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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Carlos do Carmo em entrevista. “Vou dizer-lhe uma coisa: detesto vedetas”

Quando decidiu deixar os palcos, no final de 2019, Carlos do Carmo deu uma longa entrevista ao Observador. Recordou histórias, pessoas e memórias. Leia e ouça aqui.

    Índice

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[Esta entrevista foi publicada originalmente a 1 de novembro de 2019 e é recuperada no dia da morte de Carlos do Carmo.]

Ainda não sabemos muito bem como vamos resolver este problema nas nossas vidas. Carlos do Carmo, 79 anos, o homem charme, o homem fado, uma das vozes mais importantes da história da canção portuguesa, vai abandonar os palcos.

O anúncio foi feito há vários meses, quando foram também confirmados dois concertos de despedida: um no Coliseu do Porto, a 2 de novembro, e outro no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, no dia 8. Tudo isto enquanto há um novo disco a ser trabalhado no estúdio, quando há uma coletânea que chegou há pouco tempos às lojas e quando há um aniversário redondo prestes a ser cumprido, a 21 de dezembro, quando o cantor fizer 80 anos.

É por todas estas razões que entrevistamos agora Carlos do Carmo (pode ouvir este Sob Escuta, programa de grande entrevista da Rádio Observador, clicando aqui). Mas a verdade é que qualquer outro motivo seria sempre bom. A conversa acontece na casa do fadista, como sempre. O próprio diz-nos logo ao início da conversa que quem ali vai para o entrevistar acaba por se sentir em casa. E não há como negá-lo. Carlos do Carmo recebe-nos, cordial e afetuoso, porque não sabe ser de outra maneira. “Querem um café? Fazemos agora as fotografias? Escolham o sítio. A luz agora está boa. Pode ser no escritório? Tudo isto que aqui veem irá um dia para o Museu do Fado.”

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Aquilo que ali vemos são memórias guardadas durante décadas. Livros, discos, fotografias — “tenho aqui esta com a Sophia Loren” –, prémios, jornais, revistas e coisas escritas, tudo arrumado, tudo com sentido e com lógica. E é aqui que surge o problema: temos uma hora do tempo de Carlos do Carmo ao nosso dispor. Mas uma hora é demasiado curta para o potencial de conversa à nossa frente. Não há segredos, não há técnicas possíveis. O melhor é começar e deixar acontecer.

[ouça a coletânea “Oitenta” na íntegra através do YouTube:]

Dá entrevistas nesta casa desde há muito, não é novidade. Sente-se mais seguro? Sente-se mais confortável? Não tem problemas em receber estranhos para conversas em casa?
O problema é: ao princípio eram estranhos, mas depois deixaram de ser, percebe? Ao longo da vida recebi tantos jornalistas, tantos fotógrafos, tantos homens de câmara, recebi tanta gente, tanta gente que hoje, para mim, muito poucos são estranhos. E tenho relações muito fraternas com a grande maioria deles. Eles sabem onde vêm e quando chegam já perguntam “já fizemos ali, agora vamos fazer acolá”. Conhecem a casa como os dedos deles.

Faz 80 anos no dia 21 de dezembro.
Certo.

Costuma celebrar? Como é que celebra o seu aniversário?
Muito simples, reúno a minha família. Tenho mulher, filhos e netos. E reunimo-nos. É um jantar, um simples jantar bem disposto, não é preciso fazer aquelas barulheiras de não sei quê, do “parabéns a você”. Juntamo-nos e é uma refeição normalmente muito agradável porque está tudo feliz. O avô ainda está vivo, o que não é nada mau.

Quando era miúdo, como é que era?
Era mais difícil. Os meus pais tinham uma vida muito ocupada, muito ocupada. E por vezes era difícil. Gostava de celebrar, mas não era fácil. Não era fácil por causa da vida profissional deles.

Quando tinha oportunidade de ter festas de anos, já cantava? Cantava em casa?
Sim. Era, e sou hoje ainda, um fanático da rádio. Tinha uma maneira muito própria de fazer isto, que era cantar em cima da rádio aquilo que estava a ouvir. Então ouvia belas palestras, adorava ouvir o professor Vitorino Nemésio, palestras giríssimas onde se aprendia imenso, mas era miúdo. E depois a seguir as canções da moda. Cantava-as, macaqueava aquilo. Uma coisa que sempre gostei de fazer, cantar. Mas cantar num ato livre, simples, despretensioso, sem outro objetivo que não fosse o prazer.

"As pessoas falam-me das suas vidas. Se eu digo qualquer coisas na televisão que as desperta, dizem-me 'que bom, sabe, que pena, eu não posso ir à televisão, mas ainda bem que disse'. Não há aquela convulsão do sujeito que está armado em doutor."

Quando está no palco, é mais ou menos isso que sente? Que está a cantar para família ou amigos? Ou há uma barreira que torna as coisas um bocadinho mais impessoais?
Vou pedir desculpa de lhe responder como provavelmente já terei respondido nesta fase de entrevistas que estou a dar. Mas acho que repetir-me neste caso fica certo porque é uma escola. Desde os 12 anos de idade que sou muito fã do Sinatra. E tenho aí uma coleção grande de livros do Sinatra. A biografia autorizada, a não autorizada, confissões dele, assuntos profissionais. Fica-se um pouco ao corrente da vida dele. E as pessoas têm tendência normalmente para pegar num lado mau. Aquele lado em que depois da Ava Gardner ele praticamente teve auxílio da máfia para recuperar. Mas o problema é que ele cantava muito bem e seguiu em frente. Ele tem muitas dicas para quem quer cantar. A pergunta que me fez tem a resposta dele, que não é minha, porque pratico-a, aprendi com ele: “Quando estás no palco, estás em tua casa. E estás a receber os teus amigos”.

O que é que o fascinou no Sinatra, logo de início? Obviamente a voz…
A voz nem se fala. Vou usar umas palavras inglesas: o phrasing, o timing, o balanço… Porque é bom lembrar que ser o melhor cantor de jazz do mundo, normalmente esse prémio foi sempre atribuído a cantores negros. E o Sinatra foi o único branco que conseguiu ganhar isso. Sem esforço. Foi unânime. Portanto, às vezes considero-o um grande fadista

Às vezes porquê?
Porque tenho que ouvir três discos diferentes com a mesma canção para perceber que ele está a estilar como nós estilamos, nós fadistas. Acho isso delicioso. E brinca com as canções. Brinca, brinca com as palavras, mete palavras próprias, era um grande grande artista. Não é por acaso que a América tem por ele a veneração que tem. A América tem muito respeito pelos velhos artistas. Pelos velhos artistas, pelos velhos apresentadores de televisão, é uma coisa que faz parte do código genético.

As canções, os compositores e os fados: a obra de Carlos do Carmo é a arte de um eterno e charmoso camaleão

E consegue fazer uma comparação entre esse respeito e o respeito que há em Portugal pelos velhos artistas?
Não consigo fazer… você sai-me da América e vem-me logo falar de Portugal… Não é fácil… Somos diferentes… Temos uma maneira de ser que é muito misturada, celta, judeu, árabe, isto houve aqui de tudo. Esta mistura, que é curiosa, extremamente curiosa, faz de nós um povo diferente.

Não sei se tem noção disto, mas eu ajudo-o: acho que não só os portugueses, mas quem o ouve e quem conhece o seu percurso, tem para consigo uma estima muito especial que muito poucos conseguem cultivar, enquanto homem e fadista. Porque é que acha que isso acontece?
Não faço a mínima ideia. Vou-lhe dizer até uma coisa que o vai surpreender: como é que é possível um homem como o Plácido Domingo, uma pessoa de bem, um homem com uma carreira extraordinária, que dirigiu grandes orquestras nos Estados Unidos, ter uma ou duas mulheres que disseram que lhes tinha apalpado o rabo. Trinta anos depois. Estamos todos sujeitos às maiores barbaridades. A glória perde-se em cinco minutos. E nisso não tenho ilusões.

Mas não sente esta estima especial?
Sinto. Mas sinto-a mesmo. Na rua. Não é preciso ir mais longe. Na rua. Sinto-o no trato. Não é um trato… Costumo insistir nisto… Não é um trato de consumo.

O que é que quer dizer com “trato de consumo”?
Não é um “artista que eu consumo”. Não. É um trato humano.

Não é uma mercadoria.
Não. As pessoas falam-me das suas vidas. Se digo qualquer coisas na televisão que as desperta, dizem-me “que bom, sabe, que pena, não posso ir à televisão, mas ainda bem que disse”. Não há aquela convulsão do sujeito que está armado em doutor. Não. Sou da opinião que um artista, que é um cidadão, tem todo o direito de interferir, como as outras pessoas. Todo o direito. Concordem ou discordem. A vida democrática é isso.

“Para não estar em decadência em cima do palco, é uma altura boa de sair”

Porque é que decidiu fazer dois concertos de despedida e abandonar os palcos? Ainda que já tenha dito que, obviamente, pode pisar um palco de forma pontual.
São várias razões. Vou tentar ver se consigo explaná-las de maneira clara. Gosto muito de ouvir cantar. Não fico centrado em mim. Mulheres, homens, mas há uma coisa que preciso, que é de perceber as palavras e que cantem bem. É a única coisa que peço. Senão, tenho sempre a possibilidade de ouvir boa música sem cantores. Acontece que tenho reparado… A vida é assim, não é de outra maneira… Que uma pessoa chega a determinado momento da sua vida e começa aquilo que nós chamamos o “inverno”. Eu não gosto de lhe chamar “decadência”. O inverno. E o inverno é bem mais fresquinho que a primavera. E nessa circunstância, para não estar em decadência em cima do palco, depois de tanto trabalho que tive a preservar o que o meu amigo me acabou de dizer, é uma altura boa de sair. 80 anos de idade, cantei no mundo inteiro, poucos foram os países onde não cantei. Cantei em toda a minha terra. Fui sempre bem recebido em toda a parte. Além de que tenho três médicos, três, não é um, são três, que dizem “ó Carlos, você corre é o risco de cair no palco por causa do coração e cai para o lado”.

"Esta decisão, por mais incrível que lhe pareça, foi tomada sozinho, mas tem antecedentes. A família andava a avisar-me. Sobretudo os netos. Diziam: 'Ó avô, já chega'"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

E naturalmente não está minimamente interessado nisso…
Não, respondi que sim. Disse: “Epá, isso é bestial, é uma morte gloriosa”. Resposta do mais novo: “Não me lixe”. Pronto. Eu sou bem mandado.

Também tenho que lhe perguntar isto: como é que se sente? É sabido que tem tido alguns problemas de saúde nos últimos meses, talvez há um ano ou dois…
Anos.

Como é que se sente?
Homem: estou vivo. E uma coisa engraçada é que gosto de estar vivo. Acordo bem disposto, gosto das pessoas, gosto de olhar para as pessoas nos olhos, não sou um tipo que está antecipadamente contra as pessoas. Adoro discordar, adoro. Adoro discordar. Um amigo que discorde comigo, qualquer que seja o assunto de que a gente fale, acho formidável a gente discordar. Mas há um princípio: se há amizade e princípios, esses são básicos. O resto…

Toma este tipo de decisões sozinho ou em família?
Esta decisão, por mais incrível que lhe pareça, foi tomada sozinho, mas tem antecedentes. A família andava a avisar-me. Sobretudo os netos. Diziam assim: “Ó avô, já chega, está tudo tão bem, já chega”. E perguntava: “Mas fiz má figura neste concerto?”. “Não, avô. Mas já chega.” Quer dizer, pareceu-me que os netos não estavam interessados em perder rapidamente o avô. E isso tem muita força. E, de resto, tenho uma família em bloco que não facilita. Não facilita. Não é uma família de tretas. A coisa é ou não é. Nós fomos todos educados em liberdade e co-responsabilidade. Estamos à mesa a jantar e a única coisa que é proibida, a única coisa em que sou ditador, é telemóveis à mesa não há, porque se há telemóveis não existimos nós. De resto, toda a gente diz isto e aquilo e aqueloutro, é magnífico. A família expõe-se. Até que veio o tema. Não é que queira esse tema, porque não falo do artista. De vez em quando acontece qualquer coisa…

"Muita gente que vinha para o fado e vinha ouvir-me ouvia a minha mãe e ficava maravilhado. E depois havia os fãs incondicionais da minha mãe, que me diziam com toda a calma: 'Ó miúdo, tu cantas bem, mas a tua mãe...' Digamos que isto não é assim tão moralizador, não é."

Mas há temas inevitáveis, não é?
Pois, por qualquer razão, porque apareci na televisão ou porque gravei um disco… E atenção, é tudo gente com muito bom ouvido, começaram de pequeninos. O meu filho mais novo, o Gil, deitado aqui neste chão, ainda no tempo da alcatifa, púnhamos os auscultadores e ouvíamos Brel. Pobre criança, a ouvir Brel naquela idade. Pergunte-lhe agora…

Mas fez questão que isso acontecesse? Ou foi natural?
Naturalmente. E o irmão. Nunca ouvi barulho nesta casa. Barulho. Agora, que influência é que tive nisso? Não faço ideia. Que foi assim, foi. Agora é só de visita.

“Vou dizer-lhe uma coisa: detesto vedetas”

Lembra-se da primeira vez que cantou perante um público enquanto fadista?
Perante um público lembro-me. Foi numa festa de Santo António, das noivas de Santo António. Uma festa muito popular em que a vedeta era o António Calvário. E as pessoas passavam por mim como um cão rafeiro. Eu não existia. Isso nunca me vou esquecer. O António é, aliás, uma excelente pessoa, de quem gosto muito. Nunca teve a mania. Agora, era o momento da loucura do António Calvário. As pessoas passavam por mim e sabiam lá quem eu era. Foi no Monumental.

E pensou algo como “será que um dia vai chegar uma loucura à minha volta”?
Não, isso nunca me passou pela cabeça. Vou dizer-lhe uma coisa que provavelmente não disse a nenhum dos seus colegas: detesto vedetas.

Traduza “vedeta”.
É aquela pessoa emproada, que é o maior ou é a maior…

Que eventualmente se acha mais que os outros.
Nem sei se é isso. Porque pego como exemplo os Estados Unidos que têm de longe a melhor música popular e que divulgam os maiores artistas do mundo. E há de reparar que há artistas nos Estados Unidos que vivem sozinhos, numa casa com 40 divisões, 20 casas de banho e morrem ou injetados ou com álcool… É a solidão total. Eu, vedetas, não…

Mas o Carlos podia ter sido uma vedeta, com diz. Partindo de um princípio, que é óbvio, que é uma pessoa com fama, que é uma celebridade, que é muito conhecido…
Mas isso não faz de mim vedeta. Vedeta não gosto. Sinceramente.

Mas fez questão de fugir disso ou nem sequer teve de fugir?
Não gosto. Não aprecio. Vedetas… Fujo de vedetas como o Diabo da cruz. Não é o meu género, não é o meu estilo. Gosto do artista bom, seja de teatro, seja o pintor, de que arte for. O artista bom. Com quem a gente está a conversar amenamente e que não está com um ar emproado, o ar de “eu é que sei, vocês são todos uns ignorantes”. Isso é insuportável.

Até porque o Carlos tem um percurso que envolve outras facetas, não apenas a de fadista. Lembro-me da mais óbvia, provavelmente a mais conhecida: tomou conta da casa de fados da família durante muito tempo.
Por morte do meu pai, durante 20 anos.

Carlos do Carmo e a mãe, Lucília do Carmo, no Faia (fotografia cedida pelo Museu do Fado)

Precisamente. Gostava de fazer isso? Fê-lo naturalmente, deduzo, porque também sentiu esse dever…
Senti esse dever para com o meu pai, como é óbvio, e para com a minha mãe. Porque a minha mãe era a cabeça de cartaz e o gestor era o meu pai. Mas devo dizer-lhe que ao fim de algum tempo estava a dar-me prazer. Por uma razão muito simples: é que começaram assim os primeiros passos do turismo e era uma sensação maravilhosa vender coisas que os turistas nem sonhavam que existiam.

Por exemplo?
Vinho do Pico, que é um aperitivo extraordinário. O vinho seco do Porto Coburns. Ou então ir à cave buscar um grande vinho tinto. E os franceses normalmente, naquela coisa superior de Bordéus, Bordéus é que é. Eu dizia: “Nós Bordéus não temos porque estamos em Portugal, mas tenho aqui um vinho bastante razoável”. E era fascinante ver o homem ou a mulher beberem aquele vinho e dizerem “não sabia que Portugal tinha uns vinhos tão bons”. Isto vão muitos anos…

Li uma entrevista sua em que dizia que, há muito tempo, chegou a ver o fado como uma coisa relativamente careta, uma coisa de pessoas velhas. O que é que aconteceu para mudar a sua relação com o fado? Não foi um acontecimento chave, provavelmente, foi uma coisa que foi acontecendo…
É muito interessante a sua pergunta, porque… Houve aqui uma mistura grande no meu cérebro. Tenho ali uma cadeira na minha secretária onde me sento e penso, gosto de pensar. Aquilo que as pessoas pouco fazem, agora. Gosto de pensar. E comecei a pensar numa coisa curiosa: era miúdo e os meus pais levavam-me a ouvir o fado nos fins de semana, não tinha aulas e era uma altura de podermos estar juntos. E ouvi cantar o fado por gente, muita dela que nem sequer discos gravou, e aquelas histórias, por vezes dramáticas, por vezes terríveis, fascinavam-me. Ficava fascinado com aquilo. Sabe o que é, uma criança a ouvir uma história que nunca ouviu. E aquilo ficou-me na cabeça. E quando ouvia dizer “é o fado da desgraçadinha” e tal… Nunca achei muita piada, mas há que reconhecer que era uma época, foi assim e era preciso agitar as águas. Para isso, o grande contributo foi dado pela ausência da censura. A morte da censura leva-nos a poder trabalhar e a pensar sem ter medo das palavras. O primeiro disco que fiz foi Um Homem na Cidade, com o [José Carlos] Ary [dos Santos] e foi para nós um prazer, uma delícia, foi uma festa.

[“Um Homem na Cidade”, do álbum com o mesmo título, editado em 1977:]

É disso que fala quando diz “agitar as águas”, ou seja, torna-se possível colocar no fado mais do que essas histórias que ouvia quando era miúdo? Podia dizer o que quisesse?
Sem dúvida. Estou a falar do fado que ouvi e conheci. Porque há para trás fado que não ouvi, dos fadistas anarco-sindicalistas que faziam do fado uma canção de protesto. Esses não ouvi cantar.

Mas que, entretanto, como a história explica, tiveram que ser calados e silenciados.
Ouça, toda a gente diz “ai, o fado não é dançado”. O fado era dançado na rua. Foi proibido. Percebe? Há coisas que têm de ser recuperadas, faz parte do nosso trabalho de pesquisa. Isto não está esgotado, longe disso.

“Ouvir os meus discos? Que horror. Não”

Há pouco falava-me da sua mãe. O facto de ser filho de Lucília do Carmo foi importante numa primeira etapa da sua vida enquanto fadista ou foi mais uma espécie de peso?
Não… Digo que não e você vai-se rir… Modéstia à parte, trouxe muita gente para o fado. Mas muita gente. Muita gente. E essa muita gente que vinha para o fado e vinha ouvir-me, ouvia a minha mãe e ficava maravilhado. E depois havia os fãs incondicionais da minha mãe, que me diziam com toda a calma: “Ó miúdo, tu cantas bem, mas a tua mãe…”. Digamos que isto não é assim tão moralizador, não é… Mas muito bem, convivemos os dois muito bem, eram momentos diferentes e fazíamo-lo como deve ser feito. Ela era um mulher extraordinária a cantar, tinha uma dicção ótima e, lá está, dentro de um fado que era um meio termo entre aquilo que falámos há bocado e o outro. Ela já entra aí num processo em que entram poetas como o Linhares Barbosa. Poetas populares, mas poetas que escreviam coisas muito sensíveis:

“Lá porque tens cinco pedras
Num anel de estimação
Agora falas comigo
Com cinco pedras na mão”

Era um homem que tinha a quarta classe, por exemplo.

Que relação é que tinha com os seus pais? Era uma relação mais de autoridade e respeito ou uma relação mais cúmplice, de partilha?
A minha relação com os meus pais era boa, mas não era igual. Não se trata agora de falar de artistas. O meu pai era um homem que tinha uma grande ambição para mim, uma grande ambição, e desejava o mais possível que fosse tudo menos artista. Artista é que não. Perguntava-lhe porquê e ele dizia-me: “Já aturei uma maluca, não vou aturar dois”, por exemplo. Com a minha mãe era uma relação mais difícil, porque a minha mãe era uma pessoa mais dura, tinha aquela dureza que os pais não usam. Ela tinha essa dureza. Mas não invalida que tenha aqui um sinal no joelho, todo rasgado… Foi numa das tournées que ela fez no Brasil, voltou e a alegria que senti de a receber… Espalhei-me todo ao comprido, fiquei a sangrar e ficou-me um sinal para o resto da vida. Eram relações diferentes. O meu pai era um homem que lia o jornal e que me ensinou a ler o jornal. Era um homem que falava comigo de coisas que ele quase estava seguro que eu não repetia. Isto criou outra cumplicidade.

Porque é que estudou fora de Portugal em determinada altura da sua vida?
Porque o meu pai era maluco. Então ele não tinha dinheiro para mandar cantar um cego e manda o filho para o colégio mais caro do mundo? É maluco.

"O tio Alfredo [Marceneiro] não comia nada que não trouxesse de casa. A Judite, que veio ao nosso casamento, preparava-lhe um guardanapo com pescadinhas fritas e pão torrado. E ele repartia com a minha mãe e comigo. E ia contando histórias. E bebia meio copo de vinho tinto."

Estamos a falar da Suíça.
Sim. Mas maluco saudável. Agarrei-me aos livros de uma maneira, que… Estive ali a estudar profundamente. Os idiomas que falo foram aprendidos a sério, não foram a brincar. Agora o que acontece é que depois ele morreu e de repente “e agora é preciso pagar”. E pagou-se. Porque ele devia dinheiro aos amigos. Ficou a dever dinheiro aos amigos. E não se ficou a dever nada a ninguém. Porque ele, se fosse vivo, tinha pago. Representava a pessoa dele, era herdeiro para o bem e para o mal.

E portanto teve que tratar do assunto, naturalmente…
E tratei com muita honra. E os amigos dele tiveram muito respeito e perceberam. Disse: “Atenção, deixem-me organizar e vocês vão receber até ao último tostão”.

E estamos a falar daquele período em que toma conta do negócio da família.
Exatamente.

Já enquanto fadista, o Carlos tem uma óbvia relação com a tradição e com tradição do fado. Mas, ao mesmo tempo, foi um enorme inovador. Como há bocado me disse, trouxe muita gente para o fado. E fez coisas tanto na década de 70 como no século XXI. Seja com o Ary dos Santos, seja com o fado ao piano, com intérpretes de jazz…
Como o Sassetti, que é absolutamente inesquecível. Com a Maria João Pires, que me convidou e que acho inesquecível também. Mas essa questão põe-se da seguinte forma: mantenho um grande respeito pela tradição porque conheci grande parte dos fadistas criadores, já velhinhos, e quando eles cantavam, estavam a fazer música, em cada vez. Isso não é nenhuma brincadeira, é uma coisa muito séria. Já sabemos que no topo temos o [Alfredo] Marceneiro, mas os outros, havia dois ou três que não eram nada maus. Eram muito bons. De modo que essa tradição está dentro de mim. Agora, estou a lembrar-me de repente de uma coisa que o Churchill uma vez afirmou, que a tradição é como um rebanho de cabras sem pastor. Sem inovação, é um cadáver.

[“Cantiga do Maio”, de José Afonso, numa versão por Carlos do Carmo e Bernardo Sassetti, editado em 2010:]

Portanto, diria que a tradição é um elemento fundamental, mas não é tudo?
As coisas vêm de algum lado. Ontem houve um programa na televisão do Piazzolla, mal montado, infelizmente, mas deu pelo menos a delícia de o ouvir. E o Piazzolla não tocava como os outros. São dons. Aquelas mãos mexiam de uma maneira que todos nós mexíamos. Mas sem o Carlos Gardel, o Piazzolla não tinha a mesma simbologia. Não sou… Como é que hei de dizer… Velho do Restelo. No passado é que era, quando ouço alguém dizer “no meu tempo” fico completamente maluco. O meu tempo é agora, estou vivo, é porreiro. Agora, saibamos perceber um trajeto, um caminho. Fui à Fnac, a uma sessão de autógrafos e dar uma entrevista há dois ou três dias. E no final, a Fnac teve a gentileza de me oferecer uma caixa com discos. Hei de lhe mostrar os discos antes de você sair, são verdadeiras pérolas e nenhum disco tem menos de 40, 50 anos.

Ouve os seus discos?
Os meus? Que horror. Não.

Porquê?
Saio tão cansado do estúdio… Não gosto desse perfeccionismo. Gosto de gravar ou ser gravado quando estou em palco. E porquê? Porque peço ao técnico que não toque em nada e os erros, aquilo que é humano, está lá. Ali não, temos de cantar sete vezes, oito vezes… veja bem, um fado clássico cantado sete ou oito vezes, à oitava vez é uma chatice… Porque a gente anda à procura não sei bem de quê.

“O Ary não era para brincadeiras”

Há bocado falava do Alfredo Marceneiro com reverência. O que lhe pergunto é se é a sua referência enquanto fadista homem.
O Alfredo Marceneiro foi, juntamente com o Frederico de Brito, o Britinho que fez as “Canoas do Tejo”, o meu mentor. Com eles aprendi bastante. Porque eles tinham uma vantagem sobre os outros: gostavam de ensinar. E era bom ouvi-los.

Como é que era o Alfredo Marceneiro enquanto professor?
Era engraçado porque ele contava as histórias de uma forma… Parecia que estava sempre zangado mas não estava. Era uma questão de feitio. E ele contava as histórias mais naturais. Só que muitas vezes eram as histórias do século XIX. Ouvia aquilo embevecido, já homem. Uma coisa fantástica.

Com que idade, mais ou menos?
Teria 22, 23 anos. E ouvia-o embevecido. Era muito engraçado porque normalmente isso decorria com uma refeição que era a seguinte: o tio Alfredo não comia nada que não trouxesse de casa. Zero.

Em qualquer sítio?
O tio Alfredo não comia nada que não trouxesse de casa. A Judite, que veio ao nosso casamento, preparava-lhe um guardanapo com pescadinhas fritas e pão torrado. E ele repartia com a minha mãe e comigo. E ia contando histórias. E bebia meio copo de vinho tinto.

"Ele [Ary dos Santos] fez duas das canções para o Festival da Canção em que eu cantei as canções todas. E portanto, como aquilo vinha sob anonimato depois tive que saber quem eram os autores. Então houve uma aproximação. E ele tinha desejo de fazer um disco sobre Lisboa. E eu disse: 'Zé Carlos, contigo eu faço tudo, vou até ao fim do mundo'"

A sua Judite também lhe preparava um farnel?
Não. Não porque estava no local do crime, eu estava no local do crime. Mas em casa, a Judite tornou-se uma belíssima cozinheira. Porque eu, a vida que tinha, era uma vida de cão, andava a correr de um lado para o outro, e a Judite fazia comida maravilhosa. Os filhos ainda têm isso na memória. Maravilhosa.

Acha que terá sido difícil… Difícil não sei, talvez seja a palavra errada… Complicado partilhar vida e construir uma família consigo, por isso que me está a dizer? Por estar muito tempo fora de casa? Durante muito tempo trabalhou, suponho eu, quase sempre de noite.
E de madrugada, se não se importa… A minha amiga Pilar que me perdoe, mas se houvesse justiça era a Maria Judite que devia ter ganho o Nobel.

Colocadas as coisas assim, acho que está explicado…
É um facto. É uma mulher que amo, estamos casados há 55 anos, é uma pessoa que se preocupa muitíssimo comigo.

É sua fã?
Isso então… Fã e exigente. Ela fica sempre no bastidor a assistir. E se a coisa não é como ela lá entende, saio, as pessoas a baterem muitas palmas e ela diz “hmmm… hoje não estavas nos teus dias”. E fico caladinho que nem um rato, bebo água e vou para o camarim.

De todas as pessoas com quem colaborou, de todas as pessoas que trouxe para o fado, foi o Ary dos Santos a que mais o marcou? Foi fundamental?
Para mim foi fundamental. Porque o que acontece é que quando o Ary dos Santos começou a trabalhar… Bom, para já criámos uma amizade.

Que começou como?
Da maneira mais simples. Ele fez duas das canções para o Festival da Canção em que cantei. E portanto, como aquilo vinha sob anonimato, depois tive que saber quem eram os autores. Então houve uma aproximação. E ele tinha desejo de fazer um disco sobre Lisboa. E eu disse: “Zé Carlos, contigo faço tudo, vou até ao fim do mundo”. Mas o problema era este: é que nós não tínhamos músicos na altura. Os velhos fadistas ou estavam muito velhinhos ou tinham morrido. E portanto, tivemos que nos socorrer de gente que não era do fado. O Paulo de Carvalho, o Fernando Tordo, o António Vitorino de Almeida, o José Luís Tinoco… Veja a qualidade. Gente que vem de outras áreas e que fez trabalhos tão bonitos. E que agora a juventude solicita.

Um homem, oito músicas e dois partidos: a história de Carlos do Carmo e do Festival da Canção de 1976

Essa vontade que teve de fazer diferente e de fazer as coisas como queria e à sua maneira, com as pessoas que queria…
À nossa maneira, porque o Ary não era para brincadeiras…

Explique-me melhor.
Não era para brincadeiras, o Zé Carlos. Estávamos numa fase que ainda tinha a ver com PREC. E o Zé Carlos estava a escrever fados para mim, em papel de segundas vias e tal… Ia escrevendo à mão e tinha um caixote do lixo ao lado. Ia escrevendo. Quando não gostava, deitava fora e nem me deixava ler. Quando era uma coisa que ele sentia que podia ser, cobria [o papel]… E eu dizia “bom, se ele está a cobrir é porque vale a pena”. E recordo-me de uma vez, não me pergunte qual era o fado, de lhe dizer assim: “Ó Zé Carlos, não sou um cantor de protesto, tu estás a ir dentro de um tempo que é o que existe mas estás a fazer uma coisa: o fado propriamente dito não pode ser assim, isto fica datado”.

E o fado não pode ser datado.
Não devia. Não se esqueça que estávamos num momento de grande alegria, de grande euforia, de exaltação. E ele respondeu-me: “Estás a ficar muito reacionário”. E eu disse: “Bom, é o que tu quiseres. Mas há uma coisa que é certa e segura, Zé Carlos. Se tu escreveres à tua maneira sobre a cidade de Lisboa e os temas que tens, as pessoas vão gostar, se começas a pôr vivas à Cristina, olha que não creio que seja o melhor dos mundos”.

"Para mim hoje, a vida não é branco e preto. Politicamente falando. Tenho grandes amigos de direita, sabe? Amigos, do peito. E tenho alguns que morreram e que me fazem falta."

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O facto é que chegaram a um entendimento.
Foi a única vez.

O Carlos sempre foi um homem político…
Somos todos, você também, vá lá, não comece agora aí…

Mas o Carlos é uma figura pública.
E isso quer dizer o quê?

Isso pergunto-lhe eu, já agora. Isso dá-lhe mais responsabilidade enquanto homem político, que todos somos?
Acho que sim. Então não me fascina ver a Jane Fonda e o Robert DeNiro violentamente a agredir o que se está a passar nos Estados Unidos, a sentirem-se humilhados pelo que se está a passar nos Estados Unidos. Ela algemada, com 81 anos. Ele que já não é nenhum jovem galã… Isto é uma coisa que me fascina. Você agora pode-me dizer, “eles têm muito dinheiro, não precisam de se meter nisso”. O que é que isso quer dizer? Mas a América também não é deles? Tão simples quanto isto.

“O Cunhal e eu tornámo-nos amigos. Sem falar de política”

Voltando a essa altura de que me estava a falar, do trabalho com o Ary dos Santos, o período pós-revolucionário. Disse-me: “Ary, não vamos fazer do fado uma canção de protesto”. Mas podia tê-lo feito. Não sentia essa necessidade? Não queria protestar? Não tinha porque protestar?
Era uma altura em que havia “n” cantores de protesto, portanto era muito definida a… Hoje são todos cantores de direita, com algumas exceções. Mas eram cantores de protesto. Não se esteja a rir, é verdade.

Hoje são todos cantores de direita?
Não. Todos não são. Mas naquela altura eram todos [de esquerda] e depois alguns permaneceram coerentemente e outros foram tratar da vida deles. O dinheiro é mais simpático do que agora estar a lutar pelos desprotegidos. Isso eu percebo, não lhes levo nada a mal. Desde que não mexam no meu bolso, mas se não forem eles, mexem os bancos. Vai dar ao mesmo.

Era um cantor de esquerda na altura?
Sabe que tenho uma dificuldade grande em responder a isso agora. Porque esta coisa da esquerda e da direita, para mim… Estão um bocadinho gastas.

Mas se calhar na altura ainda não estavam…
Não, na altura não. Pode dizer que na altura era um homem de esquerda, sim.

"Cantei milhares de vezes para o Partido Comunista Português. Milhares de vezes. Mas quero dizer-lhe e repito isto: eu nunca recebi um cêntimo. Era o dar. E qual era a razão? A razão era a gratidão que eu tinha para com as pessoas que estiveram presas enquanto eu tinha uma vida livre."

Na altura as coisas ou eram a branco ou preto.
Lá está, o branco e o preto. Para mim, hoje, a vida não é branco e preto. Politicamente falando. Tenho grandes amigos de direita, sabe? Amigos do peito. E tenho alguns que morreram e que me fazem falta. Gosto de discutir, a gente discute, não estamos de acordo, mas é bom, é saudável. Agora essa coisa da esquerda e da direita, depois do que se passou no século XX, não sei se é o melhor dos momentos para falar em esquerda e direita, temos outras coisas mais importantes para falar. Porque realmente vão aparecendo coisas fundamentais das quais se tem de tomar conta. O que é que interessa a esquerda e a direita se as pessoas deixarem de respirar? Se isto acabar? Se as pessoas derem cabo do clima?

Está preocupado com isso?
Eu? Preocupadíssimo. Vejo crianças, filhos de pessoas e netos de pessoas minhas amigas cheias de doenças respiratórias. Isto é um caso. E o outro é a distribuição do dinheiro. Não é dizer “tira a fulano e põe em beltrano”. Não. É a desproporção que há entre a riqueza e a pobreza. É brutal. É uma coisa brutal. Não tem sentido. Diga-me uma coisa, o que é que faz um sujeito com cinco mil milhões de euros? O que é que faz um sujeito? O que é que ele faz? É uma coisa absurda, completamente absurda. Mas você vai a um país qualquer de África e tem pessoas que não têm para comer e vêm a correr… Tenho agora uma neta que está na Grécia. É um voluntariado que ela está a fazer e que está a receber refugiados. Ela no outro dia à conversa com a avó dizia assim: “Ó ‘vó, mas eu queixo-me de quê? De que é que eu me estou a queixar? A avó não sonha o que é que estou a ver aqui”. Se não houver um bocadinho de compaixão, de ternura, de respeito pelo ser humano, isto não tem graça nenhuma.

Ainda sobre a política: diria que há alguma tradição ou abordagem política que é mais associada ao fado, que tem um historial maior e ligação com o fado?
O anarco-sindicalismo, como lhe disse ao princípio, que durou muitos anos. Depois a ditadura adocicou.

Teve que domesticar e calar.
A censura é a maior agressão que se faz à inteligência do ser humano. E com a censura foi o que vimos.

Em algumas entrevistas e em textos críticos, vê-se por vezes a referência que diz que os anos 80 foram complicados, para o Carlos e para o fado. É assim? É verdade?
É. Para mim foram.

Porquê?
Porque fui muito perseguido politicamente.

Porquê?
Por ser de esquerda. Fui perseguido. Muito perseguido. Um exemplo: estive cinco anos sem cantar na RTP, que era o único canal. E você diz-me “então e o que é que fez?”. Olhe, tenho muita gente amiga na emigração e tinha, portanto, amigos dos dois lados da moeda. Uns que tinham emigrado por razões económicas e outros que tinham emigrado por razões políticas, não podiam estar aqui, se não eram presos. E essas pessoas tinham contacto com a gente da cultura dos países onde estavam. E foram eles que me puseram a cantar nas grandes salas da Europa. E nunca mais parei.

"O Cunhal era um artista. Imagina-me agora eu a falar de política com o Cunhal? Nem pouco mais ou menos."

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Mas o Carlos tinha uma ligação concreta com a política?
A que é que chama “concreta”?

Uma ligação partidária. Oficial.
Não. Tinha uma relação afetuosa, muito afetuosa. Cantei milhares de vezes para o Partido Comunista Português. Milhares de vezes. Mas quero dizer-lhe e repito isto: nunca recebi um cêntimo. Era o dar. E qual era a razão? A razão era a gratidão que tinha para com as pessoas que estiveram presas enquanto tinha uma vida livre. E a segunda razão tinha a ver com, realmente, estar do lado dos desamparados, poder dar um pequeno contributo. Não era politicamente ativo, nunca fui membro, mas fazia isso com muito gosto, muito prazer, de norte a sul do país e nas ilhas. Sempre fiz. E depois aconteceu-me outra coisa curiosa que veio com o tempo, sem falar de política: o [Álvaro] Cunhal e eu tornámo-nos amigos. Sem falar de política. Porque o Cunhal era um artista. Imagina-me agora eu a falar de política com o Cunhal? Nem pouco mais ou menos.

Eram bons amigos.
O Cunhal, quando estive doente a primeira vez, não largava o telefone da minha mulher, muito à séria, bem preocupado.

Sentiu-se provavelmente injustiçado nesses anos 80.
Não. Olhando para trás, não. Eu percebo. A vida é assim. O português passou anos de mais com a boca fechada. Foram anos e anos e anos. Já nem sequer estou a falar só da ditadura, mesmo para trás. E sucede o seguinte: quando lhe deram a possibilidade de falar, entre as coisas bonitas que fez, que não foram poucas, fez muito disparate. Muita asneira. Contrariou o dom da liberdade. Hoje, quando vejo uma manifestação em Vila Pouca de Aguiar ou Freixo de Espada à Cinta, digo assim: “Já chegou aqui o 25 de Abril”. Agora veja os anos que passaram.

“Avisei a diretora: vou fazer um disco anti-comercial”

É curioso porque, apesar disso e dessa época de 80 complicada, acaba por ser depois uma figura essencial da atualidade do fado e da sua história. É uma das caras principais da campanha pela elevação do fado a Património Imaterial da Humanidade… Se o fado não tivesse ganho essas distinção, essa elevação, teria sido uma tremenda desilusão…
Teria. Mas quero dizer-lhe o seguinte: foram sete anos de trabalho, sete anos, não são sete semanas, de um grupo que foi dirigido pelo professor Rui Vieira Nery e a doutora Sara Pereira do Museu do Fado. E depois um conjunto de musicólogos, etnomusicólogos, historiadores e fadistas, toda a gente do fado que quisesse participar era bem vinda. E tudo isso foi feito e resultou num trabalho muito bem feito. Permita-me agora esta vaidade: o trabalho foi muito bem feito. De tal maneira que o júri disse que foi a coisa mais bela que até então lhe tinham apresentado. Isso deu-nos uma certa vaidade.

O Carlos tem estado a trabalhar num novo disco…
Agora não.

Neste momento não está?
Agora estou centrado nos meus dois concertos. Não é que não tenha já o alinhamento, mas estou centrado. Não gosto de me dispersar e fazer duas coisas ao mesmo tempo.

Já agora, como é que se define um alinhamento para um concerto destes?
Isso tem de perguntar ao meu produtor, que é o meu filho, ele é que faz, eu nem dou palpites.

Mas quando olhar para a lista, certamente vai pensar “falta aqui qualquer coisa”.
Olho para a lista como se fosse um restaurante. Mas não vale a pensa discutir com ele. É que ele é meu produtor e meu filho, não me faltava mais nada do que me estar a chatear com o meu filho. É assim. É assim que ele gosta, é assim que ele quer. Normalmente tem razão, espero que tenha agora também.

[Quando é que vamos ouvir o novo disco?] "Não faço a mínima ideia. Não vale a pena estar aqui com datas porque ele já devia estar feito e não foi. Nem me faça essa pergunta se não ainda sou despedido."

Ainda sobre o trabalho em estúdio e sobre um possível novo disco. Sendo que já fez o que fez no fado, e para falarmos de tudo e elencar todas as pessoas seria preciso algum tempo, como é que alimenta constantemente um novo desafio para levar para o estúdio?
Ouça, não toco nenhum instrumento, sou amante das palavras e acontece o seguinte: procuro os casamentos. Houve um determinado momento que aconteceu no fado a mesma coisa que tinha acontecido quando foi o Homem na Cidade. Que era: estávamos com crise de poetas. Os velhos poetas tinham desaparecido. Então convidei a Maria do Rosário Pedreira, convidei o Nuno Júdice, convidei o Júlio Pomar, o Fernando Pinto do Amaral… E aí está, eles estão a escrever para os miúdos. Agora, aqui é diferente, aqui quis fazer as coisas de outra maneira. Avisei a companhia, que tenho uma relação muito leal com a minha companhia de discos, muito leal. Avisei a diretora: vou fazer um disco anti-comercial. Estou cá para gravar discos, vocês estão cá para vender. E então fui buscar coisas fáceis: Herberto Helder, Hélia Correia, Vasco Graça Moura, Jorge Palma, só alguns exemplos.

Foi o Carlos que escolheu.
Fado a fado. E tenho um fado do Pedro Abrunhosa que nunca escreveu fado para ninguém. Esse vou ter mesmo que aprender porque ouvi-o só uma vez.

Quando é que vamos poder ouvir isso tudo?
Não faço a mínima ideia. Não vale a pena estar aqui com datas porque ele já devia estar feito e não está. Nem me faça essa pergunta se não ainda sou despedido.

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