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O Estúdio 1 da RTP foi o palco do "Uma canção para a Europa", nome dado ao Festival da Canção de 1976
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O Estúdio 1 da RTP foi o palco do "Uma canção para a Europa", nome dado ao Festival da Canção de 1976

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O Estúdio 1 da RTP foi o palco do "Uma canção para a Europa", nome dado ao Festival da Canção de 1976

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Um homem, oito músicas e dois partidos: a história de Carlos do Carmo e do Festival da Canção de 1976

"Uma Canção para a Europa" foi o nome dado ao Festival da Canção de 1976. Num país dividido pela luta partidária, a música não escapou. Falámos com quem viu, fez e cantou uma edição histórica.

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[artigo originalmente publicado a 3 de março de 2018, republicado a propósito da morte de Carlos do Carmo, a 1 de janeiro de 2021]

Declarações como “‘Uma canção para a Europa’ — um programa monótono” ou “Sentimos uma crescente banalidade à medida que o programa decorria…” foram publicadas no Diário de Notícias de 23 de fevereiro de 1976. Uma semana mais tarde, o Século Ilustrado ia mais longe, afirmando que tinha sido “tristonho, o espetáculo; sem ritmo, nem invenção, sem nada”.

O nome “Uma canção para a Europa” pode não ser uma referência imediata, mas se lhe chamarmos simplesmente Festival da Canção de 1976, já soará mais familiar? Na verdade, os dois são a mesma coisa e o ano em questão representa uma das mais invulgares edições desta competição musical.

De acordo com a imprensa da época, as coisas parecem não ter corrido muito bem, mas não era de estranhar: toda a situação era inédita. O Festival da Canção português era feito em moldes diferentes daquilo que acontecia noutros países europeus. No Reino Unido, por exemplo, havia a prática de se escolherem (via júri) várias canções, propostas por diversos compositores, que depois seriam apresentadas ao grande público através de um único intérprete, que as cantaria a todas. A partir de 25 de Abril de 1974, Portugal encheu-se de uma grande vontade de mudança, e esta estendeu-se ao próprio festival: o país iria seguir o modelo britânico.

Carlos do Carmo, o intérprete único do "Uma canção para a Europa". Aqui aparece na emissão da final.

D.R.

“Um certo dia, recebo dois telefonemas quase seguidos: primeiro o meu grande amigo Luís Andrade e, logo depois, o José Nuno Martins. Eles eram altos funcionários da RTP, na altura, e queriam fazer-me uma proposta. ‘O que achas de participar no festival?’, perguntaram. Fiquei um bocado apardalado, mas a coisa não ficou por aí: eles queriam que eu cantasse todas as canções. Garantiram-me que todo o processo seria avaliado por um júri a sério, com todo o rigor e que queriam imprimir a máxima qualidade. Eu pedi-lhes tempo para pensar, mas dois dias depois já lhes estava a ligar de volta: ‘OK, isso é um desafio, acho piada, vamos embora.'” — foi desta forma que Carlos do Carmo explicou ao Observador como começou a sua aventura de único intérprete neste concurso tão especial.

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Gravado em dois momentos — a apresentação das canções deu-se a 22 de fevereiro, primeiro, e a final,  a 7 de março –, sempre no Estúdio 1 da RTP, o concurso é descrito por Tozé Brito (compositor envolvido no certame) como “o único Festival da Canção que, em 50 anos, que conseguiu não ser só ‘um Festival da Canção’. Foi um programa de televisão onde foram apresentadas oito canções e se falou sobre elas, com conteúdo didático.”

Tudo foi diferente: desde a interpretação de cada música ao método de votação, por exemplo, que foi feito, pela primeira vez, através de cupões que vinham publicados em jornais e revistas da época. Os interessados recortavam-nos, preenchiam-nos e enviavam para a emissora/organizadora do evento para que fossem contabilizados –“Deixou de haver aquela coisa [que este ano, na final de Guimarães, vai acontecer] de serem as capitais de distrito a anunciarem os votos”, explica Tozé Brito.

Eram estes os cupões utilizados para votar. Eram recortados, preenchidos e enviados para a RTP.

D.R.

As citações que abrem este texto referem-se ao primeiro momento do festival, a apresentação das canções. A final, quando foram anunciados os resultados, foi totalmente diferente, graças a um homem em particular: António Vitorino d’Almeida. Quando Tozé Brito fala do cariz “didático” deste “Uma canção para a Europa” refere-se ao papel desempenhado pelo maestro, que vestiu a pele de cicerone e comentou, uma a uma (e contando com inputs do público), cada canção.

Foi por causa desta figura histórica da música portuguesa — com quem o Observador não conseguiu falar por se encontrar “cheio de trabalho”, a preparar a banda sonora de um filme — que na imprensa nacional passou a ler-se frases como “Maestro Vitorino ‘Incendiou’ a Finalíssima das Canções para Haia [a final da Eurovisão realizava-se na cidade holandesa]”, na primeira página do Diário Popular de 8 de março de 1976, ou “Tal como, há duas semanas, nos abespinhámos contra a monotonia, o fastio que foi a passagem televisiva, em acelerado, das oito canções concorrentes a Haia, cá estamos, desta feita, rendidos à qualidade, ao interesse do programa que a RTP nos serviu no último domingo” (no Século Ilustrado de 14 de março de 1976).

A 3 de abril de 1976, na Holanda, 18 países cantaram pela vitória na 21.ª edição do Festival Eurovisão da Canção. Carlos do Carmo, claro está, representou as cores portuguesas com a canção “Uma Flor de Verde Pinho”, composição de Manuel Alegre (letra) e José Niza (melodia) que venceu o festival nacional. Portugal não foi além do 12.º lugar, mas o fracasso não causou impacto em terras lusas. Nessa altura, todo o país estava mergulhado numa efervescência política causada pelas eleições legislativas — marcadas para 25 de abril. A proximidade com a data do escrutínio pode ter ofuscado a “derrota” em Haia, como já havia condicionado a escolha da canção que iria representar Portugal. É importante contar a história desde o início.

[Carlos do Carmo a cantar ‘Uma Flor de Verde Pinho’, a canção vencedora]

A “grande baralhação” que acabou por dar bom resultado

Viviam-se alturas conturbadas. Ao Observador, o Coronel Manuel Pedroso Marques (o Presidente da RTP na altura deste Festival da Canção) recorda, entre risos, que, em 76, Portugal já tinha passado por “seis governos provisórios e a televisão já tinha tido oito presidentes.” Havia falta de fundos, sucessivas greves e saneamentos e a publicidade escasseava. Eládio Clímaco, que teve neste “Uma canção para a Europa” a sua estreia enquanto apresentador (fê-lo em parceria com Ana Zanatti), recorda que “tudo neste festival foi uma grande baralhação”, levantando até a hipótese da realização do mesmo “ter sido posta em causa.” Contudo, o espetáculo foi em frente.

Já com o novo conceito estruturado e com Carlos do Carmo a bordo, começou o processo de seleção das canções. Carlos do Carmo — que se encontrava em estúdio, a gravar um novo álbum, quando aceitou falar com o Observador — relembra como tudo se desenrolou: “Depois de aceitar, eles fizeram-me entrar nos ‘bastidores’.”

Como era (e continua a ser) hábito, a emissora convidou vários compositores a enviar canções, para que o júri —  composto por Pedro Támen e Fernando Grade, da Associação Portuguesa de Escritores; Pedro Osório e Manuel da Fonseca, da Sociedade Portuguesa de Autores; Maria Celina Godinho e Ricardo Camacho, da Radiodifusão Portuguesa; Elvira de Freitas e Artur Santos, do Conservatório Nacional; Jorge José Gomes e Juvenal Garcia, da Federação Portuguesa de Coletividades de Cultura e Recreio; Pedro Caldeira Cabral e Rocha Oliveira, do Sindicato dos Músicos; e Mário Contumélias e Nélson Lobo Pimentel, do Sindicato de Jornalistas — escolhesse as que seriam apresentadas ao público. Das 133 que foram enviadas de forma anónima, saíram oito… Que eram para ter sido dez.

"Foi o único festival que eu me lembro de não ter sido um concurso, mas sim um excelente programa de televisão." 
Tozé Brito

“Fui convidado a assistir ao processo de selecção das canções, mas sem ter qualquer voto na matéria. Ouvia com toda a atenção e depois, quando era a escolha, o Manuel [da Fonseca] perguntava-me se gostava. Era suposto serem 10 canções, mas ficaram oito. Quando chegaram a esse número, o Támen e o Fonseca disseram-me ‘ficas com oito e não é nada mau, as outras nem penses’. Havia muitas”, explica Carlos do Carmo.

O diretor musical era Thilo Krassman, outro nome clássico deste universo festivaleiro e “um grande amigo pessoal” de Carlos do Carmo. Depois de todas as canções terem sido selecionadas, Thilo e Carlos tomam uma decisão radical. O maestro alemão, que morreu em Portimão em 2004, era amigo de um comandante da TAP que tinha uma casa em Cascais. Como ambos queriam “fazer um espetáculo excepcional”, decidiram mudar-se para essa casa, temporariamente, onde se mantiveram até poucos dias da primeira mostra televisiva das canções. Thilo “fazia os arranjos” e Carlos “decorava todas as letras” — “Não queria estar com um papel à frente!”, revela o fadista. “Ora dissemos adeus às nossas mulheres (que só nos visitavam de vez em quando), e instalamos-nos lá, na casa de Cascais. Ele a fazer arranjos e eu a aprender as letras. Quando fui para o festival sabia-as todas de cor.”

Do outro lado, entre os compositores, o clima era sereno. Tozé Brito diz que “todos sabiam à partida que iam estar a compor para o Carlos”, afirmação que o Observador comprovou. “Vários compositores foram convidados. Lembro-me que o Manuel Alegre foi com uma música do José Niza. Eu fui com o José Carlos Ary dos Santos [a dupla assinou duas das canções que foram a concurso, “Estrela da Tarde” e “Novo Fado Alegre”]”), diz Fernando Tordo. Paulo de Carvalho também já sabia que Carlos do Carmo iria cantar uma canção sua — “Fiz uma música [chamada “Onde é Que Tu Moras?”] para um grande fadista português que se tornou um grande amigo”.

[Carlos do Carmo a cantar ‘Estrela da Tarde’]

Durante a primeira fase de seleção, os autores foram mantidos em segredo. Só no momento em que foram escolhidas as oito canções finalistas é que estes foram revelados. A RTP acordou com os compositores que cada um iria actuar com Carlos do Carmo em direto e que esse seria o momento em que tanto o intérprete como o público saberia quem tinha composto o quê.

No total, participaram nove compositores, tanto de melodias como de letras: José Niza, Manuel Alegre, José Luís Tinoco, Tozé Brito, José Carlos Ary dos Santos, Paulo de Carvalho, Fernando Tordo e Carlos Mendes. As oito canções eram “Flor de Verde Pinho” (ficou em 1.º lugar), “Novo Fado Alegre” (2.º), “No Teu Poema” (3.º), “Cantiga de Maio” (4.º), “Os Lobos e Ninguém” (5.º), “Estrela da Tarde” (6.º), “Onde é Que Tu Moras?” (7.º) e “Maria Criada Maria Senhora”(8.º).

Sobre a escolha do intérprete, os compositores que o Observador conseguiu contactar são unânimes ao afirmar que na altura havia muito poucos artistas que conseguissem ser tão universais (no sentido de serem aceites e reconhecidos transversalmente) e que, ao mesmo tempo, garantissem tanta qualidade como Carlos do Carmo. “O Carlos era um intérprete de grande qualidade, nessa altura. Já muito conceituado”, conta Fernando Tordo. Tozé Brito mantém o discurso no mesmo tom, afirmando que “toda a gente levou muito bem a decisão” de ser o fadista o único cantor. “Ele era uma figura muito consensual, se fosse outro, muitos compositores podiam ter recusado concorrer, mas estamos a falar de um homem que, já na altura, era um nome respeitado. Houve boa vontade de todos os lados.” Quando muito, a decisão até facilitou o trabalho dos compositores, não só porque muitos deles já tinham trabalhado com o cantor (de reforçar a ideia que Carlos do Carmo só soube quem eram os autores das canções quando as foi cantar pela primeira vez à televisão, “para evitar acusações de favorecimento”), mas também porque desta forma estavam a escrever para alguém com um estilo já reconhecido — “era muito mais fácil”, explica Tordo.

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Tozé Brito acrescenta ainda que tem muita pena que este modelo de Festival não tenha sido reutilizado, destacando a importância do intérprete único: “Como sabias para quem estavas a escrever conseguias fazer uma canção muito melhor: escrever para o Carlos não é a mesma coisa que escrever para o Dino Meira, por exemplo. Se fosse para ele tinha feito uma coisa completamente diferente.”

Sobre este tema, o próprio Carlos do Carmo revela que não só saiu muito beneficiado por ter tantos “craques” a escrever para ele (pois ainda hoje canta canções dessa altura, nos seus concertos), como também “quase se esqueceu do cansaço” assim que percebeu que estava a trabalhar com tantos amigos.

“O único festival que não foi concurso”

Tozé Brito é peremptório ao destacar a singularidade deste festival ao afirmar que “foi o único festival que eu me lembro de não ter sido um concurso, mas sim um excelente programa de televisão.” E porque é que diz isto? A resposta é clara: além de ter envolvido alguns dos maiores nomes da música portuguesa, contou com a participação do maestro Vitorino d’Almeida, um outsider entendido no assunto, que comentou todas as músicas. Ou seja, o cariz competitivo dissipou-se não só pelo clima de amizade que havia entre todos os envolvidos — o próprio Paulo de Carvalho diz: “Cantávamos uns com os outros. O Festival, nessa altura, não era tão concorrencial, era mais de amizade” — mas também pela vertente didática trazida pelo maestro.

Logo no início da sua participação no festival, Vitorino d’Almeida assume a aparente estranheza — pelo menos para o público — de estar ali “o gajo da música clássica”.

“Nós sabíamos à partida que ia ser um programa com o António Vitorino d’Almeida à conversa, a falar sobre as músicas”, diz Brito, antigo músico do Quarteto 1111 e actual membro da direcção da Sociedade Portuguesa de Autores. Depois de uma primeira apresentação, onde Carlos do Carmo cantou quatro fados, Vitorino d’Almeida saiu da plateia — onde estavam, entre outros, as suas duas filhas pequenas, Maria e Inês de Medeiros, o célebre letrista de fados e desportista Mário Moniz Pereira, o escritor e artista Fernando Grade, o apresentador Fialho Gouveia e até o ator Canto e Castro — e assumiu de imediato um papel de professor.

Eládio Clímaco, por exemplo, recorda que o maestro “falava que se desunhava”, mas, no geral, todos ficaram absorvidos pelo que ia dizendo. No Diário Popular de 6 de março, o jornalista João Alves da Costa escreveu que “o maestro Vitorino d’Almeida teceu comentários cheios de humor e inteligência que revelaram-se de extrema utilidade, foram verdadeiro veículo original antimonotonia.”

[O maestro António Vitorino d’Almeida a comentar a canção ‘No Teu Poema’]

O acutilância de muitos dos seus comentários — disse várias vezes que, pelo menos naquela altura, as músicas ligeiras em Portugal seguiam sempre o mesmo formato, eram “sempre a descer de tom”, “muito dramáticas” — até foi bem visto pelos participantes. O testemunho de Tozé Brito confirma isso: “O António Vitorino d’Almeida não estava preocupado em ser correcto e ainda bem! Quis tentar fazer com que as pessoas percebessem porque é que a canção X era melhor que a Y.”

As intervenções do maestro acabavam por envolver também o público, que, por muitas vezes, procurou sem sucesso (e graças ao cicerone) alimentar a polémica, ao tentar trazer a política para o palco. Embora os desvios na conversa, o duelo PS/PCP nunca deixou de estar presente.

Alegre e Niza Vs. Tordo e Ary: quando a música se confundiu com a política

Em 1976, a sombra do PREC ainda pairava sobre a população portuguesa. Além disso, a iminência das eleições Legislativas (que Mário Soares viria a ganhar pelo PS) de 25 de abril trouxe consigo algum reboliço — que também se fez sentir no Festival da Canção.

Na revista Flama de 20 de fevereiro de 1976 aparece uma artigo de antevisão do “Uma canção para a Europa” com o título: “De guerra de ‘etiquetas’ à guerra de partidos?”. Nele é levantada a suspeita de que os duelos de editoras discográficas, que muitas vezes “se serviam do Festival para palco desmedido das suas ambições comerciais”, podia dar lugar a um duelo partidário, pois duas das duplas de compositores envolvidas no concurso incluíam representantes de PS e PCP (a revista diz que “embora fosse rigorosamente proibida” a divulgação dos autores, já sabia, “de fonte segura”, quem eles eram). Começava-se a desenhar o duelo Ary dos Santo/Fernando Tordo Vs. Manuel Alegre/José Niza.

“A dado momento do Festival houve um espécie de bipolarização, uma pseudo-guerra entre o PS (com a canção do Manuel Alegre, a ‘Flor de Verde Pinho’, que ganhou) e a do Ary dos Santos com o Fernando Tordo, o ‘Novo Fado Alegre’. Havia ali uma guerra de cariz político que todos nós, os concorrentes, percebemos. Ou seja, começou por ser um programa de televisão muito didático e, de repente, tornou-se numa guerra entre dois partidos para ver qual era a canção que ia à Eurovisão”, revela Tozé Brito.

Manuel Alegre escreveu o poema de 'Uma Flor de Verde Pinho', a canção vencedora, e actuou na final portuguesa.

D.R.

Quando questionado sobre a carga política deste festival, Carlos do Carmo é assertivo: “Político foi o festival de 75, esse sim, e isso era bem claro e objectivo. Nesta edição, a única coisa que houve foi pessoas que tinham partidos, um era destes e outro era daqueles.” Apesar disso, o cantor reforça a ideia de que cantou todos os poemas “da mesma forma, com o mesmo respeito” e isso, revela, foi essencial. “Quis respeitar os meus princípios éticos.”

Carlos do Carmo vai mais longe ao afirmar que nunca se quis envolver com esse tipo de questões, uma posição também assumida por Eládio Clímaco, que fala em nome de Ana Zanatti, ao dizer: “Nós fugíamos sempre desses assuntos, fazíamos o nosso trabalho e pronto.” Os dois destacam, porém, que “o que interessava era o público”, pois era ele que escolhia: e escolheu dar a vitória nas eleições a Soares, como escolheu dar a vitória no Festival a Manuel Alegre.

Mas é injusto ver o Festival como uma espécie de sondagem daquilo que viria a acontecer umas semanas depois, nas mesas de voto. Apesar disso, figuras consultadas pelo Observador corroboram a ideia de que os portugueses votaram nas canções como se estivessem a votar em governantes.

“É natural que a votação tenha tido uma carga política, mas teve para os dois lados”, afirma Manuel Alegre, autor da letra da canção vencedora. “Foi uma experiência muito curiosa. Naquela altura havia uma grande luta política, na esquerda, principalmente. O Ary dos Santos — de quem fui amigo, embora não tivéssemos convivido muito — representava uma parte e eu a outra. No fundo era assim, independentemente das canções”, continua o político e poeta. “Mas pronto, ganhou a minha, em votação direta.”

A fotografia dos vencedores, da esquerda para a direita: Thilo Krassman, Manuel Alegre, Carlos do Carmo e José Niza.

D.R.

No que toca a este tema, Tozé Brito é bem mais explícito nos seus comentários. O autor assume claramente que houve um “duelo” que envolveu “‘A Flor de Verde Pinho’, do Manuel Alegre e o ‘Novo Fado Alegre’, do Tordo e do Ary.” Apesar de muitos falarem da música “Estrela da Tarde” (também criada pela dupla Tordo/Ary), Brito afirma que não foi nessa que “o público mais afeto ao PCP apostava”, e “todos se aperceberam disso.” Tozé Brito revela ainda que o resultado das votações que iam chegando à RTP, e que o próprio ia acompanhando, o demonstrava: “Um dia era a do Manuel que ia à frente, no outro era a do Ary, e assim sucessivamente, até ao último dia. Esse foi o politizar do festival que eu considero como sendo único. Ora, sendo o PS um partido muito mais enraizado do que o PC, acabou por ganhar porque mobilizou mais gente.”

O que se deu, portanto, foi um festival de músicas que “passaram todas ao lado da política” (diz Tozé Brito), por não terem letras de cariz declaradamente interventivo, por exemplo, mas que mesmo assim acabaram por ser “julgadas” pelo público de forma completamente política, por causa das pessoas que as fizeram.

A surpresa de Manuel Alegre e a “Lisboa Menina e Moça”

Politiquices à parte, houve mais pormenores curiosos nesta edição do Festival da Canção. Um deles por exemplo, está relacionado com a “grande partida” que pregaram a Manuel Alegre.

José Niza não só é reconhecido como médico e político mas também como um ícone destas andanças festivaleiras, tendo ganho o concurso por quatro vezes, uma delas com a canção “E Depois do Adeus”, que foi feita em parceria com José Calvário e interpretada por Paulo de Carvalho em 1974, na 12.ª edição do Festival. Amigo íntimo de Manuel Alegre, um dia fez-lhe um pedido “estranho”. “Ele chegou cá a casa e perguntou por uma pasta onde guardava alguns poemas inéditos que tinha escrito ainda no tempo do exílio”, conta o socialista. Por entre esse “molho de folhas”, houve uma que despertou em Niza particular interesse: a que tinha o poema “Uma Flor de Verde Pinho”.

[Carlos do Carmo a cantar ‘Onde Tu Moras?’ com Paulo de Carvalho]

“Ele mais tarde disse-me que copiou o poema, musicou-o e apresentou-o ao júri do festival”, diz Alegre. Acontece que tudo isto se deu sem o político e poeta saber de nada. “Só soube quando me avisaram que a música era uma das finalistas”, revela, entre risos.  Ou seja, a canção que viria a ganhar o “Uma canção para a Europa” foi entregue com o total desconhecimento do seu autor. Manuel Alegre diz que “não levou nada a mal”, até se sentiu “muito lisonjeado”.

Na final, quando já sabia que tinha ganho, aceitou participar na actuação ao vivo, declamando a primeira estrofe da música. Estava nervoso, na altura em que a câmara da RTP fechou a sua cara num plano apertado? “Nada nervoso, pelo amor de Deus! Eu já tinha um grande treino de falar em público, tanto a dizer poesia como a fazer discursos. Já tinha falado na televisão, já tinha dado muitas entrevistas… Isto não era coisa que me assustasse”, confessa. Mais tarde, quando foi altura de apresentação em Haia, Niza pediu-lhe que participasse também, mas Alegre declinou, alegando que “não tinha grande jeito para essas coisas.” Acabou por ver a performance de Carlos do Carmo na Holanda “pela televisão, em Palmela, com o Mário Soares.” — “Tínhamos lá ido fazer qualquer coisa e vimos tudo na televisão, o Carlos do Carmo a cantar. Lembro-me que a França nos deu 12 pontos, o máximo”, conclui.

Outro episódio que nasceu deste Festival teve Paulo de Carvalho e Carlos do Carmo como intervenientes.

Em 76, os dois artistas conheciam-se mal e o pouco contacto que tinham tido até então surgira indiretamente. Paulo de Carvalho afirma que eram “apenas conhecidos, por via do trabalho conjunto que eu fazia com o Ary dos Santos”, mas que a partir desse concurso se tornaram amigos próximos.

[A actuação portuguesa em Haia, na Holanda]

Durante o processo de seleção das oito canções finalistas que Carlos do Carmo presenciou, houve uma canção em particular que lhe chamou a atenção: “Eu estava com o poema na mão e alguém tocava uma melodia simples de que gostei muito. A letra é que achei mais fraca”. Embora a canção não tenha sido escolhida, Carlos “não a quis perder de vista”. Apoderou-se dela e pediu a Ary dos Santos que fizesse uma letra nova: “E foi assim que nasceu o Lisboa Menina e Moça.” Só depois é que percebeu que a música era de Paulo de Carvalho. A partir daí, os dois músicos começaram a trabalhar mais vezes “e mais de perto”, tendo criado êxitos como “Os Putos” ou “O Homem das Castanhas”.

Mais tarde, já na grande gala final da Eurovisão, em Haia, Carlos do Carmo protagonizou outro momento interessante. Cada representante tinha direito a duas slots de ensaio com a orquestra numa sala, onde sem ser o pessoal técnico e os músicos, “só estavam produtores e jornalistas”, diz o próprio Carlos do Carmo. Acontece que, como era habitual, tinham sido feitas duas versões alternativas da canção vencedora, uma em inglês e outra em francês, para o caso do interprete preferir exprimir-se numa língua mais universal. Num desses momentos de ensaio, Carlos decide seguir um impulso: “Por iniciativa minha, decidi cantar a música em francês — afinal o que interessava era treinar a melodia.” No final desta interpretação, a surpresa: “De repente fui engolido por jornalistas que me perguntaram se ia cantar em francês”, explica o fadista. A resposta foi negativa, Carlos vincou que cantava em português porque estava ali a representar o seu país, Portugal. Um jornalista ripostou: “Sabe, se cantasse em francês, seguramente que ganhava o festival.”

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