Gabriel Abrantes, o artista plástico e cineasta, que com cãezinhos felpudos e uma sátira à maior estrela do futebol contemporâneo conquistou o Grande Prémio da Semana da Crítica de Cannes (Diamantino), fez um filme de terror.
“Um dos meus realizadores favoritos de sempre, o [Stanley] Kubrick, saltava de género em género”, diz ao Observador no hall do cinema de um grande centro comercial. Ouve-se o ruído da máquina que aquece a manteiga das pipocas. O cenário não podia ser mais apropriado. Gabriel Abrantes, 40 anos, reafirma o desejo de fazer cinema popular, caso a comédia romântica surrealista que é Diamantino ainda não o tivesse denunciado. “Uma comédia romântica é vista como um filme de pipoca, de alguma maneira. Só que eu gosto de filmes-pipoca. Então, para mim, parece-me completamente natural continuar com outro género.”
Desafiando as expectativas, Abrantes atirou-se de cabeça naquela que é a sua primeira longa-metragem realizada a solo e a primeira incursão no género de terror. A Semente do Mal, mostrado pela primeira vez na secção de indústria do Festival de Toronto, no Canadá, e que teve uma calorosa receção no festival MOTELX, em Lisboa, no ano passado, estreia-se esta quinta-feira em mais de 30 salas de cinema pelo país. No final do mês aterra em França, onde se mostra em mais de 200 salas de cinema.
Na linha entre o humor divertido e distorcido, a história tem no centro uma mãe — o título internacional do filme é Amelia’s Children, mas temia-se que na versão portuguesa Os Filhos de Amélia fosse entendido como um “filme histórico”, culminando na expressão que muito se aproxima ao A Semente do Diabo (Rosemary’s Baby), mas do qual não bebe inspiração, garante o cineasta. Cita antes The Shining (1980), Hereditary (2018), It Follows (2014) ou o recente Barbarian (2022).
Protagonizado por Anabela Moreira, Alba Baptista, Carloto Cotta, Rita Blanco, Beatriz Maia e pela atriz norte-americana Brigette Lundy-Paine, A Semente do Mal acompanha a história de Edward (Carloto Cotta) e a sua namorada Riley (Brigette Lundy-Paine) numa viagem ao norte de Portugal. “Ele cresce nos Estados Unidos sem conhecer a família. Fala inglês, não sabe que é português, quando faz um teste de ADN e descobre que tem uma mãe um irmão gémeo em Trás-os-Montes”, resume o autor.
Há um paralelismo com a história do realizador, nascido na Carolina do Norte (EUA) e cuja avó cresceu na aldeia de Anelhe, perto de Vidago, em Trás-os-Montes. Mas a autobiografia pára aí. “Não cresci nos Estados Unidos sem saber quem é a minha família nem fui à procura das minhas raízes dessa forma.” Na realidade, o filme pode servir como “aviso” para quem “vai à procura do sentido unicamente nas suas raízes”. “O Edward cai numa armadilha ao ir encontrar a sua família biológica. Pode acontecer de uma maneira mais real quando alguém quer conhecer os pais biológicos e aquilo não corre tão bem como estavam a fantasiar.”
A família como espaço opressivo ou a busca de uma identidade não são temas novos na sua filmografia, já explorados em obras como Diamantino (co-realizada com o americano Daniel Schmidt, melhor amigo com quem continua a colaborar) ou na curta-metragem Liberdade (2011). Ressurgem com o tempo do terror e embaladas pelo cancioneiro português, que Gabriel procurou descobrir. “Achava o Marco Paulo um bocado mau até começar a ouvir as gravações que ele tinha feito mais antigas. Fui pelo catálogo da Valentim de Carvalho, fui ver os primeiros álbuns que ele tinha feito e eram gravações incríveis, com orquestra. Fui atrás disso e apaixonei-me por várias músicas.” Como Mexe-Te Mais um Pouco, tema de Ágata do disco de 1989, Amor Latino, “um pop hit brutal” que acompanha a cena dançante do filme.
É nesse jogo de desafiar as expectativas — “decidi arriscar e fazer a minha própria banda sonora com a inspiração do [John] Carpenter que fazia as suas próprias bandas sonoras” — que Gabriel se move. “Fiz uma lista de monstros de cinema de terror: vampiros, lobisomens, bruxas, ogres; e fiz uma lista de relações familiares: amigos, irmãos, avós, avó e lobisomem. Que filme é que me começa a vir à cabeça? Havia ali uma que era mãe com dois filhos gémeos, depois a bruxa, comecei a inventar. Foi a semente…”
É uma evidência que o seu consumo e influências fizeram florescer um filme de terror regado pela sátira e a comédia. “A personagem do Jack Nicholson no The Shining é completamente exagerado. Quando grita I’ll huff, and I’ll puff, and I’ll blow your house in, está a citar Os Três Porquinhos. Para mim isso é cómico. Vejo muita comédia n’O Silêncio dos Inocentes, na personagem do Hannibal. O Parasitas também é um filme que é hilariante, ao mesmo tempo que tem momentos super assustadores e que também é político, fala de classes. É super natural ter ido atrás disso já que alguns dos filmes de terror que mais gosto também têm comédia.”
A equipa seguiu-lhe o tom, com Anabela Moreira (irreconhecível no papel de uma mãe obcecada com a juventude) a improvisar uma sequência de tiradas sobre batatas fritas. “É uma das minhas cenas favoritas no filme”, admite o realizador. “A Anabela estuda muito, escreve e geralmente faz sugestões”. Já tendo trabalhado com ela e com Carloto Cotta, que aqui surge em dose dupla, “há um intimidade que facilita” várias coisas. “A Anabela e o Carlotto tiveram a experiência no Diamantino que é um filme talvez até mais bizarro à primeira vista do que este, mas depois viram o resultado e que aquilo funcionou por isso. [A intimidade] deixa-lhes de tomar mais riscos”, crê.
Já a atriz Alba Batista (Warrior Nun), que consta nos posters e materiais de divulgação do filme, chegou ao projeto através de um casting. “Foi super alargado, pedi a todas as agências que conhecia, sem nenhum limite de idade. Mandaram-me imensas tapes a fazerem uma cena e foi óbvio. Era uma cena difícil que não tinha diálogo. Ela convenceu-me logo. Num vídeo feito em casa, com o iPhone.”
A Semente do Mal passa-se em Trás-os-Montes, mas as filmagens aconteceram numa quinta em Sintra, utilizada em muitas produções portuguesas e com um ambiente propício ao projeto. “Tem um mito à volta que é assombrada e que há um fantasma que aparece lá”. Mas já faz tempo que a criação artística de Gabriel Abrantes tem muito de fantasmagórico.
O próximo projeto em que está a trabalhar é “um filme para miúdos”, uma longa-metragem de animação com base na curta Os Humores Artificiais (2016), que integrou a seleção portuguesa na Bienal de Artes de São Paulo e competiu pelo Urso de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Berlim. “A história é a de um robô que quer ser artista só que é ilegal a inteligência artificial fazer arte. Só que o robô a única coisa que quer é ser pintor. Então tenta fazer arte à escondidas”, sumariza.
Um piscar de olho claro ao trabalho que desenvolve enquanto artista plástico (foi nos idos 2009 que ganhou o Prémio Novos Artistas da EDP). “Tudo se mistura. Estou sempre a pensar nestas coisas, gosto de experimentar diferentes medias, por curiosidade. Há ideias, interesses, curiosidades que podem parecer muito distintos, mas vêm mais ou menos da mesma cabeça”, afirma.
Questionado sobre os fantasmas da sua última exposição individual, em que explorou a relação entre a pintura e a inteligência artificial (Nobody Nowhere, em dezembro de 2022, na galeria Francisco Fino, em Lisboa), solta que está a fazer uma obra para a exposição coletiva que inaugurará Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian (CAM). “São quatro animações e são fantasmas num mundo abandonado pós-apocalíptico, tudo inundado ou com fogos numa floresta. Só que os fantasmas continuam a ter as discussões que tiveram na vida, em loop, como se estivessem alheios à situação que está à volta. Retrata parte do que sinto sobre o estado do mundo hoje. Estamos todos em guerras do Twitter e do Insta e as águas estão cada vez mais altas, o Ártico cada vez mais derretido.”
Será justo colocar o peso nos ombros dos artistas e questionar-lhes o que pode a arte fazer?. “É uma pergunta difícil”, contesta. “A arte ajuda-nos a viver e a enfrentar, mas também tem tantas funções e ao mesmo tempo não tem nenhuma. Pode ser entretenimento, pode ser uma forma de juntar as pessoas. Se for uma arma uma política é difícil, muitas vezes fica propaganda, demasiado simplista.”
Foi, aliás, esse o tema que inspirou a sua curta Les Extraordinaires Mésaventures de la Jeune Fille de Pierre (2019), sobre uma escultura que já não quer ser arte, que foge do Museu do Louvre e se infiltra num protesto político contra a desigualdade. “Só que depois leva a porrada da polícia, parte a perna e começa a perceber e a valorizar o que perdeu ao transformar-se de arte num ativista político”, continua. “Não tenho nenhum problema com artistas serem também ativistas. A arte ativista é que algumas vezes pode ficar propagandística, e tentar passar uma mensagem demasiado simplista, direta. Também há valor nisso, adoro os grandes murais do 25 de Abril. Isso é arte popular de propaganda, mas linda.”
Onde fica Gabriel Abrantes nesse espectro? “Fazer um filme de terror é de alguma maneira tentar fazer uma forma de arte que também é entretenimento, que também é popular. Tenho os braços abertos a alguém que possa ser um especialista nas artes plásticas, mas também a alguém que não lhe interessa para nada a pintura ou a história de arte. Na escolha do género e da forma em que faço estes filmes tem um bocado disso.”
Nas telas de Gabriel Abrantes vimos fantasmas, mas com um elemento inédito até então: o recurso à inteligência artificial. “Adoro tecnologia, adoro efeitos especiais, 3D. Estou a fazer a maior parte da banda sonora no computador com sintetizadores e no Logic. Gosto muito de trabalhar com Photoshop, com Premiere, gosto de tudo que é tecnológico. Sinto-me muito em casa”.
Entusiasmado com experiências recentes no Midjourney (programa que cria imagens com recurso a IA), reconhece os “problemas grave de direitos de autor”, tem os processos mais mediáticos na ponta da língua, aponta a importância do debate. “Estou super curioso para ver como é que isto vai evoluir até aos problemas mais graves, económicos. Que impacto é que isto vai ter na economia? Que trabalhos vão desaparecer?”
No trabalho que desenvolve, seja no cinema ou nas artes visuais, ainda não foi substituto, mas talvez não recusasse um duplo (ou um gémeo). “Se me tivesse concentrado só em longas talvez estivesse noutro ponto da minha carreira. Se estivesse a fazer só exposições de pintura talvez estivesse noutro ponto da minha carreira na pintura”, admite. Tem optado pelo equilíbrio, que lhe confere “uma identidade muito própria” enquanto artista, mas que lhe causa assumida “dispersão”. Em termos práticos, foca-se num projeto de cada vez. Passa um ano a pintar, seis meses a escrever um guião. “Vou por blocos, para não ficar completamente baralhado.”
Se na pintura a fluidez é maior — “não tenho grandes ansiedades criativas a pintar, tenho um processo que sigo e de que gosto, às vezes fico à procura, mas é um processo feliz” — o cinema é mais “doloroso”. As ideias fluem — tem quatro filmes em marcha, dois thrillers, um filme de animação e outro de terror —, mas o desenvolvimento dos guiões é “penoso”. “Na escrita sou cheio de ansiedade, a ansiedade da página em branco, writer’s block, etc”. Não raras vezes refugia-se em casa de uma amiga no campo. “Deixo o computador e o telefone no carro, vou para um quartinho isolado só eu com um bloco de notas e escrevo durante quatro horas. É uma regra: não posso sair do quarto”, sorri.
Mas o cenário idílico é só uma das estratégias para amparar desassossegos. “Tento tudo para dar a volta a estas ansiedades e bloqueios.” No telemóvel tem uma aplicação chamada Flow State, que o obriga a, por períodos determinados, não parar de escrever. “Se paras de escrever durante mais de cinco segundos, apaga tudo”, lança num tom divertido, antecipando uma reação de horror. “Adoro, escrevo quase tudo lá. Invento estas coisas todas porque é das fases mais dolorosas e intensas. Como muitos escritores ou criadores tenho muitos problemas de confiança. É a ideia certa, o personagem certo, é a versão do personagem certo? Fico ali numa espécie de ansiedade de não estar perfeito que se estende eternamente.”
Fascinado com as possibilidades dos meios e das tecnologias que muitos de nós ainda não compreendemos, não tem ilusões: “Daqui a três anos não tenho dúvida qualquer que o OpenAI consegue escrever um guião bom”. E depois? “Às vezes fantasiamos muito com o poder de uma tecnologia que desconhecemos. As pessoas pensavam que a fotografia roubava as almas às pessoas quando se tirava uma fotografia. Se tinhas os olhos abertos a tua alma ia para a foto e já não estavas no teu corpo. Hoje em dia há quase o mesmo clichê com a inteligência artificial. Se tocas naquilo, vai-nos roubar a nossa humanidade a nossa alma. Acho que isso é um exagero. Trabalho com inteligência artificial todos os dias e vejo muitas limitações. Não me parece tanto papão agora. Posso estar errado e daqui a três anos aquilo está uma super inteligência-alien incrível, que acaba com todos os trabalhos e connosco. É um momento de extinção absoluta (risos).”