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Chegou a Paris a revelação de Ângelo de Sousa

"La couleur et le grain noire des choses" inaugurou na Gulbenkian de Paris para dar a conhecer a obra do artista português, feita de íntima e infinita liberdade.

Franceses não faltam pelas ruas do Porto, mas a partir de agora Paris conta com mais um portuense, o notável artista plástico Ângelo de Sousa (1938-2011) em representativa exposição multimédia na galeria do centro cultural da Delegação em França da Fundação Gulbenkian (onde também há uma biblioteca com abundante informação sobre arte portuguesa, em cerca de 8000 livros e revistas).

«La couleur et le grain noire des choses», patente até meados de Abril, com curadoria de Jacinto Lageira, um professor catedrático de Estética e Filosofia da Arte na Sorbonne, é de certo modo a primeira retrospectiva póstuma de Ângelo de Sousa, seis anos após o seu desaparecimento — «Encontros com as formas», uma mostra de fotografia e vídeo, teve lugar em Abril de 2014, organizada por Sérgio Mah na galeria da Fundação EDP, em Lisboa.

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Ângelo de Sousa nasceu em 1938 em Lourenço Marques e morreu em 2011 no Porto, aos 73 anos

No final do ano passado, os laboratórios Bial promoveram a edição de 7500 exemplares fora do mercado de Ângelo de Sousa: lógica da percepção de Bernardo Pinto de Almeida, o crítico de arte — e amigo de longa data — que mais atenção consistente lhe dedicou. E há muitos poucos dias surgiu também uma caixa com oito Carnets d’imagens — Collected Images, uma antologia fotográfica ainda preparada pelo próprio artista e agora apresentada por Sérgio Mah em edição NeAdS (Núcleo de Estudos Ângelo de Sousa) com apoio da Fundação Gulbenkian: um trabalho deslumbrante, uma vez mais serial, em que se acumulam auto-retratos (caderno a), crónica urbana (b), a mão esquerda do artista (d), a linha na natureza (c), o quotidiano «escultural» em lençóis a secar, carros encapados, papéis amarrotados (e), e muito mais. Estas publicações recentíssimas, alguns catálogos e monografias e, num ecrã, o documentário-entrevista de Jorge Silva Melo Ângelo de Sousa: Tudo o que Sou Capaz (Midas, 2010) estão na sala multimédia à disposição dos visitantes da exposição, que ocupa cinco salas no piso superior.

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O singular Ângelo

Nascido em Lourenço Marques, Ângelo de Sousa mudou-se para o Porto com 17 anos, para estudar belas-artes na mesma escola onde se tornaria professor sete anos mais tarde, depois de ter concluído o curso com nota máxima. Rapidamente se haverá de tornar um dos mais destacados artistas activos naquela cidade. Fez cenários para o Teatro Experimental do Porto (por exemplo, Credores de August Strindberg), ajudou a criar a Cooperativa Árvore (de que foi o sócio n.º 1), desenhou capas para programas e boletins do impactante cineclube da cidade, ilustrou uma mão cheia de livros da muito esforçada editora Inova e ganhou a estima do poeta Eugénio de Andrade, que escreveu para os catálogos das suas primeiras exposições individuais.

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Quando em 1959 estudantes da ESBAP, entre os quais Álvaro Siza e Alcino Soutinho, mostraram os seus trabalhos na Sociedade Nacional de Belas-Artes de Lisboa — numa tentativa de esbater o flagrante afastamento cultural entre as duas cidades, subsidiada pela Gulbenkian —, Ângelo de Sousa foi o escolhido para a capa do catálogo dessa exposição.

A simplificação do seu nome para «Ângelo», como se tornou conhecido, sugere-nos o impacto duma Aparição e condiz com a invulgaridade da «Saudação» que em 1976 o crítico Fernando Pernes lhe dirigiu no título dum texto para certo catálogo (v. Dizer a Imagem. Antologia de textos críticos, Serralves, 2015, pp. 124-27). Um artista novo de grande fôlego entrara em cena e fazia-se notado: a iconografia vegetal e o «expressionismo alegre» dos seus primeiros trabalhos haviam de dar passagem a grandes telas quase monocromáticas de tão surpreendente intensidade luminosa e essencialidade plástica, convidando à contemplação serena daquelas «paisagens de tinta» com micrograduações tonais que durante muito tempo, e ainda hoje, se tornariam ícones da sua singularidade artística.

Três conjuntos na exposição parisiense são notáveis representantes dessa procura de algo novo, que o artista definiu num conhecido aforismo, ou programa: «O máximo de efeitos com o mínimo de recursos, o máximo de eficácia com o mínimo de esforço, e o máximo de presença com o mínimo de gritos»

Mas essa cristalização muito pouco nos diz, verdadeiramente, da imparável pesquisa estética multimédia deste artista cuja re-descoberta agora se configura como um desafio para os próximos anos — inclusive por gerações mais novas de artistas e de público — sobretudo se, ou quando, a sua obra for cotejada directamente com a de artistas estrangeiros hoje sublimados por cotações internacionais ou até simplesmente colocada no ambiente mais global do seu tempo. Se presenças (e alguns prémios) em exposições colectivas no estrangeiro não faltam na trajectória de Ângelo de Sousa, a pujante pluralidade — e simultaneidade — da sua inquirição aparece-nos ainda por conhecer. Mostras como esta de Paris são um aviso, um alerta e uma promessa nesse sentido.

Antes de se interessar por fotografia, a ponto de viver em Londres em 1967-68 para estudar na Slade e em St Martin’s School, Ângelo de Sousa desenvolvera trabalho escultórico em centenas de ensaios e obras de pequeno formato a que chamou, sem presunção, «engenhoças». Esta curiosidade e perícia oficinal levou-o mesmo a reconhecer, numa entrevista, que no início a escultura lhe surgira como principal meio de criação, e que também se interessara vivamente por cinema. A exigida ciência de materiais e máquinas, a incansável vontade de desenhar (e de pensar desenhando), o método serial de trabalho e a aceitação dos resultados que o acaso do seu experimentalismo paciente deu convergiram para uma simplificação, uma depuração, um despojamento, livres da carga incongruente dum juízo político ou da imposição moral de qualquer tipo.

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Três conjuntos na exposição parisiense são notáveis representantes dessa procura de algo novo, que o artista definiu num conhecido aforismo, ou programa — «O máximo de efeitos com o mínimo de recursos, o máximo de eficácia com o mínimo de esforço, e o máximo de presença com o mínimo de gritos»: logo à entrada os «Slides de cavalete», uma extensa experiência serial com múltiplos e variados reflexos de cor sobre vidro despolido; o filme de 1968 duma mão vista através de filtros coloridos aplicados na lente do projector; e a série de fotografias de lenços de papel vincados e depois estendidos, de 2005 (cat., pp. 118-21).

Numa entrevista a Manuel Resende, em Fevereiro de 1981, aceitou ser um operador estético e admitiu não usar nos seus trabalhos «molduras de nenhuma espécie». Também disse algures que a pintura «é apenas uma das actividades a que às vezes me dedico. Posso dedicar-me a outras, a não fazer nada (que é uma coisa admirável)».

Infinitamente livre

A recusa de rótulos ou catalogações — com as quais demasiadas vezes se procura fixar a criação ou a influência, desviando-a do essencial, a consciência e a prática artística inerente à natureza humana — foi também um dos não pequenos méritos de Ângelo de Sousa, que uma vez disse não estar interessado em explicar-se: «Mesmo que eu fosse capaz, de facto, porque é que fiz isto ou aquilo, penso que seria contraproducente eu aparecer com o ar de quem tem a verdade sobre a minha obra. Seria impedir outras possibilidades de interpretação, o que não me interessa de maneira nenhuma.» O sem título dos seus trabalhos é bastante comum.

A beleza do mundo está em toda a parte, e o artista — «que anda de olho arregalado à procura de coisas» — pode dá-la de muitas maneiras, por exemplo caçando-a entre as pequenas surpresas do quotidiano: fotografando com uma lente poderosa rolos de cotão em casa, pingos de orvalho numa teia de aranha, lastros cruzados de aviões no céu; desenhando com uma trivial esferográfica de tambor com várias cores; erguendo totens espelhados num jardim urbano; ou reutilizando potes plásticos de iogurte amalgamando-os por aquecimento até lhes dar a configuração de Orelhas — a magnífica peça de 1975 pertencente ao Museu de Serralves e aqui exposta.

Esta exposição neste aqui e agora surge num momento auspicioso para o reconhecimento além fronteiras que o artista, na sua infinita e íntima liberdade, nunca buscou nem orquestrou, para simplesmente poder afirmar o seu «puro dizer no tempo», como tão bem Eugénio de Andrade disse um dia

Depois de duas grandes acções em 2016 — Amadeo de Souza-Cardoso no extraordinário Grand Palais, e «Les universalistes», uma extensa mostra de arquitectura portuguesa do século passado na prestigiada Cité d’Architecture et du Patrimoine —, a Delegação em França da Gulbenkian começa 2017 mostrando em Paris pintura, desenho, escultura, fotografia e vídeo dum artista que expôs pela primeira vez num duo com um consagrado, nada menos do que Almada Negreiros.

Glosando o próprio Ângelo de Sousa, que repetia, sem pausa nem pretensão, que «as circunstâncias são determinantes», talvez se possa dizer — ou desejar — que esta exposição neste aqui e agora surge num momento auspicioso para o reconhecimento além fronteiras que o artista, na sua infinita e íntima liberdade, nunca buscou nem orquestrou, para simplesmente poder afirmar o seu «puro dizer no tempo», como tão bem Eugénio de Andrade disse um dia.

O Observador viajou a convite da Delegação em França da Fundação Calouste Gulbenkian

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