A música deixou de tocar no festival Kalorama há praticamente dois meses, mas ainda corre nos corredores da Assembleia Municipal de Lisboa. Depois de, em julho, os deputados terem decidido descer, à 6.ª Comissão da AML, a decisão de apoiar ou não o festival, esta semana ficaram a saber que os 1,7 milhões de euros em isenções de taxas se transformaram em pouco mais de 360 mil euros. Isto é, sem qualquer informação prévia ou qualquer alteração de proposta realizada em sede de Câmara Municipal, a isenção de taxas calculada pelos serviços desceu para praticamente um quinto do valor inicial.
A informação foi dada aos deputados da 6.ª Comissão, pelo vereador responsável pelo pelouro dos Espaços Verdes, Ângelo Pereira, que acrescentou ainda que a revisão das taxas aconteceu depois da organização ter “contestado” o elevado montante. As taxas de “ocupação temporária do espaço público”, representavam a maior fatia dos 2,1 milhões de euros de isenções aprovadas pelo executivo lisboeta, ainda que na altura com muitas resistências, e foram revistas em baixa pela Câmara.
Festival Kalorama recebe 2 milhões de Lisboa. Câmara teve muitas dúvidas, mas aprovou apoio
Na audição em sede de comissão, a que o Observador teve acesso, Ângelo Pereira justificou o ajuste nas taxas com um cálculo mais exato da ocupação do espaço público.
“A organização explicou que na primeira semana ocuparia mais ou menos três mil metros quadrados, na segunda cinco mil metros quadrados e que o parque estaria totalmente fechado apenas quatro dias. Foi feito o cálculo com base na utilização por fases e por áreas”, afirmou o vereador que avançou também que o novo valor de 363.975,92 euros já tinha sido “depositado pela organização na tesouraria da Câmara Municipal”. Ao Observador, o gabinete do vereador esclareceu depois que o pagamento foi realizado no “dia 1 de setembro”, o dia de início do festival.
Já pela contínua ocupação do espaço público no Parque da Bela Vista, além da data inicialmente prevista, de acordo com os esclarecimentos enviados pela autarquia já depois da publicação deste artigo a organização do Kalorama terá que pagar “22.687,50 euros” que considera “33 dias” de”área ocupada e valor da taxa base”. Na quinta-feira, dia 27 de outubro, conforme testemunhou o Observador no local, ainda havia parte da estrutura do palco do festival a ser desmontada e o recinto do parque público vedado à população. O palco, que começou a ser montado a 10 de março, serviu de casa ao Rock in Rio e manteve-se no Parque da Bela Vista, mudando apenas de cara para o Kalorama.
Confrontado pelos deputados municipais e pelo próprio presidente da Junta de Freguesia de Marvila com essa ocupação, Ângelo Pereira afirmou que as taxas devidas por essa ocupação seriam “pagas pela organização” e que o atraso (já que a retirada do palco estava prevista até dia 27 de setembro) foi justificado pelo Kalorama com “dificuldades de recursos humanos na empresa dona do palco para proceder à desmontagem.”
Taxas de “ocupação temporária de espaço público” descem de 1.765.500 euros para 363.975,92 euros
As dúvidas sobre a entidade promotora do evento — e eventuais ligações ao festival Rock in Rio — e os elevados montantes em causa fizeram os deputados municipais adiar para depois da audição dos vereadores em comissão a decisão de validar ou não o apoio. Até lá, dadas as contingências de calendário com as férias de verão e a realização do festival no início de setembro, caberia ao promotor assegurar o pagamento das taxas que ascendiam a 1,75 milhões de euros, mas sem que a Assembleia Municipal fosse informada ou o assunto fosse levado a qualquer reunião de câmara o valor foi alterado.
Foi só durante a audição de Ângelo Pereira, a 20 de outubro, que os deputados municipais foram informados da redução para praticamente um quinto do valor de taxas estimadas pela autarquia, quando o protocolo e a proposta de apoios não financeiros da autarquia à primeira edição do Kalorama em Lisboa foi levado a reunião de câmara.
Ao Observador, em resposta escrita, o vereador justifica o facto de não ter levado o assunto novamente a reunião de executivo com o “senso comum” de que “um órgão disposto a isentar uma taxa maior, por maioria de razão, compreenderá a possibilidade de isentar um valor menor.”
Ainda que tenha adiantado aos vereadores que a redução de taxas aconteceu depois “da organização ter contestado” os elevados valores, Ângelo Pereira não esclareceu na audição se essa contestação tinha acontecido antes ou depois de a Assembleia Municipal ter adiado a decisão de apoiar o festival. Ao Observador, o gabinete do vereador Ângelo Pereira diz que as taxas foram novamente calculadas “a 17 de agosto” e que o promotor Kalorama foi informado no “dia 29 de agosto”, ou seja, dois dias antes do início do festival. Não tendo detalhado, na resposta, quando é que os organizadores do Kalorama “contestaram”, os novos cálculos só foram feitos a meio de agosto, três semanas depois de a proposta ter parado na Assembleia Municipal.
Durante a audição do vereador Ângelo Pereira, os deputados municipais dos vários partidos foram informados da redução do valor das taxas e demonstraram “surpresa” com a nova informação sobre as taxas, questionando a “diferença brutal de 4,7 vezes menos” de taxas a isentar.
A questão do novo cálculo das taxas arrastou-se também na audição da vereadora Joana Almeida, do pelouro da Transparência na Câmara, que aconteceu na última quarta-feira. O deputado da Iniciativa Liberal Miguel Ferreira da Silva considerou que os “erros” no montante das taxas deviam ter posto “em causa a legitimidade do projeto”.
“Não é normal dizer que há um erro que passa de 1,7 milhões em taxas para 0,3 milhões, sem contar com os serviços. Merece investigação. Sabemos que não foi um erro dos serviços. Cabe ao promotor calcular as áreas, se não estava bem cabe à Câmara Municipal apontar os erros ou a documentação estava errada ou alguém nos serviços não é competente de todo. Isto põe em causa a legitimidade do projeto”, apontou o deputado.
As restantes taxas, que dizem respeito aos consumos de energia e água e aos bens, serviços, meios humanos e unidade orgânica que a autarquia teve de suportar para a realização do festival não sofreram qualquer ajuste, apesar de ter sido ajustada a duração e dimensão do evento para calcular novamente o valor da taxa mais expressiva, da ocupação temporária de espaço público.
Assim, o organizador do evento “depositou na tesouraria da autarquia” 363.975 euros e a autarquia teve gastos estimados de 386.280 euros em água, energia e recursos humanos, onde se inserem por exemplo os meios da Polícia Municipal que foram alocados ao evento, de acordo com a proposta inicial que, de acordo com o vereador Ângelo Pereira na Comissão teve apenas ajuste no valor relativo às taxas de ocupação temporária do espaço público.
Ligações ao Rock in Rio questionadas. Contrapartidas para a cidade em suspenso
Além do vereador Ângelo Pereira, foi chamada à 6.ª Comissão da Assembleia Municipal de Lisboa também a vereadora Joana Almeida, que tutela o pelouro da Transparência na autarquia, com os deputados a questionarem as “ligações” do Kalorama ao Rock in Rio.
A deputada municipal Maria Escaja, do Bloco, apontou que a “empresa foi criada só depois da reunião com o vereador Ângelo Pereira” e que “falando-se em dois milhões de isenções para o Kalorama e três para o Rock in Rio” seria importante “perceber se serão cinco milhões atribuídos pela autarquia às mesmas pessoas, com empresas diferentes, mas outros nomes.”
A mesma preocupação foi, aliás, partilhada por vários deputados. Pela Iniciativa Liberal, Miguel Ferreira da Silva fez as mesmas contas e apontou que “as pessoas que efetivamente trabalham nos dois festivais e cobram por isso” podem ser “os beneficiários efetivos da isenção que chega aos cinco milhões”.
Na resposta, a vereadora Joana Almeida considerou que “não há nada errado” e que se trata de “duas empresas diferentes”, mas admitiu que os processos de isenção de taxas na autarquia “são tratados com pouca transparência” e que “essa realidade tem que ser mudada”.
“Não há nada de errado, são duas empresas e eventos distintos. Isso afirmo nesta 6.ª Comissão. Não há relatório de execução ou fiscalização às contrapartidas. Esta realidade tem mesmo que ser mudada. Daqui para a frente a transparência em relação a estes eventos vai ser claramente outra”, afirmou a vereadora Joana Almeida na audição que aconteceu na última quarta-feira.
O próprio Carlos Moedas, na reunião de câmara de julho teve dúvidas em relação ao apoio e à empresa promotora do festival. Ainda que a proposta tenha passado na reunião, Moedas deixou “garantias” de que ia esclarecer tudo sobre a “relação legal entre o Rock in Rio e o Kalorama”.
As dúvidas sobre a relação entre os dois festivais começam na partilha das infraestruturas (palcos e outras) entre o Rock in Rio e o novo Kalorama. Perante a dificuldade do executivo em esclarecer várias questões suscitadas durante a reunião de julho— já depois de dois adiamentos e um documento com esclarecimentos enviado aos vereadores — ficou o compromisso de esclarecer tudo antes da votação na Assembleia Municipal, o que nunca chegou a acontecer.
Com a suspensão da decisão na Assembleia Municipal sobre validar ou não o apoio ao festival, para já o cumprimento das contrapartidas acordadas no protocolo está também suspenso. O vereador Ângelo Pereira deu também conhecimento disso mesmo aos vereadores, durante a audição na comissão.
Entre as contrapartidas estão 15 mil euros para um “estudo para a criação de comunidade de energia renovável no bairro da Bela Vista”, 12.500 euros para um “estudo para renovação da rede de iluminação pública do Parque da bela Vista com tecnologia LED”, e 150 mil euros para a “comparticipação na construção da clínica para a recuperação de animais selvagens no Parque Florestal de Monsanto”, que ainda podem ser realizadas no futuro, mas a prevista “doação de materiais do evento para escolas e associações locais” ou a doação de “alimentos a famílias carenciadas” aos residentes na área de freguesia de Marvila, segundo o presidente da junta José António Videira ficaram por cumprir.
“O envolvimento da comunidade em 2022 não se concretizou. Não estive presente no evento e sei que a comunidade esteve de costas voltadas para o evento e nem sequer foi garantido bilhetes à população na zona envolvente do evento. A Junta de Freguesia não sabe doações de reefood ou doação de material às escolas”, apontou o autarca.
Foi também José António Videira que estabeleceu uma relação direta entre o Rock in Rio e o Kalorama, durante a audição do vereador Ângelo Pereira: “O que percebo é que os mesmos parceiros que discutem à mesa são as mesmas personalidades envolvidas no Rock in Rio”, disse. Na resposta, Ângelo Pereira disse “não ser de estranhar” uma vez que os promotores do Kalorama “contrataram as melhores pessoas, habituadas a trabalhar no parque da Bela Vista” rejeitando, no entanto, que haja qualquer ligação formal entre as duas empresas.
Artigo atualizado às 10 horas de dia 29 de outubro com as respostas enviadas pelo gabinete do vereador Ângelo Pereira. As respostas às nove questões enviadas à autarquia sobre o festival Kalorama só chegaram ao Observador já depois da publicação deste artigo.