Cantora, compositora, atriz, ex-modelo, ex-primeira dama e mulher do antigo Presidente francês, Nicolas Sarkozy, Carla Bruni está de regresso aos discos, depois de sete anos sem lançar um álbum de originais. O título do conjunto de treze canções é o nome da artista, das que se ouvem num “dia chuvoso com um copo de vinho ou no carro a caminho das férias”. Ou seja, é o regresso à superfície, depois de tempos com muita imprensa à volta da sua relação com Sarkozy, em redor dos escândalos de corrupção em que o ex-chefe de Estado francês esteve e está envolvido. “É política. Algo para impedir que o meu marido volte à política. No início houve imensos casos, agora há só dois. Vão morrer como os outros”, diz.
Nesta conversa com o Observador, Carla Bruni, sempre de riso fácil, sempre de resposta mordaz, confessa que nunca parou de escrever, só é mais lenta do que alguns dos seus pares, “que lançam álbuns todos os anos”. Mas é também neste estilo contemplativo, de alguém que parece resolvido com o passado, e de quem, desde os 19 anos, tem andado com os holofotes muito colados a tudo o que diz e faz, que confessa ter-se convencido de que o amor é algo individual, que não se encontra na sociedade, que não pode ser coletivo. E que até pode ser descoberto em plena era Covid-19.
Sobre o momento que vivemos, no meio de uma pandemia e onde o ódio tem sido mais espalhado do que o amor, a artista franco-italiana prefere afastar-se da política. Não dar opinião, não se comprometer, ao contrário de tantos outros artistas. “Vivo numa bolha. Sou uma sonhadora. Até enquanto o meu marido foi Presidente, mesmo nessa altura não tinha muito interessa na política”. A Carla o que é de Carla, por isso, vamos à música para não aumentar ainda mais o ruído (é que, lá para o fim da conversa, Bruni aproveitou para afinar a voz).
[“Quelque Chose”:]
Este novo álbum é intimista, simples, completamente contrário aos tempos que vivemos: de distância, onde há pouco ou nenhum toque. Porquê lançá-lo agora?
Lancei um álbum há três anos [French Touch], mas não o escrevi. Depois fiz uma tour longa. Ou seja, continuei a trabalhar. Só que voltei a escrever, escrever, escrever e quando tinha algumas canções procurei um produtor, encontrei o Albin de la Simone, que fez toda a produção e depois chegou a Covid-19. Este novo álbum tem uma energia que não se relaciona nada com a pandemia. Mas o vírus não nos parou. Todos queríamos trabalhar, até porque há pouco trabalho na música. As pessoas estão a morrer.
É um disco para ouvir num dia de chuva com um copo de vinho?
Sim. Num ambiente confortável e ternurento. Pode ser ouvido num dia chuvoso, ou no carro a caminho das férias.
Sente-se agora melhor escritora ou melhor cantora?
Tenho muita dificuldade em saber o que sou. Diga-me você: sou melhor cantora ou escritora? Ou está a fazer esta entrevista porque lhe pediram?
Não, de todo. Fui eu que tratei das perguntas.
É que é muito difícil para mim saber quem sou ou o quê. Não tenho julgamentos, isso não existe na minha vida. Quando me oiço fico confusa.
Porquê?
Não fica confuso quando ouve a sua voz?
Por vezes. Porque pareço mais velho.
Certo. Há uma distância ou uma intimidade connosco que torna difícil ter uma opinião objetiva. É melhor perguntar aos outros.
Os seus mais próximos ficaram surpreendidos por lançar um álbum ao fim de tanto tempo?
Não, é o meu trabalho, faço isto há 20 anos. Sou um pouco lenta, não sou daquelas pessoas que lança um álbum todos os anos. Os meus amigos estão habituados a ver-me escrever.
É o que gosta mais de fazer?
Uma das. É o meu trabalho. Tenho muita sorte.
Temos visto muito ódio pelo mundo. A Carla continua a querer falar de amor. Mas onde é que ele anda?
Talvez não saiba onde está porque não está apaixonado.
Por acaso até estou, mas isso agora não é importante…
Então é aí que o vai encontrar. É algo pessoal, não pode ser distribuído, não é coletivo. Só lhe pertence a si. Um lugar seguro para onde vai. Não se encontra na sociedade, é individualista.
Mas o que é que diz sobre todo este populismo no mundo, as eleições nos EUA, as manifestações, movimentos? Como ex-primeira-dama francesa, também estou interessado em perceber o que pensa sobre tudo isto.
Bem… como poderei dizer… não tenho grande julgamento, está a falar de quê exatamente?
Vários artistas têm falado sobre ódio, racismo ou movimentos como o #metoo. Sente que tem também de expressar uma opinião ou não?
Estamos a expressar-nos demasiado. Toda a gente tem muita informação por causa das redes sociais. Não estou muito preocupada, entendo o que me está a perguntar. Pode ser assustador para os jovens, é um novo mundo. Só que não acredito nisso, acho que seremos sempre o mesmo. Há ondas como agora, mas é um tempo negro. As pessoas estão a defender-se de injustiças e isso percebo.
Por ter estado envolvida em política fica com menos ansiedade do momento atual?
Talvez, sim. Só que vivo numa bolha. Sou uma sonhadora. Quando toco música, quando canto canções sinto-me numa bolha. Até enquanto o meu marido foi Presidente, não tinha muito interessa na política. Não me atinge.
Porquê?
Não sei.
É aborrecido?
Não, de todo. O problema sou eu, odeio julgar ou aconselhar alguém. Se você escrever uma canção, posso-lhe dar uma opinião. Porque esse é o meu trabalho. Nunca poderia estar num cargo de chefia, com responsabilidade. Não gosto. Gosto de ser livre. Nem estou interessada em fazer parte desse mundo.
Desde que deixou de ser primeira-dama, a sua vida mudou?
Não mudou muito. Alterou-se de uma forma visível, o meu marido já não é Presidente, não precisamos de andar com 15 polícias. Só dois… A nossa vida, enquanto pessoas individuais, não mudou realmente. Continuamos a ter a mesma família, mantive a minha casa em Paris, amamo-nos. Não é confuso, é cool.
Tem saudades desses tempos?
Não tenho saudades nenhumas, Foi bom ter sido primeira-dama, mas ainda bem que já não sou. Ainda bem que acabou.
Mudou alguma coisa em si?
Não. Bom… casei, tive outro filho…
Li algures que mudou a sua perspetiva sobre o casamento. Porquê? A minha geração não está muito para aí virada…
Devia, tem tempo!
Porquê? Porquê esse apelo pró-casamento?
Não diria tanto… Estou convencida com o amor. E muitas vezes isso leva-nos a casar, que é mais do que estar apaixonado. É um compromisso, uma ação. Mas quero acreditar no amor. Não é um pedaço de papel que faz o sentimento.
E quem não descobre o amor ao longo do tempo?
[Carla Bruni começa a cantar “You Can’t Hurry Love”, das Supremes] “Não se pode apressar o amor. Tens de esperar. Dizem que o amor não surge facilmente. É um jogo de dar e tirar.” Está tudo na canção. As pessoas encontram-no. Mas também é preciso procurá-lo.
Vai continuar a ser sonhadora, portanto.
É a minha natureza mais profunda.
Falemos do confinamento. O seu marido esteve a escrever um livro de memórias e a Carla estava a terminar o álbum. Trocaram ideias?
Foi um processo muito separado.
Nem lhe cantou uma canção?
Canto sempre para ele. É a minha primeira pessoa. Mas não me leu rascunhos do livro, por exemplo. Esperou até estar finalizado e depois deu-me.
Foi difícil estar fechada em casa?
Não. Estivemos no sul de França, foi estranho, mas não foi difícil.
Como é que lida com todas as notícias, escândalos, rumores que têm pairado à volta do seu marido nestes últimos anos?
A questão é simples: nunca leio as notícias. Não quero saber. O que me interessa é a realidade da minha vida, não o que dizem sobre mim. Nunca falo da vida das outras pessoas. 95% das notícias não são precisas, por isso, não quero lutar contra isso. É deixar ir. O que acontece é que, passado alguns anos, a verdade sobre nós vem ao de cima.
É isso que vai acontecer? Sobre si, o seu marido…
Não sei bem do que está a falar…
[“Un Grand Amour”:]
Estou a falar dos escândalos de corrupção em que o seu marido está alegadamente envolvido.
É política. É algo para impedir que o meu marido volte à política. No início houve imensos casos, agora há só dois. Vão morrer como os outros.
Nesta conversa sinto que estou a falar com uma artista de outro tempo. Com todos os agentes de cultura com quem falo, querem sempre dar uma opinião política. A Carla não está interessada nisso.
Não, nem naquilo que os outros dizem ou expressam. Quando leio o que os artistas dizem sobre política também não me interessa. Gosto de ouvir quem é especialista, os profissionais. Ouvir cientistas a falar sobre ciência, por exemplo. Não gosto que toda a gente diga o que quer. É democracia, um direito, mas há muita porcaria. Adoro que pessoas ilegítimas digam coisas… Deviam estar caladas.
Disse uma vez que agora já não se podia ter graça. Porquê?
É perigoso. Hoje em dia, se disser algo, se for engraçado, há quem possa não perceber. Não vivemos tempos muito divertidos.
Sei que gosta muito de segredos, coisas misteriosas e de silêncio.
Têm um poder curativo. É bom. Vivemos num mundo com ruído, acho que o silêncio é precioso.
Onde é que o consegue? Em casa?
De noite. Trabalho nessa altura também por causa do silêncio. Não poderia trabalhar de manhã. Será porquê?
Não sei.
Mas é mais para escrever, não é para todo o tipo de trabalho. É relaxante.
Escreve muitos rascunhos antes de concluir uma letra?
Sim. Para quinze letras, escrevo trinta. O dobro. E algumas vão-se embora e nem sei porquê, outras ficam.
Canta um tema com a sua irmã não é? Foi difícil?
Foi muito simples. Escrevi-a durante o confinamento. Gostou tanto que a declamou. Foi o que ela fez.
E também escreve e canta em italiano.
Adoro. É uma língua que nos transporta logo para a música. Foi um prazer.
Não estamos a perder contacto com a linguagem?
Um pouco, sim. Nunca perderemos totalmente esse contacto. Mas com todos estes computadores e ecrãs, as pessoas leem cada vez menos. A língua tem de ser praticada.
Mudando de assunto. Como avalia a pandemia em França? Sente-se segura?
Tenho tido muito cuidado porque estou a promover o álbum. Mantenho a distância. Acredito que as pessoas vão ser responsáveis e vamo-nos livrar disto. Acho também que estão a tratar de quem apanha a versão pior do novo coronavírus. Temos melhores remédios e mais conhecimento agora. E há quem fique menos tempo no hospital. Está melhor. Vejo essa responsabilidade humana todos os dias. Eu e a minha filha tivemos o que poderiam ser eventuais sintomas, ela parou de ir à escola, eu de trabalhar. Parámos as duas. Fizemos o teste e deu negativo. Podemos voltar ao trabalho e à escola.
[“La Petit Guépard”:]
É o “novo normal”.
Sim, e se todos se comportarem assim isto vai passar. Vai aumentar a capacidade de curar as pessoas. Porque acredito na ciência, nos médicos, porque sabem prevenir a doença e lidar com ela. Faço figas e fico com esperança.
Deduzo que ver as imagens trágicas de Itália há uns meses deve ter sido um momento complicado.
Agora estão melhores. Olhar para Itália deixa-me otimista. Estão a ser muito sérios e responsáveis. É bom ver um país como Itália, que sempre teve a reputação de ser inadaptável, e que agora está tão disciplinado. Como os alemães ou os portugueses.
Portugueses? Bom…
Sim. São muito disciplinados e trabalhadores. Em Itália há muita indisciplina, mas agora não.
Em relação a concertos, já os começou a planear?
Estamos a fazer planos como se fossemos fazer uma tour, sim. Esperemos conseguir mantê-los. Mas ninguém sabe.