Enquanto a fase de instrução do megaprocesso GES/BES avança esta semana com sessões a um ritmo quase diário — com audições de testemunhas e arguidos — continua a pairar sobre o caso a sombra da prescrição de vários crimes. O alerta foi dado pelo Ministério Público logo no início de janeiro e reforçado em abril, depois de os advogados que representam a massa insolvente do BES pedirem que o processo fosse considerado urgente para não parar nas férias judiciais — uma vez que a instrução já teve de ser interrompida por motivos de saúde do juiz Ivo Rosa. Ainda assim, o magistrado que tem nas mãos o poder decidir se o processo avança ou não para julgamento e como (no caso Marquês deixou cair 172 crimes, não pronunciou 23 arguidos e decidiu separar processos) tem uma opinião diferente.
Ivo Rosa não ignora a “a aproximação do prazo máximo de prescrição do procedimento criminal”, sobretudo em relação aos crimes de falsificação de documento, puníveis com até três anos, e de infidelidade, puníveis com até 3 anos ou multa, imputados a 13 dos 30 arguidos do processo que nasceu do colapso do BES. No entanto, dada a complexidade do caso, o magistrado não vê na declaração de urgência uma solução. Isto, porque, defende, o processo a correr em férias judiciais ia obrigar à intervenção de juízes de turno que não o conhecem. E a celeridade do caso, do seu ponto de vista, depende mais de uma equipa de assessores que o ajudem, do que propriamente de prazos
“Não se pode esperar que um processo desta dimensão e complexidade que durou seis anos de inquérito, com uma acusação deduzida por sete procuradores, em que à defesa foi conferido o prazo de 14 meses para requerer a abertura de instrução, que a instrução decorra com celeridade ou que seja realizada dentro do prazo legal”, insistiu no despacho onde recusou a urgência do caso, a 26 de abril. E onde lembrou que além das sessões para inquirir testemunhas (são 241) e interrogar arguidos, que já têm marcação até setembro, é preciso ouvir escutas que ocorreram durante seis anos num total de 22 alvos, ler 54 volumes de transcrições, ver milhares de mensagens de correio eletrónico, ler documentos, analisar perícias.
Certo é que uma lista recentemente levada ao processo pelo Ministério Público, no início de abril, um documento que vem dar razão ao requerimento da massa insolvente do BES para declarar o processo urgente, aponta para o perigo de prescrição de 17 crimes já em 2024, altura em que muitos duvidam que a haver julgamento este esteja concluído. Além disso, 21 outros crimes começam a cair no ano seguinte. Tal como o Observador já tinha noticiado, são cerca de 40 dos 361 crimes em causa que podem cair em relação a 13 arguidos, dois deles (caso tal aconteça) ficam mesmo livres do processo.
“O procedimento criminal extingue-se logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido cinco anos”, explica o Ministério Público na resposta consultada pelo Observador. A lei prevê que a contagem deste prazo exclua o dia da constituição de arguido assim como o da notificação da acusação. A somar a estas parcelas, com a pandemia de Covid-19 houve também uma lei que veio suspender estes prazos por dois meses e 27 dias. E foi sob estas premissas que os procuradores fizeram as contas, arguido a arguido. Foi com base nessas contas que o Observador preparou a lista de todos os crimes em risco de prescrever.
O Ministério Público ainda vai tentar reverter a decisão de Ivo Rosa através de um recurso que enviou para a Relação de Lisboa onde reitera o pedido de o processo ser considerado urgente.
A acusação. Anatomia de uma associação criminosa que destruiu o Grupo Espírito Santo
Ricardo Salgado
O antigo presidente executivo do BES e administrador de várias sociedades do Grupo Espírito Santo foi constituído arguido a 20 de julho de 2015 e formalmente acusado cinco anos depois por 65 crimes, entre os quais associação criminosa (um), burla qualificada (29), corrupção ativa (12), branqueamento de capitais (sete), falsificação de documento (nove), infidelidade (cinco) e manipulação de mercado (dois). Há 13 crimes de falsificação e infidelidade que correm o risco de prescreverem na perspetiva do Ministério Público.
José Manuel Pinheiro Espírito Santo Silva
Era administrador de várias empresas do grupo e presidia ao Banque Privée Espírito Santo e de várias sociedades do Grupo Espírito Santo. Foi constituído arguido a 13 de abril de 2016 e acusado por sete crimes de burla qualificada e um de infidelidade. Nunca chegou a ser ouvido no processo porque quando foi notificado para tal, tinha sofrido um AVC que o impossibilitou de o fazer.
Francisco Machado da Cruz
Era o contabilista do Grupo Espírito Santo e administrador de várias sociedades do GES. Foi constituído arguido a 24 de setembro de 2015 e acusado por um crime de associação criminosa, quatro de manipulação de mercado, 20 crimes de burla qualificada, três crimes de falsificação de documento, quatro crimes de branqueamento e um crime de infidelidade.
Amílcar Morais Pires
O antigo administrador financeiro do BES e administrador de várias sociedades do GES era o braço direito de Ricardo Salgado. A 28 de setembro de 2015 foi constituído arguido e acusado por crimes de associação criminosa, corrupção passiva no setor privado, burla qualificada, branqueamento de capitais, manipulação de mercado, falsificação de documento e infidelidade.
Pedro Luís Costa
Alto quadro do BES que trabalhava para a Espírito Santo Ativos Financeiros foi constituído arguido a 14 de maio de 2015 e acusado depois por crimes de corrupção passiva no setor privado, infidelidade, três crimes de burla qualificada, um crime de branqueamento de capitais e um crime de manipulação de mercado, além dos crimes de infidelidade que têm um prazo de prescrição mais curto.
Cláudia Boal de Faria
A ex-diretora do Departamento de Gestão de Poupança do BES foi também constituída arguida a 14 de maio de 2015. Está acusada por crimes de associação criminosa, corrupção passiva no setor privado, burla qualificada, infidelidade e manipulação de mercado.
Pedro Cohen Serra
O funcionário do Departamento Financeiro, Mercados e Estudos do BES foi constituído arguido a 5 de dezembro de 2017, dois anos depois de Ricardo Salgado. Foi acusado pelo Ministério Público por crimes de associação criminosa, corrupção passiva no setor privado, burla qualificada, branqueamento de capitais, manipulação de mercado, falsificação de documento.
Nuno Escudeiro
Também funcionário do Departamento Financeiro, Mercados e Estudos do BES, foi constituído arguido meses depois de Pedro Serra, a 5 de fevereiro de 2017. Foi depois acusado dos crimes de associação criminosa, corrupção passiva no setor privado, burla qualificada, branqueamento de capitais, manipulação de mercado e falsificação de documento.
Pedro Góis Pinto
Também trabalhava no Departamento Financeiro, Mercados e Estudos do BES Crimes. Foi constituído arguido a 28 de setembro de 2017 e acusado por crimes de associação criminosa, corrupção passiva no setor privado, burla qualificada, infidelidade, branqueamento de capitais, manipulação de mercado.
Etienne Cadosch
O antigo diretor da Eurofin Group, ex-funcionário do Grupo Espírito Santo, é arguido no processo desde 5 de junho de 2018. Acusado dos crimes de associação criminosa, corrupção passiva no setor privado, burla qualificada, infidelidade, branqueamento de capitais, manipulação de mercado, falsificação de documento ainda tentou que o processo fosse entregue às autoridades suíças, onde vive, mas o juiz Ivo Rosa recusou.
Michel Charles Creton
O funcionário do Eurofin Group, constituído arguido no mesmo dia que Etienne Cadosch, foi acusado de associação criminosa, burla qualificada, infidelidade, branqueamento de capitais e manipulação de mercado.
João Alexandre Silva
O antigo diretor do BES Madeira, arguido desde 28 de junho de 2017, foi acusado por dois crimes de falsificação de documento. Se os crimes prescreverem, livra-se do processo.
Paulo Nacif Jorge
Também o ex-funcionário do BES Madeira, constituído arguido a 19 de julho de 2017, vê o processo contra ele cair caso o único crime por que está acusado, o de falsificação de documento, prescreva.