O Ministério Público não tem dúvidas. Analisando os quatro créditos originais de 439 milhões de euros concedidos ao grupo de Joe Berardo pela Caixa Geral de Depósitos e ainda o acordo quadro estabelecido em 2012 em conjunto com o BCP e o BES, conclui-se que nenhuma destas operações respeitou as regras internas da CGD para concessão de crédito. Mais: as condições sugeridas pela Direção de Gestão de Risco do banco público não foram respeitadas pela administração de Carlos Santos Ferreira, nem pelos seus sucessores.
O Ministério Público está a investigar suspeitas de corrupção de responsáveis da CGD que participaram na concessão de 439 milhões de euros ao empresário madeirense para comprar ações do BCP e de outras empresas cotadas no PSI 20 sem aparente racionalidade económica e com práticas que contrariavam as regras do risco do banco público.
São estes factos que estão na origem da imputação do crime de administração danosa a Carlos Santos Ferreira — o 20.º presidente da CGD e o primeiro a ser constituído arguido por práticas alegadamente ruinosas.
Outro dado: durante a administração liderada por José de Matos foram concedidas em 2015 e em 2016 duas livranças no valor total de 6,5 milhões de euros já depois de Joe Berardo ter falhado o pagamento de duas prestações que faziam parte do acordo-quadro assinado em 2012. O propósito foi precisamente esse: financiar o pagamento desses juros vencidos à própria Caixa para evitar que o Grupo Berardo entrasse em incumprimento.
Os créditos de milhões, a luta de poder e a queda de Berardo
A dura censura que o Ministério Público faz à concessão de crédito sob a forma de duas livranças de 6,5 milhões de euros e o facto de terem ocorrido em 2015 e 2016 — muito tempo depois de Santos Ferreira ter saído da Caixa — indicia claramente que os procuradores Inês Bonina (coordenadora da secção de crime bancário no DCIAP) e Pedro Roque estão a investigar outros responsáveis da CGD do tempo da administração de José de Matos.
Bancos censurados por não registarem imparidades
Não se pense, contudo, que o Ministério Público só censura a Caixa Geral de Depósitos. Os dois bancos privados alegadamente prejudicados por um suposto esquema de burla idealizado pelo advogado André Luiz Gomes para o seu cliente Joe Berardo também não saem bem na fotografia.
Para o Ministério Público, os três bancos (CGD, BCP e BES), que emprestaram um total de 1.141.110.709 euros através de 16 operações de crédito, chegaram a 2010/2011 mais como aliados de Berardo do que como credores desejosos de excutarem as garantias. Porquê? Porque os 439 milhões de euros emprestados pela Caixa, os cerca de 388.512.641 euros cedidos pelo BCP e os créditos totais de cerca de 300 milhões de euros concedidos pelo BES de Ricardo Salgado, e que praticamente não tinham sido amortizados por Berardo, eram um grande peso nas contas dos bancos.
Se fossem registados nas contas dos bancos como imparidades, isso levaria a elevadas provisões para as quais os bancos não tinham fundos.
Daí que o Ministério Público entenda que as reestruturações dos créditos de Berardo, nomeadamente do acordo-quadro assinado a 16 de março de 2012, visou mais camuflar na contabilidade dos três bancos a gravidade dos incumpriemntos de Berardo e também ocultar as decisões sem racionalidade económica que foram tomadas pelos responsáveis que colocaram na mão de Berardo mais de mil milhões de euros para comprar ações do BCP e entrar na guerra pelo poder no banco fundado por Jardim Gonçalves.
O foco da investigação, contudo, está na gestão da CGD e nos ex-administradores responsáveis pelo crime de administração danosa. Isto apesar dos prejuízos alegadamente causados ao BCP e ao BES também terem relevância no inquérito na parte do alegado crime de burla agravada que é imputada a Joe Berardo e ao advogado André Luiz Gomes.
E, no que diz respeito aos administradores da Caixa, o Ministério Público entende que há indícios de que o desrespeito das regras internas do risco estipuladas no banco público terá sido intencional com o objetivo de beneficiar ilicitamente o Grupo Berardo a troco de compensações cuja natureza ainda não possível identificar. Neste caso, há uma suspeita de corrupção que terá de ser esclarecida nos autos.
Carlos Santos Ferreira poderá ter mais crimes
Por outro lado, há uma questão particular relacionada com Carlos Santos Ferreira. Apesar de, para já, ser o único arguido pelo crime de administração danosa, Santos Ferreira é também censurado pelo Ministério Público enquanto presidente executivo do BCP — cargo que desempenhou entre 2008 e 2012.
Ao que o Observador apurou, o Ministério Público está a investigar igualmente as condições em que o BCP, já com Santos Ferreira como líder, aprovou créditos com o máximo de 12,5 milhões de euros.
Com efeito, e apesar de todas as dificuldades que Joe Berardo já tinha para cumprir os diversos contratos de crédito assinados com a Caixa, BCP e BES — e também da queda abrupta da cotação das ações do BCP, de mais de 4,14 euros a 30 de junho de 2007 para 0,845 euros a 31 de dezembro de 2008 —, o BCP de Carlos Santos Ferreira emprestou a 31 de março de 2009 mais 2,5 milhões de euros a uma sociede de Joe Berardo chamada Metalgest.
E a 1 de dezembro de 2010, e apesar de serem conhecidas as dificuldades financeiras da Metalgest, o BCP celebrou novo contrato de abertura de crédito até ao valor de cerca de 10 milhões de euros.
Tal como o Observador revelou esta terça-feira, o facto de Joe Berardo ter sido um dos maiores apoiantes de Carlos Santos Ferreira e de Armando Vara para a nova administração do BCP em 2008, e o facto de ter sido financiado pela CGD no tempo de Santos Ferreira como líder, são factos relevantes e conexos para o Ministério Público.
Isto ao mesmo tempo em que o BCP era o maior interessado em que os bens dados como garantia por Joe Berardo não fossem executados, porque tal obrigaria a registar imparidades muito significativas relacionados com os créditos cedidos ao empresário madeirense.
Só a Caixa registou imparidades de 124 milhões de euros relacionados com os créditos ao Grupo Berardo — mas só em 2015.
Berardo só pagou 95,4 milhões de 1.141.110.709 euros de créditos
Outro dos factos relevantes deste inquérito está relacionado com os valores dos créditos que Joe Berardo não terá pago aos três bancos, por via do alegado esquema de burla qualificada que o Ministério Público imputa ao empresário madeirense e ao seu advogado André Luiz Gomes.
De um total de 16 contratos de crédito no valor total superior a mil milhões de euros (1.141.110.709), Berardo apenas amortizou cerca de 95,4 milhões de euros. Ou seja, ainda está a dever cerca de mil milhões de euros aos três bancos. Os dados são estes à data de 28 de fevereiro de 2012:
Caixa Geral de Depósitos
— 4 contratos de crédito no valor total de 439 milhões de euros.
— Capital em dívida: 357.596.903 euros
Banco Comercial Português
— 8 contratos de crédito no valor total de 402.431.930 euros
— Capital em dívida: 388.512.641 euros
Banco Espírito Santo
— 4 contratos de crédito no valor total de 299.675.481 euros
— Capital em dívida: 299.525.866, 33 euro
Totais:
— Empréstimos de 1.141.110.709 euros
— Capital em dívida: 1.045.635.000 euros