Por vezes o absurdo convive com a realidade; noutras é realidade que é tão absurda quanto inclassificável. Em palco — e no teatro — tudo isso pode suceder. E muitas vezes é o texto e os seus criadores que geram um efeito de espelho para com o público que vê. A humanidade também se faz representar, mesmo que de forma paradoxal ou incoerente. Pode até haver uma fanfarra de músicos desconcertados em palco que nos dá uma banda sonora para a vida, ou um simples pianista que tenta rir do que toca, mas apenas consegue chorar. É nesse caos trágico-cómico de subtileza que vive o espetáculo “Outra Bizarra Salada”, com direção e dramaturgia de Beatriz Batarda, encenado por Mariana Lobo Vaz, com Bruno Nogueira e Rita Cabaço como protagonistas e também com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, conduzida pelo maestro Cesário Costa. Estreia-se este sábado, dia 18 de fevereiro, no palco do Teatro São Luiz, em Lisboa.
O espetáculo marca o regresso ao universo do comediante e autor alemão Karl Valentin, que Beatriz Batarda já levou à cena há 12 anos, também com Bruno Nogueira e, na época, com a atriz Luísa Cruz. Volvida mais de uma década, o ator divide o palco com Rita Cabaço e os dois assumem os papéis de destaque numa criação que tem tanto de poético e triste como de feérico e crítico, com um humor e sátira impressos nos jogos de palavras, nas influências do dadaísmo e do expressionismo sobre o absurdo, assim como no repertório musical. Fala-se de uma orquestra em convulsão artística enquanto tenta acompanhar uma revolução cultural; de uma maestrina à beira de um ataque de nervos e de um músico que perde a pauta e passa de violinista a trombonista a percussionista; das marcas deixadas pelo medo; de rotura de padrões com humor e amor. Motivos mais do que suficientes para uma conversa com os protagonistas em torno do processo de criação e interpretação, que nos evoca um olhar sobre o mundo atual, aparentemente mais vertiginoso.
A guerra, a pandemia e um certo ar de crise permanente funcionam como caixa de ressonância para o que é trágico e, simultaneamente, hilariante. “Nos tempos que correm, diria que é através do absurdo que melhor se representa a humanidade”, diz Rita Cabaço ao Observador. Mas a soma de tragédias em palco e a forma como se relaciona com a realidade leva-nos mais longe, numa conversa sobre as urgências geracionais, o ensino das artes nas escolas e os desafios que os atores enfrentam hoje para poder singrar, no teatro ou fora dele. Entre a relação de amor-ódio com o teatro de Bruno Nogueira e o sustento por vezes precário através do palco de Rita Cabaço, há uma partilha de cena e de momentos irrepetíveis, que ambos têm vivido juntos através da amizade e do respeito mútuo.
Este espetáculo é, como diz o título, uma bizarra salada à qual não se é indiferente quer se esteja a regressar a ela, quer se esteja a entrar?
Rita Cabaço (R.C.) – É um universo muito particular, muito próprio e que, apesar deste projeto me dar a oportunidade de ter esse primeiro contacto e ir conhecendo este tipo de texto e a forma de o representar, sinto que ainda são só pistas. Apesar do completo e profundo trabalho que a Beatriz [Batarda] faz connosco de compreensão de texto, sinto que ainda não tive tempo suficiente. Tivemos três semanas para levantar este espetáculo. Sinto que ainda não conheço aquilo que gostava de conhecer e que quero conhecer no futuro. Acho que é um universo fascinante pelas suas figuras, pelo tipo de humor, cheio de mensagens e códigos. Pessoalmente, sou muito fã desse tipo de teatro, só tenho pena que seja tão curto o tempo, que apesar de tudo tem sido incrível.
No caso do Bruno, já não é um universo novo, há 12 anos encenou alguns destes textos, também no São Luiz.
Bruno Nogueira (B.N.) – Mas ainda assim é muito diferente. Há 12 anos que separam a primeira vez que fiz Karl Valentin. De certa maneira é um espetáculo diferente, também porque estou num sítio diferente e tenho uma outra forma de olhar para estes textos. A confiança e a segurança com que os faço também foi mudando, as inseguranças ficaram alojadas em sítios diferentes. Mas não deixa de ser uma abordagem completamente nova. Claro que há uma memória do que foi feito, mas como também estou a fazer textos que a Luísa [Cruz] fazia e a Rita está a fazer textos que eu fazia, torna-se mais desafiante e faz com que não o veja como uma reposição, mas sim uma reinterpretação. É levantar um espetáculo de novo, mas indo pela raiz.
Já tinham passado pelos textos do Karl Valentin?
B.N. – Já conhecia algumas coisas. Não é algo fácil de representar. Não considero que seja uma coisa óbvia a forma como me aproprio destes textos e os torno meus. Para mim não foi fácil. Talvez na “Fanfarra” que, apesar de tudo, é uma comédia de enganos, mas depois começa a ir para um sítio de absurdo, trágico e romântico que nem sempre é fácil para se acertar o fiel da balança. É uma linha muito ténue entre fazer e… basta um centímetro ao lado e aquilo pode deixar de fazer sentido. Dentro do caos há uma lógica, mas há que saber apanhar bem a corrente, caso contrário fica só vazio. Havia coisas que lia e nessa primeira leitura pensava “é muito difícil de conseguir entrar nisto”. Mas há medida que vamos entendendo quem era a pessoa por detrás daquilo, começamos a descobrir subtilezas que depois ao representar já não criam essa distância com o público.
R.C. – Na primeira parte, acho que é mais fácil de ser interpretado até por estar muito sustentado com um jogo entre duas pessoas. Na segunda parte há uma estranheza muito grande. Estamos a falar de uma figura em palco que não é naturalista. É estranha, absurda e que diz coisas que realmente têm uma lógica traduzida em palavras por vezes soltas e bizarras. Nos tempos que correm, diria que é através do absurdo que melhor se representa a humanidade.
A figura do Karl Valentin é a de um clown, que pega no expressionismo e no dadaísmo, vanguardas próprias da sua época.
R.C. – Sim. Quando vejo as criações e os filmes do Roy Andersson, por exemplo, vejo naquelas figuras completamente grotescas e absurdas, a dizer muito pouca coisa, mas nas quais se vê o mundo inteiro. O comportamento das pessoas e da maneira como elas se relacionam. A falta de sentido no ciclo… as coisas repetem e repetem e nós continuamos aqui sem grande noção disso mesmo. O mesmo acontece com o Karl Valentin e todo aquele jogo de expressão.
O absurdo tem sempre alguma ligação com a realidade?
B.N. – Cada pessoa tira uma coisa diferente do espetáculo, mas há um caos e uma tragédia, acima de tudo, que é inerente a toda a boa comédia. É assim pelo menos que vejo a coisa. Para mim, o grande segredo é que se for trágica a forma como se encara, pode ser cómico de tão ridículo que é.
R.C. – Para quem vê, numa certa distância, a tragédia pode ser profundamente divertida e hilariante.
B.N. – Pelos assuntos abordados e pela forma como se estão a dizer certas coisas, pela repetição ou pelo absurdo, acaba por ser cómico. Mas para quem está a fazer, para a personagem, aquilo é profundamente trágico.
Beckett, ao ver uma das encenações de Karl Valentin, terá dito simplesmente “rimos tristemente”.
B.N. – Pois, lá está. Em todos os bons clowns existe isso. No Chaplin, por exemplo, ou noutros comediantes mais brilhantes. Há uma tragédia no olhar e na vida daquela pessoa que é hilariante, quase de uma maneira perversa, para quem vê. E acho que não nos rimos da tragédia. Rimos porque a sucessão de tragédias é tão grande que o único escape que existe é rir, porque, de resto, tudo o que está a acontecer é completamente absurdo. É uma soma de tragédias que provocam tanto sofrimento que, por alguma razão perversa, se torna divertido.
Podíamos falar do Andy Kaufman, por exemplo.
B.N. – A comédia do Kaufman é profundamente trágica e hilariante. A maior parte das vezes é só uma pessoa aflita.
R.C. – Em queda!
B.N. – Num abismo. É uma vertigem para a pessoa, sem ter a noção que está disposta a muita coisa para se salvar. Gosto muito disso, porque acho que a comédia e a tragédia andam sempre próximas, de mãos dadas. É só uma questão de volume. E porque a angústia é uma coisa profundamente contemporânea.
“A queda e a falha, ou a vertigem, são premissas interessantes de serem trabalhadas nas personagens. É aí que está o gatilho. Enquanto atriz, é interessante encontrar esse lugar de queda. E enquanto espectadora também.”
Com a Rita há um maior reconhecimento em torno dos papeis dramáticos. Estas personagens, mesmo que cómicas, não deixam de ter esse peso do dramatismo?
R.C. – É como diz o Bruno. Para nós, enquanto atores e atrizes, fazer isto pode ser muito divertido, mas para a personagem se for muito divertido pode não ser tão cómico para quem está a ver. Neste caso, quanto mais trágica for a situação e mais verdadeiro é aquilo que está a viver, mais as pessoas poderão achar divertido. E sim, acho que a queda e a falha, ou a vertigem, são premissas interessantes de serem trabalhadas nas personagens. É aí que está o gatilho. Enquanto atriz, é interessante encontrar esse lugar de queda. E enquanto espectadora também.
B.N. – Ver uma colega em queda [risos]. Ver alguém a fazer um casting para o mesmo papel que tu.
Também é um espetáculo onde é fácil perder o controlo da personagem?
R.C. – É um risco, mas conhecemo-nos bem os dois. Há gatilhos que cada um tem e conhece e podemo-nos distrair. Mas neste espetáculo isso não funciona. Não é interessante haver esse desmanche e o público perceber que me estou a divertir.
O Bruno costuma dizer que não regressa aquilo que já cumpriu a sua função. Mas o mundo mudou, há uma guerra na Europa, uma pandemia pela qual passámos. Há uma função ainda por cumprir com estes textos?
B.N. – Sim, havia várias coisas que me davam vontade de voltar a estes textos. A primeira de todas é que há 12 anos houve coisas das quais não desfrutei o suficiente. Acho que estava demasiado preso e a tentar cumprir o melhor possível e muito menos disponível para arriscar e descobrir coisas novas. Depois também o facto de haver esta possibilidade de, anos mais tarde, fazer com a Rita, que é mais nova. Na altura eu era o mais novo. A Luísa e a Rita são duas pessoas que admiro muito, de gerações diferentes, e era uma maneira de ver como é que era agora. Depois, fazer isto no São Luiz, é difícil dizer que não, porque é um sítio do qual tenho muito boas memórias e o convite da Aida Tavares, que é uma pessoa muito especial no meu trajeto profissional e ter a Beatriz a encenar novamente, mais uma vez com um olhar diferente. E depois, claro, esse contexto que é muito distinto, pós-pandemia, durante uma guerra. Cruza-se mais com o universo da Karl Valentin e de quando estes textos surgiram. Há um contexto muito mais real.
Há 12 anos estávamos em plena crise.
B.N. – Sim, estávamos com a Troika, mas não havia estas ameaças de fim do mundo que surgiram tantas vezes nos últimos tempos. Uma espécie de iminência de pré-Guerra Mundial. A mistura disso tudo fez com que sentisse que tinha mais a ganhar do que a perder em experimentar. Só não gosto de regressar a séries ou a peças que cumpriram o seu destino. Neste caso, o que me dá pena é poder brincar por pouco tempo. Estes espetáculos, principalmente no campo da comédia ganham com o tempo e com a ideia de se poder regressar ao mesmo sítio.
Rita, passou pelos Artistas Unidos, esteve em peças do Luís Miguel Cintra. E foi ele e o Jorge Silva Melo que, de alguma forma, nos introduziram ao Karl Valentin, em 1979.
R.C. – Com o Jorge Silva Melo foi uma breve passagem, com um espetáculo, quando ainda estava no conservatório. A experiência que tive de trabalho foi breve. Com o Luís Miguel foi uma experiência bastante mais longa e mais aprofundada e rica. Quando estava na Cornucópia vimos juntos os vídeos do “E Não se Pode Exterminá-lo?” e foi muito impactante de ver. Havia momentos geniais de construção daquele boneco, que não é um boneco, como das próprias cenas. Toda a minha experiência na Cornucópia foi uma outra escola. Era muito nova e fui logo assim conviver com aquelas pessoas. Mesmo nos ensaios de mesa, éramos jovens a tentar acompanhar todo aquele pensamento.
Quando a Cornucópia decidiu encenar textos de Karl Valentin, escreveram num texto, uma espécie de manual para os atores que interpretam. Diz o seguinte: 1.º Não representar; 2.º Não há psicologia, há um discurso filosófico contínuo (Valentin cultiva o paradoxo); 3.º Não se trata de revista. (…) 8.º Todo o momento é concreto e realista. Não há “teatro” (e não há quarta parede porque também não há primeira, nem segunda, nem terceira… ) 9.º Não há “boneco”. Há que trabalhar na alma aquela luz a que os cristãos chamam “o estado de graça” e os cómicos deveriam chamar “o estado da graça”.
B.N. – Interessante isso! Com as devidas distâncias, são as interpretações que cada pessoa faz do Karl Valentin, mas eu percebo, e tendo visto também o “E Não se Pode Exterminá-lo?” faz bastante sentido. Diria que a nossa abordagem é diferente no sentido em que não se pretende fazer uma cópia, mas de facto a abordagem que fizeram era muito moderna para a época e muito refrescante. Confesso que não vi praticamente nada nos últimos tempos mesmo para me distanciar. Para o bom e para o mau, podemos ficar reféns de uma coisa que pode angustiar e ninguém fica a ganhar.
R.C. – E é engraçado ver nestas figuras, que não são nada naturalistas e são construídas de alguma forma, a humanidade que elas têm. Acho que a dificuldade pode ser a de encontrar nelas essa humanidade de uma forma que não é a nossa. Nós vemos isso, naquilo que o Jorge Silva Melo e o Luís Miguel Cintra escreveram e fizeram.
“As crianças são ensinadas desde muito novas que o teatro é algo que até os adultos estão muitas vezes reticentes a ir ver, portanto é difícil começar a abrir esse caminho. Não levaria as minhas filhas a ver nenhuma peça que elas veem na escola.”
Indo agora à vossa partilha de palco. Já não é a primeira vez que trabalham juntos. Estiveram no “Atores”, do Marco Martins, no “A Matança Ritual de Gorge Mastromas” e no “Princípio, meio e fim”. Como é que está a vossa relação?
R.C. – Nunca esteve pior! Estou a brincar… É um prazer trabalhar com o Bruno e poder conviver com ele. Conhecemo-nos no teatro, mas tivemos a felicidade de manter contacto e criar uma amizade, que continua até hoje. Por isso sempre que nos cruzamos em cena é uma alegria. É alguém com quem posso trabalhar e aprender e jogar, mas com cumplicidade. Sei que tenho alguém do outro lado, sei que eu bato a bola e ele bate de volta. Isso é muito divertido, mão deixando de ser imprevisível. Lá está, surge também porque nos conhecemos bem e sem haver esse medo de falhar.
B.N. – Tenho poucas pessoas na minha vida profissional com quem esteja disposto a arriscar e a ir a sítios mais perigosos. A Rita é uma delas. Quando a conheci percebi logo que era um bicho no bom sentido, uma pessoa cheia de carisma, com uma linguagem muito própria, um talento a explodir. Mas não sabia como era pessoalmente. Por vezes, conhecemos pessoas em contexto de trabalho, mas sem o tempo devido, e pensamos “era tão bom que esta pessoa ficasse na minha vida”. Só que isto não é um trabalho normal. Há pessoas com quem estabelecemos uma grande química, mas que depois não vemos durante um ou dois anos. Lembro-me de pensar que no caso da Rita era porreiro que ela ficasse e ficou. E ainda bem, porque primeiro faz com que seja uma grande alegria trabalhar e depois podia ser só aquilo que acontece muito, que é “epá, aquele tipo é um canastrão, mas é tão porreiro de trabalhar”. Mas com os anos também vemos as coisas de outro ponto de vista e nem sempre as relações pessoais se traduzem em boas relações profissionais. Com a Rita não preciso dessa explicação porque não há nada que se possa dizer em relação ao seu talento.
Hoje é mais simples haver um cruzamento nas preocupações geracionais?
B.N. – É curioso. Na minha vida sempre tive uma maior proximidade com pessoas mais velhas porque era nelas que encontrava, de alguma maneira, uma sintonia. Comecei muito novo, a trabalhar profissionalmente com 19 anos, e, portanto, as pessoas que eu queria ser eram todas mais velhas e sempre me senti muito confortável. A partir de momento em que se começa a ficar mas velho, continua a ser isso, mas de repente há pessoas mais novas nas quais não vejo a idade. No caso da Rita vejo uma geração que vem a seguir à minha, com uma visão diferente numa série de assuntos, mas que me acrescenta. Acho que é mais mérito dela do que meu, mo sentido em que a Rita não está a tentar impor a sua geração sobre as outras e esse é sempre o segredo para qualquer geração. Quando conseguimos que a idade se dissolva e todos passam a ser apenas pessoas, mesmo com pontos de vista diferentes, alimentam-se uma à outra, sem comprometer o pensamento de cada um. Olho para a Rita com curiosidade sobre o tudo o que possa vir dela, porque em ultima analise é só uma pessoa de quem gosto e com muito talento.
Digo isso também por uma série de temas que marcam a nova geração, desde a cultura do cancelamento à precariedade nas artes. É fácil estabelecer diálogo?
R.C. – Acho que sim. Tal como o Bruno, também sempre me habituei a conviver com pessoas mais velhas. Apesar de estar sempre acompanhada por pares da minha geração, com os quais construi o Teatro da Cidade, onde há esse lugar de pensamento e criação, com cinco cabeças da mesma geração e com urgências semelhantes… apesar disso, convivi sempre com pessoas mais velhas e por isso nunca senti ou nunca pensei na idade no que toca a forma de pensar diferentes. Todas as gerações pensam sobre o mundo, mas lá está, é riquíssimo quando se estabelecem pontos de diálogo e é um privilégio quando temos essa oportunidade de partilha e de convívio.
A Rita também tem estado na televisão e no cinema. Há todo um percurso que já não se fica apenas pelo teatro.
R.C. – Tenho muita sorte. Tive muitos colegas no Conservatório que tinham imenso talento e que realmente não têm as devidas oportunidades. Não existem ou não chegam as que existem. Digo isto da sorte porque se calhar estava no lugar certo à hora certa e fui ganhando visibilidade. Conheci muitas pessoas diferentes que me ensinaram e que me continuam a ensinar muitas coisas, tanto no teatro como na televisão. Não deixa de ser um luxo poder continuar a sustentar-me a partir do teatro e continuar com trabalho. No caso da minha geração, é uma pena não haver mais esta cultura de audição e é uma pena que a própria DGArtes não apoie isso. Porque posso fazer uma candidatura, escrever lá que quero fazer audições e ser penalizada por isso. Mas a verdade é que se tivéssemos mais audições, íamos ter toda uma diversidade e um leque de pessoas diferentes, o que era uma mais valia para os projetos e os criadores. E se calhar existia mais justiça na forma como os atores e as atrizes surgem.
No caso do Bruno, o teatro não deixou de ser uma parte importante, sobretudo desde há 12 anos.
B.N. – Na verdade, eu começo pelo teatro. A televisão e o stand-up aparecem por acidente, mas quando fui parar à televisão encontrei grande prazer nisso e em criar coisas que gostava de ver como espectador e que não encontrava. Tenho uma relação de amor-ódio com o teatro. De amor quando, por exemplo, chegamos a este dia e as pessoas começam a montar as luzes, o cenário… adoro toda esta energia e todos aqueles clichés da magia do teatro. Há de facto esses momentos irrepetíveis, às vezes mais de bastidores do que de palco. Mas depois as condições que são dadas ao teatro, o tempo que podemos ficar em cena que é cada vez mais reduzido, o pouco dinheiro que há para fazer teatro, são cada vez mais aspetos que provam como só o podemos continuar a fazer se tivermos outros meios de subsistência. Quem viva exclusivamente do teatro é um herói e um mártir. É uma pessoa que tem uma utopia de que tudo vai mudar. Por isso é que a minha relação é, muito friamente, de amor e ódio. Há alturas em que adoro, há outras em que não o posso ver à frente. Revolta-me esta coisa de, volta e meia, se estar no limite de pagar para fazer. Principalmente as pequenas companhias que tentam viver das suas criações. Por isso é que as pessoas começam a optar por outros caminhos, com os quais nem sempre se identificam, mas que pagam as contas.
E há uma primeira criação teatral a caminho?
B.N. – Muito honestamente, é algo que ando a adiar há imenso tempo. Acho que pelo medo, não há outra razão que encontro. Porque cada vez que começo a tocar nesse assunto, ou me convidam fico na defensiva. Na verdade, ando a boicotar-me. Não há uma data, mas é uma coisa que está presente na minha cabeça e há desafios muito simpáticos que me fazem, mas acho que estou à procura de ter um tempo para me dedicar a isso, com essa disponibilidade física e mental. Tenho a sorte de poder não ceder ao tempo.
O Karl Valentin tem um texto, que não está neste espetáculo, sobre o facto de as pessoas não irem ao teatro. Defende, ironicamente, que o teatro seja como a escolaridade obrigatória.
B.N. – Não acho que deva ser obrigatório, mas há uma responsabilidade que às vezes não é cumprida por parte do ensino. Os professores são heróis, estão a ensinar coisas a pessoas que não querem; fazer com que uma pessoa queira saber de matemática… boa sorte! Mas há aqui duas questões: uma delas prende-se com a alimentação. A educação alimentar nas escolas é terrível e é o que define muitas vezes adolescências trágicas ou complicadas que têm a ver com a luta com o corpo, porque não há essa preocupação. Para mim isso é mais importante do que Estudo do Meio: o que é que, quando chega a altura de almoçar, as crianças comem e como é que as ensinam a comer, porque muito pouco jovens sabem comer. A outra tem a ver com a cultura. Acho que não há um estímulo na escola que faça uma ligação direta com a cultura. Continuamos com alguns espetáculos em que as pessoas ficam traumatizadas. Vão ver logo o Gil Vicente…
Começam mal?
B.N. – Não é que o espetáculo seja mau, mas está-se demasiado preocupado em responder a um programa e se calhar tem é de se levar as pessoas a outro tipo de espetáculo, mais provocador, para que saiam de lá a pensar “bem, isto é incrível, pode-se fazer isto em teatro?”. Acho é que as crianças são ensinadas desde muito novas que o teatro é algo que até os adultos estão muitas vezes reticentes a ir ver, portanto é difícil começar a abrir esse caminho. Não levaria as minhas filhas a ver nenhuma peça que elas veem na escola.
Valia a pena enviar este ou outro texto do Valentin a algumas pessoas?
R.C. – Acredito que sim. Valia a pena enviar e ler, até porque aquilo que ele passou e de que ele fala não é distante daquilo que estamos a viver neste momento. Mas como diz o Bruno, não podemos dizer “venham ao teatro”. Nós não temos nada a ensinar. Eu, Rita, não vou estar a dizer como é importante vir ao teatro. A pessoa tem de vir se achar bem, mas a solução parte mesmo da educação e da criação do hábito como se vê noutros países. E não é em adolescente, é mesmo logo em criança. É assim que se cria público, que vai saber como o teatro os pode preencher.
B.N. – A partir do momento em que fosse obrigatório, toda a criança quereria fugir disso.
R.C. – É mesmo a ideia de programa, que está desatualizada. Temos de começar a dar visibilidade àquilo que realmente devia ser parte do ensino. O teatro irá ganhar com isso.