Sessenta e uma. É este o número de vezes que a palavra “continuar” aparece na moção estratégica de José Luís Carneiro, o candidato à liderança do PS que faz questão de se assumir como um herdeiro do costismo e um garante da continuidade das políticas deste Governo. Com um capítulo dedicado ao elogio das contas certas e outras virtudes do “legado sem precedentes” costista, Carneiro aponta para o futuro com três prioridades em vista: um programa para apoiar as pequenas e médias empresas, um pacto que envolva os profissionais da Saúde e outro para a crise na Habitação (a que se junta a já anunciada reforma para a Justiça).
Ao longo do documento, a que o Observador teve acesso e que será entregue na sede do PS esta quinta-feira, Carneiro vai explicando as suas prioridades em termos de políticas públicas, mas também a sua visão para o país e o Governo. Desde logo, mostrando-se ultra-europeísta — um dos focos principais da moção tem a ver com o posicionamento do país na Europa, incluindo propostas como a criação de um “instrumento orçamental permanente” inspirado no Plano de Recuperação e Resiliência —- e garantindo que esta será a primeira moção em Portugal a “procurar alinhar a proposta política de um partido político com a Agenda 2030 e com os objetivos de desenvolvimento sustentável”, como explica ao Observador o seu coordenador, o atual secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, André Moz Caldas.
No documento, o socialista insiste também em marcar as diferenças estratégicas relativamente ao principal candidato, Pedro Nuno Santos, no que a possíveis acordos e alianças diz respeito. A expressão chave é a que Carneiro tem usado de forma permanente desde que é candidato: é importante que o PS mantenha a sua “autonomia estratégica”.
Se não se mostrar firme na defesa dessa autonomia, e olhando para exemplos do passado, os planos socialistas poderão sair furados, alerta. “Imagino que haja uma perspetiva diferente” na moção de Pedro Nuno, admite Moz Caldas, frisando que é preciso fazer entendimentos à esquerda e à direita para alcançar “reformas profundas” para o país.
Num documento que lança ideias para vários “pactos” ou “compromissos”, Carneiro volta a apresentar-se como um candidato do diálogo e da moderação, capaz de conversar com vários setores da sociedade e promover a negociação em sede de concertação social. É para lá que remete a definição mais concreta de objetivos futuros, como a subida do salário mínimo — sem incluir referências específicas a uma outra negociação, essa mais quente para o PS: a do tempo de serviço dos professores.
Pequenas empresas, Habitação e Saúde são prioridades de topo
A moção aponta desde logo três prioridades: “crescimento e emprego, com trabalho digno e melhores salários”, onde se insere o programa Mais PME, para melhorar as condições de financiamento da tesouraria de pequenas e médias empresas; a “emergência na Habitação”, que pretende combater com um pacto “com vista ao aumento significativo do stock de fogos de habitação a custos controlados“, envolvendo um aumento do parque habitacional público e da nova construção; e o investimento na Saúde, “no âmbito do Compromisso Plurianual para a Saúde, a estabelecer com os agentes e profissionais do setor”, que inclua investimento em infraestruturas e a “dignificação” dos trabalhadores.
Para concretizar essas três prioridades, Carneiro conta ainda com mais alguns principais planos de ação: aprovar uma nova agenda para a década, como o PS fez em 2015; renovar os acordos de concertação social em matéria de salários e competitividade, assim como os acordos com sindicatos da Função Pública que António Costa assinou; fixar novas metas para aproximar o salário mínimo português do espanhol nos próximos quatro anos; aprofundar a proteção laboral dos trabalhadores das plataformas digitais; criar o programa Agentes da Mudança para apoiar a contratação de jovens qualificados no contexto da transição energética e digital nas empresas; alargar a gratuitidade das creches ao pré-escolar; promover o reforço da rede de transportes públicos; promover um “Compromisso para a Justiça” em diálogo com “forças democráticas” e representantes do setor; e apresentar uma reforma do sistema eleitoral em seis meses — sendo que mais à frente na moção se recupera a ideia de pôr o PS a “suscitar e liderar um amplo debate nacional” sobre um possível novo referendo a propósito da regionalização eternamente adiada.
Sendo esta uma disputa interna, o atual ministro também tem ideias para a organização do partido, que quer “rever”, declarando a sua intenção de “intensificar” o contacto do líder e dos órgãos de topo com as estruturas e promover “reflexão, coordenação e decisão à escala intermunicipal”.
O “legado sem precedentes” de Costa
A moção de José Luís Carneiro dedica um capítulo inteiro aos feitos dos Governos de António Costa, a quem reconhece “um legado sem precedentes” e o mérito de ter provado que existe “uma alternativa de sustentabilidade financeira e de justiça social”.
Neste trecho da moção, são lembrados os excedentes orçamentais e a percentagem da redução da dívida, assim como os sucessivos aumentos do salário mínimo da era Costa ou das exportações.
Também são mencionadas as reversões de medidas do tempo da troika, os aumentos de orçamentação no SNS e muitas outras medidas, incluindo de áreas que Carneiro conhece bem e pelas quais esteve responsável enquanto secretário de Estado das Comunidades e ministro da Administração Interna (como a criação do Centro de Atendimento Consultar ou o recenseamento eleitoral automático de emigrantes, assim como a redução da criminalidade violenta em Portugal).
Mas os exemplos sobre os méritos de Costa vão das medidas para a modernização da Justiça às decisões sobre o combate às alterações climáticas, das mudanças no cadastro florestal à promoção da natalidade ou às medidas para a Habitação. A lista de elogios é longa e exaustiva. E a moção acaba por defender que cabe agora ao PS “a responsabilidade de reafirmar a relação de confiança que sempre manteve com o povo português e garantir a continuidade da sua governação”, uma governação “de resultados e contas certas”.
“Foi possível e continuará a ser possível garantir o equilíbrio orçamental sem pôr em causa o crescimento e o investimento e assim reduzir o peso da dívida pública, garantindo um “porto seguro” para a economia portuguesa, num cenário de tanta incerteza internacional”, argumenta Carneiro, que se tem apresentado precisamente como o candidato mais seguro, responsável e moderado (a expressão “porto seguro” já tinha, de resto, sido utilizada pelo próprio António Costa para defender este Orçamento).
E, consciente de que o principal adversário, Pedro Nuno Santos, tem feito críticas públicas ao ritmo acelerado de redução da dívida pública — sem discordar do princípio –, avisa: “Não compreender a necessidade de reduzir a dívida pública é não compreender o risco que recai sobre a economia portuguesa, sobre as empresas e sobre as famílias”.
Carneiro diz agora querer um PS de causas, que prossiga o caminho de “desenvolvimento” do país com base também no investimento público que virá do dinheiro europeu, agora, mas que garanta condições para que esse nível de investimento se mantenha depois.
E defende a necessidade de apresentar a eleições um PS com elevados padrões “éticos”, pelo menos entre os seus militantes ou independentes que disputem eleições pelo PS — para isso terão de “assinar uma declaração de compromisso”.
O “partido charneira” que fala à esquerda e à direita
Na moção que vai apresentar aos militantes socialistas, Carneiro faz ainda questão de vincar a sua posição na questão que, até agora, mais o separa de Pedro Nuno Santos: a política de alianças e acordos do PS. E volta a defender que é essencial preservar a “autonomia estratégica” do PS, para se distanciar de um opositor que, ainda que defendendo essa mesma autonomia, se mostra à partida mais aberto a uma hipotética geringonça 2.0.
“O nosso combate – aprendemo-lo com Mário Soares – é pelo socialismo em liberdade! Temos memória de quanto isso custou a construir. E também lembramos que sempre que o PS abdicou da sua autonomia estratégica foi penalizado nas urnas pelo povo português”, pode ler-se na moção, que coloca o PS como um “partido charneira” que não pode confundir alianças com “desígnios estratégicos”.
“O PS sempre honrou as suas alianças e sempre contribuiu para a estabilidade e para a governabilidade do país. Por isso, quanto maior é a força eleitoral do PS, mais garantida fica a governabilidade”, defende o documento, que devolve o PS ao seu “papel histórico” de “promover entendimentos tanto à esquerda como à sua direita, buscando consensos alargados em áreas estratégicas para o desenvolvimento da democracia e o país”.
Sempre — e aí poderá encontrar um ponto em comum com Pedro Nuno — focado em dar uma garantia: “O PS constituirá sempre um obstáculo à ascensão da extrema-direita“. Um discurso com mira apontada ao Chega que entrará na campanha eleitoral (mais uma herança do costismo?).