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Como a "menina querida" das startups perdeu 8 mil milhões em 8 meses

Foi a mulher mais jovem a integrar o ranking de milionários da Forbes e o rosto de um dos maiores escândalos da comunidade tecnológica. A história da queda vertiginosa da startup de Elizabeth Holmes.

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Era a “menina querida” dos investidores, a “próxima Steve Jobs“, a mulher que ia revolucionar a indústria mundial das análises ao sangue. Tornou-se num dos maiores escândalos de alegada fraude da comunidade tecnológica. A Elizabeth Holmes (e à sua Theranos) não lhe faltou nada: honras de capa nas mais prestigiadas revistas de negócios, entrada direta para o ranking dos mais ricos da Forbes, rasgados elogios de Silicon Valley — onde estão os players de topo da inovação tecnológica — e comparações imediatas aos membros do clube mais apetecível da comunidade empreendedora, o dos famosos college dropouts — aqueles que se tornaram multimilionários sem nunca terem concluído os estudos na universidade. Mark Zuckerberg (fundador do Facebook), Steve Jobs (fundador da Apple) ou Bill Gates (fundador da Microsoft) são apenas alguns dos exemplos.

A imprensa internacional e de especialidade rendeu-se a Elizabeth Holmes — ao Observador, não passou despercebida — e depressa a história da jovem de 19 anos que deixou o curso de Engenharia Química a meio, na Universidade de Stanford, para lançar um negócio próprio, virou referência. Tinha tudo para ser inspiradora: a persistência dos 200 telefonemas a investidores, o medo das agulhas, os 3 mil dólares em poupanças que depositou num sonho que se chamava Theranos, a fé de um professor. E o facto de ser mulher — a primeira mulher a estar entre os líderes de topo dos principais unicórnios (startups avaliadas em mais de mil milhões de dólares) do mundo. A mulher mais jovem a entrar para a lista dos multimilionários da Forbes, com uma fortuna pessoal avaliada em 4,5 mil milhões de dólares (4,2 mil milhões de euros). Tinha 30 anos.

https://twitter.com/CPierznik/status/522814679224451072

De golas altas pretas, à semelhança de Steve Jobs, Elizabeth Holmes começou a dar nas vistas na última ronda de investimento da Theranos, em junho de 2014, que avaliou a empresa em cerca de 9 mil milhões de dólares (8,5 mil milhões de euros). Com a entrada para o clube dos unicórnios, a fortuna da empreendedora sensação de Silicon Valley foi revista em alta. Detentora de 50% do capital acionista da empresa, em outubro de 2014, viu o seu nome entrar para o ranking das 400 pessoas mais ricas dos Estados Unidos, segundo a Forbes. Menos de dois anos depois, chegou a correção. Afinal, a fortuna de Elizabeth Holmes não era multimilionária, nem milionária, nem rica. A fortuna de Elizabeth Holmes valia zero.

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Pelo meio, um nome: John Carreyrou. E uma data: 16 de outubro de 2015. O dia em que as pedras do castelo da rainha da tecnologia começaram a ruir. Onde: no Wall Street Journal.

Como John Carreyrou destronou a rainha da tecnologia

Foi um dos escândalos empresariais que marcou 2016. Elizabeth Holmes cativou empreendedores, investidores e jornalistas com uma tecnologia que pretendia revolucionar a indústria das análises ao sangue. Aos 19 anos, deixou de estudar para se dedicar em exclusivo ao desenvolvimento de uma metodologia que permitia, através de uma só gota de sangue, fazer análises a mais de 30 doenças, obtendo resultados num curto espaço de tempo (ao contrário dos laboratórios tradicionais). E tudo porque tinha medo de agulhas. Onze anos depois, a Theranos foi considerada a startup de tecnologia médica mais sexy do mercado. E a mais valiosa da esfera privada. Por cada ação que os investidores compraram na última ronda, pagaram cerca de 17 dólares (16 euros).

No dia em que o Wall Street Journal revelou que, afinal, a tecnologia da Theranos só era responsável por uma pequena percentagem (10%) dos mais de 200 testes que anunciava, a startup valia 9 mil milhões de dólares. Oito meses depois, valia 800 milhões (760 milhões de euros). Para a Forbes, as razões para a revisão em baixa (que se traduzia numa desvalorização superior a 8 mil milhões de dólares) eram três: havia demasiada informação em falta sobre a atividade da empresa (os relatórios com dados sobre os testes nunca foram publicados), a Theranos já tinha sido proibida pela entidade reguladora norte-americana, a Food and Drugs Administration (FDA), de prosseguir com os testes e os especialistas da área não acreditavam que a Theranos pudesse valer tanto como os seus concorrentes, onde se inclui o Laboratory Corp. of America, que tem uma capitalização bolsista de 13 mil milhões de dólares.

A reportagem assinada por John Carreyrou foi o início de um processo que se arrastou nas páginas dos jornais e nos tribunais norte-americanos. E que acabou por levar à demissão de 340 pessoas. Segundo o que vários ex-colaboradores da Theranos contaram ao jornalista do Wall Street Journal, a tecnologia com que a startup conquistou o mercado — e que se chamava Edison — era capaz de realizar, em dezembro de 2014, apenas 15 testes (a Theranos anunciava, na altura, que conseguia realizar 240 testes). Mais: desconfiavam da precisão dos poucos resultados que tinham, fazendo chegar as suspeitas ao regulador.

"Isto é o que acontece quando estás a tentar mudar as coisas. Primeiro, pensam que és doido, depois lutam contra ti e, de repente, mudas o mundo. Devo dizer que, pessoalmente, fiquei chocada"
Elizabeth Holmes, líder da Theranos, à CNBC

A polémica estava lançada. Em resposta ao jornal, o advogado da empresa, David Boies, afirmou que os laboratórios da Theranos cumpriam com todas as regulações estatais, que a forma como a empresa tinha promovido a sua tecnologia não foi exagerada e que já tinham utilizado o sistema Edison para realizar milhões de testes em pacientes. A Jim Cramer, apresentador do programa Mad Money, na CNBC, Elizabeth Holmes disse estar “chocada” com a notícia do Wall Street Journal. “Isto é o que acontece quando estás a tentar mudar as coisas. Primeiro, pensam que és doido, depois lutam contra ti e, de repente, mudas o mundo. Devo dizer que, pessoalmente, fiquei chocada por ver o Wall Street Journal publicar algo assim”, disse.

Holmes não se ficou por palavras vagas. Afirmou que tinha enviado milhares de páginas de documentação ao jornal para demonstrar que as acusações dos ex-colaboradores eram falsas, e que as fontes citadas pelo Wall Street Journal tinham pedido à Theranos cerca de 25 mil dólares para se encontrarem com Elizabeth Holmes. Objetivo: explicarem-lhe o que conversaram com o jornalista. Apesar de ter demorado cinco meses a dar uma resposta ao pedido de entrevista do jornal, Holmes diz que se ofereceu para levar a tecnologia Edison à redação e mostrar, ao vivo e a cores, como esta funcionava, mas que a publicação recusou recebê-la. “Infelizmente, neste caso, o jornalista focou-se em fontes que conhecemos em 2004 e em 2005 e que me tinham dito que nunca ia conseguir construir esta empresa e ter sucesso”, afirmou.

A Theranos tinha começado a disponibilizar testes ao mercado no final de 2013. Desde então, tinha aberto 42 centros para recolha de sangue na zona de Phoenix, dois na Califórnia e um na Pensilvânia. E tinha feito lobby no estado do Arizona para que fosse possível realizar os testes sem prescrição médica. Holmes prometia resultados rápidos a um custo inferior ao praticado pelos grandes laboratórios. E como não disponibilizava o sistema Edison a outras marcas, não precisava da aprovação da FDA para começar a vender os testes. Ainda assim — e segundo o que Holmes disse à CNBC — a tecnológica enviou mais de 130 pedidos de aprovação ao regulador. Só se soube do parecer da FDA sobre um deles: o que permitia a deteção de herpes.

https://twitter.com/CursedSoundProd/status/724743422251126784?lang=en

Do Wall Street Journal ao ‘mea culpa’ de Holmes

Apesar de poder dispensar a FDA, a Theranos não podia evitar a passagem pelo carimbo do organismo público Centers for Medicare & Medicaid Services (CMS), ao qual todos os laboratórios têm de provar que os seus testes produzem resultados rigorosos e precisos. De acordo com os emails a que o Wall Street Journal teve acesso, a Theranos produziu testes em dois equipamentos diferentes: no Edison, que utilizava a tecnologia desenvolvida pela Theranos, e em máquinas de outros laboratórios. Nalguns casos, os testes feitos em ambos os equipamentos deram respostas diferentes.

Ao perceberem quer os resultados eram divergentes, os técnicos da Theranos questionaram Sunny Balwani, responsável pela parte operacional da Theranos, sobre que amostras deviam enviar para a CMS (se a que foi testada no sistema Edison ou nos outros equipamentos). A resposta foi clara. Balwani deu-lhes ordem para pararem de realizar testes no sistema Edison e reportar apenas os resultados obtidos através de equipamentos de outras empresas. Mais: disse-lhes que, “as amostras nunca deviam ter sido testadas no sistema Edison, para começar”, conta o The Wall Street Journal.

"Quando esta investigação ocorreu, estávamos a realizar, em simultâneo, uma revisão aos procedimentos e processos dos nossos laboratórios, para assegurar que temos o sistema com a melhor qualidade de que há memória"
Elizabeth Holmes, em resposta ao primeiro comunicado da CMS

Em janeiro de 2016, a CMS enviou uma carta à Theranos, afirmando que os seus testes “colocavam em risco imediato a saúde e a segurança dos pacientes” e dava 10 dias à empresa de Elizabeth Holmes “para corrigir as deficiências observadas”. O supervisor comunicou ainda que a startup podia ser alvo de multas diárias por não estar a cumprir com as condições exigidas pelos serviços de saúde. Em resposta, Holmes afirmou que “os testes levados a cabo pela CMS tinham sido realizados há vários meses e não refletiam o estado atual do laboratório“. “Quando esta investigação ocorreu, estávamos a realizar, em simultâneo, uma revisão aos procedimentos e processos dos nossos laboratórios, para assegurar que temos o sistema com a melhor qualidade de que há memória”, lia-se no comunicado.

Começou a avalanche. Dois meses depois, a CMS enviou nova carta informando que ia banir Elizabeth Holmes e Sunny Balwani da indústria, proibindo-os de exercer atividade na área dos cuidados médicos durante dois anos. As ameaças não se ficaram por aqui e envolveram mais reguladores: o unicórnio das análises ao sangue podia perder a licença para operar se a Theranos não resolvesse os problemas detetados nos laboratórios que detinha na Califórnia. Em maio, o mea culpa: Elizabeth Holmes notificou os reguladores para a saúde norte-americana, incluindo a CMS, de que tinha corrigido as milhares de análises ao sangue que efetuou em 2014 e 2015, anulando alguns desse resultados, e notificando os pacientes e médicos das alterações.

"Decidimos encerrar os nossos laboratórios clínicos e centros de bem-estar Theranos, que afetarão aproximadamente 340 funcionários no Arizona, Califórnia e Pensilvânia"
Elizabeth Holmes, em carta aberta no site da Theranos

E 3, 2, 1. Em junho, a Forbes revê em baixa a avaliação da Theranos e desvaloriza-a em mais de 8 mil milhões de dólares. Em julho, a Theranos perde a licença para operar e Elizabeth Holmes é banida da indústria durante dois anos, recorrendo da decisão. E, em outubro, a jovem de 32 anos anuncia que vai despedir 340 colaboradores da empresa e fechar os vários laboratórios clínicos da empresa. Tinha passado um ano desde a primeira notícia publicada no Wall Street Journal.

“Depois de termos passado muitos meses a avaliar as nossas forças e as nossas fraquezas, decidimos estruturar a nossa empresa em torno de um modelo mais alinhado com os nossos valores e missão. Decidimos encerrar os nossos laboratórios clínicos e centros de bem-estar Theranos, que afetarão aproximadamente 340 funcionários no Arizona, Califórnia e Pensilvânia. Estamos profundamente gratos aos membros da nossa equipa, muitos dos quais dedicaram vários anos à Theranos e à nossa missão”, escreveu Holmes numa carta aberta, publicada no site da empresa.

De startup de tecnologia médica mais sexy do mercado para um laboratório clinico padrão. Em agosto de 2016, Holmes anunciou que a empresa ia dedicar-se ao desenvolvimento de um produto novo, a plataforam miniLab, através da qual pretendem comercializar mini-laboratórios, automatizados, capazes de testar pequenos volumes de amostras de pacientes mais vulneráveis, como os de oncologia, pediatria ou de cuidados intensivos. Ou seja, nada a ver com a estratégia inicial. “Temos a sorte de os nossos parceiros e investidores acreditarem fortemente na nossa missão de termos testes menos invasivos e mais económicos, e de termos a estrada que nos vai permitir realizar a nossa visão”, lê-se na carta aberta. Mas seria bem assim?

Theranos alvo de múltiplos processos por fraude

A par das notificações dos reguladores, as dos tribunais. Em 2016, a Theranos é alvo de vários processos judiciais por alegada fraude, oriundos de investidores e parceiros que se sentirem enganados por Holmes. Só a cadeia de farmácias Walgreens — que era a grande parceira da Theranos para a comercialização dos testes — processou a empresa em 140 milhões de dólares (montante que se crê ser igual ao investido pela empresa na Theranos). A farmacêutica queixa-se de que foi “consistentemente enganada pela Theranos” — e que nem sequer foi informada dos 31 mil resultados de testes ao sangue que tinha fornecido aos seus clientes até 11 de junho e que foram anulados, conta a Fortune. A farmacêutica só soube da anulação pela comunicação social.

A farmacêutica acusa a Theranos de ter quebrado todas as promessas que tinha feito e de ter “falhado os padrões de qualidade mais básicos bem como as exigências legais”. Mais: diz que a empresa de Holmes anulou 11,3% dos testes que fez aos clientes da cadeia de farmácias. Elizabeth Holmes respondeu em carta aberta, afirmando que a farmacêutica também “tinha falhado consistentemente os compromissos que tinha com a Theranos”. “Por causa da má gestão da nossa parceria e agora deste processo, a Walgreens causou danos significativos à Theranos e aos seus investidores. Responderemos vigorosamente às alegações infundadas da Walgreens e tentaremos responsabilizá-la pelos danos que causou à Theranos e aos seus investidores”, lê-se.

Mas a farmacêutica não é a única a querer ver Elizabeth Holmes sentada nos tribunais. O fundo de investimento Partner Fund Management, que tinha investido 96,1 milhões de dólares na Theranos, também processou a empresa, acusando-a de “uma série de mentiras, distorções materiais e omissões”. “Os réus estão envolvidos numa fraude de valores mobiliários e outras violações por terem induzido fraudulamente a PFM a investir e a manter os seus investimentos na empresa”, lia-se numa carta enviada pelo fundo ao The Wall Street Journal.

"Milhares de investidores da Theranos, incluindo aqueles que participam nesta ação judicial, foram alimentados por mentiras contínuas da presidente da empresa, que promovia uma tecnologia que 'ia mudar o mundo' e 'revolucionar a indústria"
Steve Berman, advogado da Robertson Stephens

Já o investidor Robert Colman, cofundador da empresa de investimento Robertson Stephens, processou a Theranos no final de novembro por esta ter “enganado consistente e deliberadamente os seus investidores“, promovendo de forma desproporcional a sua tecnologia. “Milhares de investidores na Theranos, incluindo aqueles que participam nesta ação judicial, foram alimentados por mentiras contínuas da presidente da empresa, que promovia uma tecnologia que ‘ia mudar o mundo’ e ‘revolucionar a indústria”, afirmou o advogado da ação, Steve Berman.

O processo mais recente já data de 2017. O estado do Arizona acusa a Theranos de estar por detrás de um “esquema de longa duração de atos danosos e falsas declarações”, num processo de alegada “fraude aos consumidores”. As autoridades do estado afirmam que a empresa de Holmes violou o “Arizona’s Consumer Fraud Act” e avançou com um processo em nome dos consumidores que recorreram aos centros de bem-estar da Theranos. Mas as polémicas não se ficam por aqui. O Wall Street Journal revelou também quais eram os grandes nomes que estavam por detrás da Theranos, incluindo James Mattis, o general que Donald Trump disse recentemente ter escolhido para Secretário de Defesa”, mas que já se demitiu do conselho de administração da empresa.

Jennifer Lawrence será Elizabeth Holmes no cinema

E agora que “a bolha em que estava a Theranos rebentou“, a história da queda vertiginosa de Elizabeth Holmes e da Thernaos prepara-se para chegar ao cinema. No papel da rainha da tecnologia estará Jennifer Lawrence e na realização Adam McKay, que esteve por detrás das câmaras do “The Big Short – A Queda de Wall Street”, filme inspirado na obra de Michael Lewis, que versa sobre a crise financeira de 2007 e de 2008.

O filme que vai contar a história daquela que já foi “o próximo Steve Jobs” chamar-se-à “Bad Blood” (Mau Sangue, em português) e vai ser produzido pela Legendary Pictures (responsável pela produção de filmes biográficos como “Straight Outta Compton”), que pagou cerca de 3 milhões de dólares (2,8 milhões de euros) para ficar com os direitos do filme. O orçamento para eternizar a polémica da Theranos ronda os 50 milhões de dólares, segundo o IMDB. Será um darling de filme?

Sobre a Theranos, a Fox Business estima que a empresa não vai conseguir resistir a tanta polémica e que vai fechar portas este ano. Quanto a John Carreyrou, ganhou um prémio de jornalismo, o “George Polk”, com a investigação que fez à “menina querida” das startups, que soma aos dois Pulitzer (a distinção mais prestigiante do setor) que já recebeu na sua carreira, em 2003 e em 2015. De Elizabeth Holmes, não se esperam galardões, mas esta história unsexy não acaba aqui.

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