. Já conhecia isso ou também ficou surpreendido?
Fiquei surpreendido com a quantidade de quilómetros que fazem. Eu faço muita tournée e cada vez que entro na A1 começa a doer a pele, a doer tudo no corpo. Eles fazem isso diariamente. Vão e voltam muitas vezes no mesmo dia, vão do norte ao sul. E estão sempre prontos para a batalha. Acho isso louvável, é uma lição. Sempre prontos para a batalha. Coisa que eu, por exemplo, não estou, sou muito mais picuinhas e aquilo foi uma espécie de lição de humildade. Não quer dizer que te tenhas de nivelar pelas mesmas coisas, não é isso, mas de facto aquela motivação, independente do sítio onde atuam, é uma coisa muito inspiradora.

Pegando em trabalhos que fez no passado, como “Último a Sair”, “Odisseia”, a peça “Actores” [de Marco Martins, que esteve em cena no Teatro Municipal São Luiz no início do ano], e agora a “Sara”, porque é que tem essa necessidade de falar do meio?
Interessa-me este lado de ver o engenho a funcionar. De ver a máquina e ver como as coisas funcionam. Interessam-me os preconceitos que as pessoas têm em relação ao cinema português, há um preconceito de outras pessoas em relação à novela, há um preconceito em relação ao teatro, há um preconceito em relação à publicidade, há um preconceito em relação às pessoas que usam as redes sociais para promover o que quer que seja. Eu, provavelmente, embarco em alguns desses preconceitos, embora não me orgulhe. São fases. Neste momento interessava-me muito, acima de tudo, fazer uma coisa que fosse uma espécie de fato à medida da Beatriz [Batarda], era uma coisa que eu queria muito fazer. E foi-se tudo, quando surgiu a ideia daquilo ser sobre uma atriz que a certa altura seca, porque não quer chorar ou não consegue chorar. Pelo caminho, sim, tens reflexões que são minhas, do Marco Martins também, do Ricardo Adolfo, que envolvem toda a gente, não só quem faz mas também quem vê.

"Fico sempre espantando com a capacidade que as pessoas têm de sabotarem o que está planeado" (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Que preconceitos são esses?
Grande parte do preconceito do cinema português é culpa de quem faz, mas também culpa de quem vê, que não se atualizou com o que foi acontecendo. E não foram feitas as pazes com o público. O preconceito que havia com a novela… Um ator que fizesse novela… havia encenadores que crucificavam atores que fizessem novela, porque achavam que o teatro é que era puro, não percebendo que as pessoas no final do mês têm de pagar contas. A novela hoje em dia já é uma coisa feita com cuidado maior do que era, e já vês alguns atores a fazer novela que antes não vias. Há uma evolução, mas também há a preguiça mental de pessoas que não querem evoluir. E paralelamente, o “Sara” é uma reflexão sobre o que acontece no nosso meio, é uma homenagem não só aos atores, mas também às outras pessoas que estão envolvidas, que muitas vezes têm de se multiplicar em várias coisas, para de manhã estarem a fazer novela, à noite estarem no Teatro Nacional a fazerem uma peça, à tarde vão fazer uma publicidade de voz, o que quer que seja. É uma vida muito esquizofrénica, e nos “Actores” já se refletia muito sobre isto. Desde que sais de casa até voltares, já foste várias pessoas. E quando chegas a casa és uma mistura de várias coisas, já foste um gajo jovem a fazer publicidade, à noite és um assassino numa peça, à tarde estiveste a filmar algo onde és um pintor. Essa capacidade de adaptação e como tu geres isto, e mais esta geração que agora depende muito das redes sociais, fascina-me. No outro dia um amigo contou-me que em novela há uma espécie de disciplina, de como os atores devem partilhar coisas nas redes sociais. É algo que me fascina, um ator ser avaliado pela forma como mete coisas no Instagram. Esta nova ideia, que é uma coisa que não me consegue entrar na cabeça: representar, redes sociais, followers, a publicidade que fazes, há muitas coisas a pesar, que fazem de ti um artista de sucesso. A ideia de sucesso é muito relativa, para mim isso representa o pavor, para outras é o sucesso.

Marco Martins pergunta “o que é ser ator?”: Bruno Nogueira ou Nuno Lopes explicam

Encontrou resistência dos atores para participarem na série “Sara”?
Não, comovo-me sempre quando as pessoas se conseguem distanciar da imagem, ou seja, conseguem ver além do óbvio. A personagem da Rita Blanco é uma personagem que critica as pessoas que fazem novela e ela faz novela. E ela é uma pessoa muito inteligente e segura: “É para gozar comigo, vamos lá!” Não é só gozar, é brincar com a ideia que possam ter de mim. Com isso fico sempre espantado pela positiva. A começar logo pela Beatriz, é uma posição, ela percorre cinema, publicidade, televisão, vai a tudo, e é sempre muito delicado, no fundo estás a passar revista a todos os meios, não estás especificamente a falar da novela, nem do teatro, nem do cinema português, estás a ir a todos, porque todos eles são risíveis de um ponto de vista porque se levam demasiado a sério em determinadas alturas. E tudo o que é suposto ser levado a sério, é muito frágil. É fácil desconstruíres essa seriedade.

A “Sara” esteve prevista para ser estreada na RTP1 mas passou para a RTP2. Se soubessem isso de antemão, teriam feito as coisas de forma diferente?
O que faríamos de forma diferente… se calhar não tens de ajustar tanto os tempos a um canal… Na realidade, em bom rigor, os ajustes seriam muito pequenos. O único é por uma questão de transparência. Se te estão a convidar para uma RTP1, de repente informam-te que é uma RTP2 por questões financeiras muito pouco transparentes na altura, é só uma questão deselegante. O que me choca não é ser na RTP2, na RTP2, as pessoas que querem ver, vão lá ver. O que me continua a espantar é esta facilidade com que os acordos escritos e de cavalheiros são quebrados. Não sendo isto a total prioridade da minha vida, continuo espantado com a quebra de compromissos de lealdade. É só isso que me choca, é eu fazer um acordo contigo, dizer “André, vai acontecer isto e isto”. E no dia a seguir digo “afinal a entrevista não é de uma hora e meia, é de quinze minutos”. E tu tinhas organizado a tua vida de outra maneira, tinhas dito ao editor que era outra coisa. É só uma questão de honestidade intelectual. Nisso sou muito inocente, fico sempre espantando com a capacidade que as pessoas têm de sabotarem o que está planeado.

"Eu tinha uma árvore em casa, que era uma maracujá que dava duzentos maracujás por ano, que morreu. Fiquei a bater mal durante uma semana. Estava lá desde que a minha filha mais nova nasceu, era muito visível na casa porque cresceu connosco enquanto família lá."

A desilusão de quebrar acordos, portanto.
Eu não queria reduzir a série a este problema, mas é como te digo: quando um canal te convida para fazer uma coisa num sítio, é para esse sítio que estou a escrever, é para esse sítio que estou a convidar os atores, é nesse sítio que os atores vão dizer aos canais onde estão, é para esse sítio que a equipa de realização, edição, montagem, está a trabalhar. Portanto, não é justo, depois de estar tudo feito, informarem-te que afinal vai ser noutro sítio, porque financeiramente aconteceu A, B ou C. Isso não é um problema meu. A única coisa que me interessa é que aquilo que foi acordado não foi cumprido. Isso não deixa de ser uma desilusão. Não tem a ver com “nós somos bons para a 2”, não tem nada a ver com isso, até acho engraçado passar na 2. Mas esta falta de compromisso, desilude-me. Relembra-me porque é que eu faço televisão tão espaçadamente. Quando acontecem coisas destas, penso que vai correr tudo bem. E de repente há uma coisa destas e eu penso: “É por causa disto que fazes uns períodos de pousio”. Consome-me muito, energia que não devia consumir, porque estás a cumprir a tua parte, não há razão a para outra parte não cumprir a dela.

“Vou para os hortos e fico muito tempo a falar”

Interessa-lhe fazer papéis que fujam ao humor, que sejam mais dramáticos?
A primeira vez que faço um papel trágico, no teatro, é com a Beatriz. A primeira vez que saio da minha zona de conforto foi a Beatriz que me convidou para o “Azul Longe Nas Colinas” no Teatro Nacional em 2011. Era uma coisa que não sentia necessidade de fazer, não tenho nada essa espada em cima da cabeça, como fazes mais comédia, tens de provar às pessoas que fazes outras coisas. Mas como tinha sido alguém externo a mim a convidar-me, achei “porque não?”. Foi uma experiência importante para mim, pessoalmente, profissionalmente, desafiou-me para coisas que eu não sabia que conseguia concretizar. E é engraçado eu depois desafiar a Beatriz para um campo que não é de conforto dela, que é a comédia. Mas já fiz várias personagens que não tinham a ver com comédia.

Mas a forma como interpreta as suas personagens dispõe-se muito a isso.
Em teatro já fiz várias que não são comédia. Estimula-me… o que me leva a aceitar é o grupo de pessoas que me leva a fazer e o texto.

Há uns tempos ouvi-o numa entrevista a falar de um lado seu mais relacionado com a natureza. De onde é que isso vem?
Vem do meu pai. O meu pai tem de estar sempre em contacto com a natureza. E tem pequenos pavores, se ele vê uma folha seca tem de a tirar, não descansa enquanto não tirar uma folha seca de uma árvore ou de uma planta. E era uma coisa que para mim, durante muitos anos, era motivo de riso. E depois com o tempo, a genética, calculo eu, comecei a interessar-me e a descobrir um prazer enorme em árvores, plantas, jardins, no tempo que isso ocupa, no estado de espírito mental que isso te deixa, na ausência de problemas que isso te traz. São problemas muito relativos, que se prendem com folhas caducas ou com…

"Plantei outro maracujá, porque aquele morreu. Plantei uma coisa que se chama limão caviar, nome fascinante" (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Problemas muito relativos mas que têm o seu quê de trágicos.
Trágicos, sim. Eu tinha uma árvore em casa, que era uma maracujá que dava duzentos maracujás por ano, que morreu. Fiquei a bater mal durante uma semana. Estava lá desde que a minha filha mais nova nasceu, era muito visível na casa porque cresceu connosco enquanto família lá. Tinha três ou quatro anos. Tenho uma relação afetiva que me descansa muito e me dá uma tranquilidade que eu preciso, esta coisa de te desligares por completo.

E faz isso diariamente?
Não faço com a frequência que gostava, há períodos de trabalho em que estou mais ocupado. Mas há umas fases na minha vida, em que estou em pousio durante uns meses, e aí entusiasmo-me a fundo. Mas não há dia que não tire uma folha seca.

Mas estuda sobre as árvores?
Não estudo, sou daquelas pessoas que dentro da minha cabeça tenho para aí oitenta anos, então vou para os hortos e falo com os senhores e as senhoras sobre aquela árvore, qual o melhor sítio para pôr as árvores, se é uma árvore de sombra, se tem folha caduca, se a folha dura, qual o tipo de planta. Fico muito tempo a falar.

E o que está a plantar?
Plantei outro maracujá, porque aquele morreu. Plantei uma coisa que se chama limão caviar, nome fascinante. É um mini pepino e os gomos são pequenas gomas que parecem caviar.

E gosta do trabalho manual que exige?
Sim, isso é o mais desafiante. De repente passas uma, duas horas e não te apercebes. E é uma terapia boa, tem esse contacto terra-a-terra, passe a redundância, de te veres mesmo obrigado a desligar. E há várias coisas que me ajudam quando estou com coisas… fico a pensar nas coisas, a marrar contras coisas. Andar a pé ajuda-me muito. Outra coisa que me ajuda é ficar ali, a esperar que esteja num dia que consiga entrar naquele vortex. Há dias em que percebes que nem aquilo te salva, mas quando consegues entrar nesse vortex, é muito bom.

Agradecimento: Cinema São Jorge

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