“O Apelo da Tribo” é um conjunto de ensaios biográficos assinados por Mario Vargas Llosa. Neste livro, o prémio Nobel da Literatura procura refletir sobre a vida e a obra dos autores que ajudaram o escritor peruano a moldar a visão liberal que tem sobre o mundo, visão que foi construindo, ao mesmo tempo que deixou um passado ligado ao marxismo.
José Ortega y Gasset, Friedrich August von Hayek, Karl Popper, Raymond Aron, Isaiah Berlin, Jean-François Revel e Adam Smith foram os nomes escolhidos. E é um texto sobre este último que o Observador revela, na pré-publicação de um livro que é publicado a 11 de outubro. Neste excerto, Mario Vargas Llosa escreve sobre “A Riqueza das Nações”, a obra que Adam Smith publicou em 1776 e que viria a tornar-se uma referência do liberalismo económico, até hoje.
O livro foi publicado a 9 de março de 1776 e esgotou a primeira edição de 500 exemplares em seis meses; Smith recebeu dos seus editores trezentas libras. Quase ao mesmo tempo apareceu na Grã-Bretanha outra obra-prima da cultura ocidental: Decline and Fall of the Roman Empire, de Edward Gibbon. A segunda edição de A Riqueza das Nações foi publicada uns dois anos mais tarde, com algumas mudanças; a terceira, de 1784, incluiu muitas correções e acrescentos. Em vida de Adam Smith foram ainda publicadas a quarta (1786) e a quinta (1789) edições com novas modificações, bem como as traduções do livro para francês (houve três), alemão, dinamarquês e italiano. Em Espanha, a obra foi traduzida para espanhol por Carlos Martínez de Irujo e foi publicada em 1791, mas o livro foi denunciado ao Santo Tribunal (a Inquisição) e proibido no ano seguinte. Três anos mais tarde, em 1794, foi publicado em Valladolid um pequeno compêndio da obra, sem que o nome de Adam Smith aparecesse na capa.
Notável pela variedade de temas que o ocupam, monumento à cultura do seu tempo, testemunho do que no último terço do século XVIII significava o conhecimento nos campos da política, da economia, da filosofia e da história, o mais notável e duradouro do livro é o descobrimento do mercado livre como motor do progresso. Um mecanismo não inventado por ninguém a que a humanidade foi chegando graças ao comércio. Este intercâmbio contínuo produziu a divisão do trabalho e o aparecimento do mercado, sistema distribuidor de recursos para o qual, sem o pretender nem sequer saber, todos os membros da sociedade — vendedores, compradores e produtores — contribuem, fazendo avançar a prosperidade geral. Foi insólita a revelação de que, trabalhando para materializar os seus próprios anseios e sonhos egoístas, o homem comum contribuía para o bem-estar de todos. Essa “mão invisível” que empurra e guia trabalhadores e criadores de riqueza para cooperar com a sociedade foi uma descoberta revolucionária e, também, a melhor defesa da liberdade no âmbito económico. O mercado livre pressupõe a existência da propriedade privada, da igualdade dos cidadãos perante a lei, da rejeição dos privilégios e da divisão do trabalho. Ninguém antes de Adam Smith tinha explicado com tanta precisão e lucidez esse sistema autossuficiente que faz progredir as nações e para o qual a liberdade é essencial, nem explicado de maneira tão eloquente que a liberdade económica sustenta e impulsiona todas as outras.
Ao ler este livro oceânico, que se dispersa em temas e subtemas até ao infinito, tem-se a impressão de que nem sequer o próprio Adam Smith teve consciência da importância das suas descobertas. Tornou-se desconcertante para muitos leitores de A Riqueza das Nações descobrir que não é o altruísmo nem a caridade, mas sim o egoísmo, o motor do progresso: “Não obtemos os alimentos da benevolência do carniceiro, do cervejeiro ou do padeiro, mas sim da sua preocupação pelo seu próprio interesse. Não nos dirigimos aos seus sentimentos humanitários, mas sim ao seu egoísmo, e nunca falamos das nossas necessidades, mas sim das suas próprias vantagens.”
John Maynard Keynes, um diligente discípulo, embora um pouco irreverente, de Adam Smith, troçou por ele defender que o capitalismo se baseava “na espantosa crença de que os piores motivos dos piores homens de uma ou outra maneira trabalham para obter os melhores resultados no melhor dos mundos possíveis”. No entanto, como todos os grandes pensadores sociais e políticos que lhe sucederam, entre eles Marx, Keynes acabaria por aceitar, contrariado, a descoberta que Adam Smith resumiu assim: “Regra geral, o cidadão não tenta promover o bem-estar público nem sabe quanto está a contribuir para ele. Preferindo apoiar a atividade doméstica em vez da forânea, só procura a sua própria segurança, e dirigindo esta atividade de forma a conseguir o maior valor, só procura o seu próprio ganho, e neste como noutros casos é conduzido por uma mão invisível que promove um objetivo que não entra nos seus propósitos.”
O sistema que Adam Smith descreve não é criado, mas sim espontâneo: resultou de umas necessidades práticas que começaram com a troca dos povos primitivos, seguiram com formas mais elaboradas do comércio, com o aparecimento da propriedade privada, das leis e dos tribunais, isto é, o Estado, e, sobretudo, da divisão do trabalho que disparou a produtividade. Esta ordem espontânea, como lhe chamaria mais tarde Hayek, tem a liberdade — as liberdades — como sua base: liberdade de comércio, de intervir no mercado como produtor e consumidor em igualdade de condições perante a lei, de assinar contratos, de exportar e importar, de se associar e formar empresas, etc. Os grandes inimigos do mercado livre são os privilégios, o monopólio, os subsídios, os controlos, as proibições. A espontaneidade e a naturalidade do sistema reduzem-se à medida que a sociedade progride e se criam estruturas legais que regulam o mercado. Ora bem, sempre que preservarem, pelo menos em grandes margens, a liberdade, o sistema será eficiente e dará resultados positivos.
É verdade que o mercado é frio, pois premeia o êxito e castiga o fracasso de maneira implacável. Mas Adam Smith não era o ser cerebral e desumanizado com que os seus inimigos atacam o seu liberalismo. Pelo contrário, era muito sensível ao horror da pobreza e acreditava na igualdade de oportunidades, embora nunca usasse esta expressão. Por isso afirmava que, para contrariar o estado de ignorância e estupidez que a tarefa mecânica podia implicar para os trabalhadores, a educação era indispensável e devia ser financiada, para aqueles que não a podiam pagar, pelo Estado ou pela sociedade civil. Na educação também era a favor da concorrência e defendia uma educação pública juntamente com a privada.
Adam Smith teria ficado surpreendido de no futuro as suas teorias serem acusadas, pelos inimigos do liberalismo e da iniciativa privada, de desprovidas de sensibilidade e solidariedade; ele tinha a certeza de que a sua investigação favorecia os pobres e contribuía para erradicar a pobreza. “Nenhuma sociedade pode ser próspera e feliz se a maioria dos seus membros forem pobres e miseráveis”, afirmou. A sua ideia dos ricos do seu tempo costumava ser severa: “Em cada negócio, a opressão do pobre pressupõe o monopólio dos ricos, os quais, ao açambarcarem a totalidade do comércio para si mesmos, serão capazes de obter grandes lucros.” O monopólio distorce a oferta e a procura ao conferir a um fabricante ou a um comerciante o poder de alterar os preços para satisfazer o seu apetite de lucro; ao eliminar a concorrência, a qualidade do produto degenera e o comércio deixa de ser um serviço para se converter em exploração do comprador. Os grandes beneficiários da teoria de Adam Smith são os consumidores, o conjunto da sociedade, e não os produtores, uma minoria que tem à partida o direito de ficar beneficiada pelo grande serviço que presta, às vezes com grande talento e audácia, mas para isso é indispensável que haja uma concorrência equitativa, sem favoritismos, e, claro, que se respeite a propriedade privada.
Segundo Adam Smith, “a propriedade que cada homem tem do seu próprio trabalho é a mais sagrada e inviolável, dado que é a base de todas as outras. O património de um homem pobre consiste na força e habilidade das suas mãos, e impedir a utilização da sua força e habilidade sob a forma que considerar apropriada sem prejudicar ninguém é uma violação flagrante da mais sagrada das propriedades. É uma intromissão manifesta na liberdade de trabalhadores e daqueles que querem empregá-lo…”.
O livro começa por explicar que “a divisão do trabalho” aumentou de forma notável a produtividade na fabricação de bens. Dá o célebre exemplo do alfinete e das dezoito atividades que se complementam ao produzi-lo; as máquinas, que a divisão do trabalho impulsionou, aliviaram muito o labor dos trabalhadores, os quais, afirma ele, foram os seus inventores.
A civilização nasce com a necessidade do ser humano de recorrer aos outros para satisfazer as suas necessidades. A divisão do trabalho está limitada pela extensão do mercado. É óbvio que numa povoação pequena um agricultor tem de fazer também de carpinteiro, de pedreiro, de funileiro. As cidades foram um passo à frente que permitiram a uns dedicar-se a uma coisa e outros a outras. A Riqueza das Nações explica a origem e a função do dinheiro nessas sociedades primitivas que pouco a pouco se tornaram mercantis. A dado momento da evolução histórica, a troca deu lugar a uma mercadoria que serviria de intermediária para compras e vendas; esta função foi preenchida pelo gado, pelas conchas marinhas, pelo bacalhau, pelos couros e peles e, por fim, pelos metais. O dinheiro converter-se-ia no instrumento universal do comércio. A princípio, as moedas tinham a quantidade de metal que diziam ter. Depois “a avareza e a injustiça dos príncipes e Estados soberanos […] abusando da confiança dos seus súbditos foram diminuindo a quantidade de metal que as suas moedas continham…”; assim enganavam melhor os seus credores.
O preço das mercadorias, segundo Adam Smith, mede-se pelo trabalho investido a fabricá-las. No preço é preciso distinguir o “preço real” do “preço nominal”. Este último é fixado pelo mercado, consoante a abundância ou carência dos metais com que se fabricam os produtos. As teses de Smith, embora as declare “científicas”, estão carregadas de sensibilidade. Afirma que os trabalhadores bem pagos rendem mais e que com a sua prosperidade está garantida a paz social. Ao mesmo tempo, descreve a dimensão da pobreza em países como a China e a Índia, onde as mulheres matam os seus filhos por não terem o que lhes dar de comer, e nas partes altas da Escócia, onde, das vinte crianças que as mães chegam a parir, apenas sobrevivem duas.
Às minuciosas descrições de assuntos económicos, seguem-se narrativas históricas e análises sociológicas às vezes tão prolixas que esmagam o leitor. Mas, de vez em quando, surgem as ideias renovadoras. Por exemplo, no décimo capítulo enumeram-se as cinco circunstâncias que explicam os pequenos ganhos que certos empregos oferecem e os grandes que se obtêm noutros: 1) o trabalho grato ou ingrato; 2) a facilidade ou dificuldade ao realizá-lo e o menor ou maior custo da aprendizagem do trabalhador; 3) a continuidade ou eventualidade nos contratos; 4) a maior ou menor responsabilidade que se adquire ao exercê-lo; e 5) a probabilidade ou improbabilidade do êxito.
As desigualdades ocasionadas pela política laboral na Europa dão origem a uma crítica muito dura de todas as restrições à liberdade de contratação, bem como aos “estatutos dos grémios”, que exigiam então até sete anos de prática com um mestre antes de autorizar o aprendiz a trabalhar. Toda a limitação da liberdade — por exemplo, as leis de residência que impedem um operário de procurar trabalho fora da sua zona — gera injustiças e prejudica a criação de emprego. Adam Smith insiste em que devem suprimir-se todos os privilégios de que os grémios gozam: “As pessoas do mesmo ofício poucas vezes se reúnem, mesmo que seja para se divertirem e distraírem, sem que a conversa acabe numa conspiração contra o público. Ou nalgum estratagema para elevar os preços.”
As análises económicas alternam com exposições históricas, como a evolução do preço do trigo nos séculos XIII, XIV, XV e XVI na Escócia e em Inglaterra, em comparação com a Holanda e Génova, ou sobre o efeito que a descoberta das minas de ouro e prata do Peru teve no comércio dos metais no mundo.
Sem a divisão do trabalho e a acumulação do capital não teria havido desenvolvimento das forças produtivas. O capital consta de uma parte fixa e outra circulante; a primeira consiste nas máquinas, terras e locais onde a empresa funciona, e, a outra, no dinheiro que se gasta em salários, impostos e investimentos. O conjunto dos capitais representa a riqueza de um país. A estabilidade é condição essencial para o desenvolvimento, pois, quando não existe, as pessoas afastam os seus capitais da circulação escondendo-os.
Continua explicando o processo produtivo, o aparecimento dos bancos, como os créditos permitem a indivíduos isolados (empresários ou artesãos) instalar os seus negócios. Isto faz crescer e configurar uma classe social. Os bancos ajudam o comerciante a converter o capital circulante em fixo concedendo-lhe letras que lhe permitem gastar e movimentar o dinheiro que depois devolve com um juro que, naquele tempo, era de oito por cento. Conta como as empresas contornam a proibição de se exceder um certo teto de letras para alongar o crédito que recebem. E relata a história de um banco escocês que entrou em falência por passar letras a um grande número de comerciantes que não tinham responsabilidade e eram pura e simplesmente fraudulentos.
Critica várias vezes o intervencionismo estatal e os esbanjamentos e gastos inúteis que “os reis e ministros” produzem, empobrecendo com isso o conjunto da sociedade. Talvez o mais importante destas páginas seja o elogio de uma sociedade onde o Estado é pequeno e funcional, pois deixa trabalhar os cidadãos e crescer a riqueza que beneficia o conjunto social. O cidadão ideal, para Smith, é trabalhador, austero, prudente e nunca esbanja o seu património em gastos sumptuosos. O empresário deve dar sempre o exemplo àqueles que emprega: “Se o empresário for atento e parcimonioso, o trabalhador também tem a tendência para ser, mas se o patrão for dissoluto e desordenado, o servidor que estrutura o seu trabalho de acordo com o modelo que o seu patrão lhe descreve moldará também a sua vida segundo o exemplo que aquele lhe oferece.” Todo o capítulo denuncia a desconfiança de Smith para com o Estado como potencial inimigo do cidadão trabalhador e cumpridor das leis.
O capítulo seguinte é dedicado aos empréstimos com juros. Smith descarta que se proíbam, como pedem algumas igrejas — entre elas a católica —, pois, diz, bem conduzidos cumprem uma função útil dado que permitem uma circulação maior do capital. Não é o caso do prestatário que usa o empréstimo para o esbanjar em diversões e atividades não rentáveis. Mas, se o juro não for usurário e o dinheiro do empréstimo acabar por ser fértil, cumpre uma função valiosa no mercado. Cita o caso dos países que, para combater a usura, proibiram os empréstimos bancários e estes, então, em vez de desaparecer passaram a ser clandestinos e ilegais.
Adam Smith mostra como o capitalismo, sem essa intenção, mina o nacionalismo, movendo-se sobre as fronteiras nacionais quando não encontra no próprio país investimentos lucrativos. O raciocínio é de uma lógica esmagadora. Quando no próprio país o capital saturou os investimentos produtivos, vê-se impelido a sair para o exterior; fá-lo também para importar aquilo que é necessário no próprio país a fim de assegurar o consumo ou para ativar o comércio interno. Também pode sentir-se impulsionado a servir países que carecem de capitais. Isto, diz Smith, embora diretamente não pareça beneficiar o país de onde os capitais são oriundos, beneficia-o indiretamente, situando-o num patamar de desenvolvimento e progresso mais avançado. Resumindo, o capitalismo internacional é o inimigo natural do nacionalismo.
A principal atividade comercial tem lugar entre a cidade e o campo e consiste na troca de produtos primários por manufaturados. A cidade obtém do campo toda a sua riqueza e subsistência. Se as instituições não tivessem frustrado as tendências naturais dos seres humanos, as cidades não teriam crescido mais do que a produção agrícola do território onde estavam localizadas podia suster. O destino original do homem foi o cultivo da terra. Mas a relação entre proprietários e colonos ou arrendatários, que pagam para alugar a terra e trabalhá-la, fez com que esta realidade deixasse de ser natural. Os colonos não têm incentivos para investir em melhoramentos e devido a isso a agricultura não progride. Smith critica o “direito de primogenitura”, que, por favorecer o filho mais velho, prejudica os outros, e condena o trabalho de escravos tanto por razões morais como económicas, pois é o trabalho mais improdutivo, dado que aqueles não têm qualquer incentivo para se esforçarem.
A Riqueza das Nações explica o nascimento das cidades europeias em virtude do comércio. Melhor dizendo, dos comerciantes. Estes eram “desprezados” pelos “senhores” de Inglaterra, que, tal como em Espanha e França, consideravam o comércio uma atividade vil. Os reis permitiram a formação de cidades pelo seu antagonismo com os “senhores” e para receberem tributos dos comerciantes. Graças às cidades, o comércio local e estrangeiro aumentou e nasceram as manufaturas, que fortaleceram as cidades. No entanto, o campo continuou a ser o grande fornecedor de matérias-primas para as fábricas.
O comércio e as fábricas contribuíram para o desenvolvimento dos campos ao criarem mercados para os produtos agrícolas. Smith faz uma diferença curiosa entre o comerciante audacioso cuja profissão incita a ser arrojado e o latifundiário tímido, que duvida muito antes de investir. Por isso, o comerciante é o verdadeiro pioneiro do progresso.
O comércio e a fábrica introduziram gradualmente a ordem e o bom governo na sociedade. Faz críticas severas aos latifundiários pela sua maneira de tratar os rendeiros e de gastarem o seu dinheiro em coisas sumptuosas e frívolas, ao contrário dos comerciantes e empresários, que investem em novos projetos impelidos pela concorrência. O latifundiário, em contrapartida, tende a converter-se numa pessoa que vive de rendas.
O crescimento das cidades implica o crescimento das classes médias devido ao comércio e às fábricas e, com isso, também o da civilização, isto é, da liberdade e da legalidade. Este processo transforma a sociedade: o comércio e as fábricas passam a ser a fonte principal da riqueza e têm influência na modernização da agricultura e no desaparecimento do latifundiário feudal.
Num ensaio tão extenso é natural que haja contradições. Adam Smith é partidário do comércio livre, mas aceita que se ponham taxas alfandegárias e proibições se se tiver a segurança de que com isso se vai aumentar o emprego ou se a liberdade total de importação ameaçar arruinar os empresários e manufatureiros incapazes de competir com os produtos importados. Páginas depois, esta tese é desmentida, pois demonstra-se que a liberdade de comércio externo é a mais eficiente e benéfica para os países, apesar de os preconceitos nacionalistas defenderem o contrário. É falso que convenha a um país que os seus vizinhos sejam pobres; isso só vale se houver guerras entre eles. Do ponto de vista comercial, ter vizinhos ricos significa mercados prósperos para as próprias exportações.
Aparece depois uma observação inesperada e curiosa, segundo a qual há mais bêbados nos países que não são grandes produtores de bebidas alcoólicas. Cita o caso de Espanha, Itália e França, destacados produtores de vinhos, onde, garante, o alcoolismo é menos alargado do que no Centro e no Leste da Europa. E não menos surpreendente é a afirmação de que todo o imposto que, pela sua pequenez, não desperte o interesse dos contrabandistas não tem grandes efeitos comerciais.
Os capítulos dedicados às colónias são transcendentes. Começam com uma exposição histórica: as colónias foram uma expansão natural da população na Grécia e depois em Roma até que, estimulados pelas aventuras de Marco Polo na Ásia, portugueses e espanhóis se lançaram a procurar ouro nas Índias. Colombo chega a Santo Domingo e julga que chegou à Cipango de Marco Polo. Segundo Adam Smith, a cobiça humana, a avidez pelo ouro, explica o resto dos descobrimentos e a conquista das duas Américas, a do Sul e a do Norte. Mas, acrescenta, esta procura de minas de ouro e de prata foi frustrante porque os dois metais não chegaram a compensar o investimento que a extração exigia. Nem sequer as riquíssimas minas do Peru (refere-se às de Potosí) enriqueceram a Coroa espanhola.
Toda a simpatia de Adam Smith se vira para as colónias inglesas na América do Norte, os futuros Estados Unidos. Explica que prosperaram muito mais que as de Espanha e Portugal porque a Inglaterra lhes deu mais liberdade para produzir e fazer comércio, ao contrário do severo controlo que Lisboa e Madrid impunham às suas colónias. E, uma vez mais, sublinha que as limitações ao comércio constituem “um crime contra a humanidade”. Prognostica que os Estados Unidos serão um país imensamente próspero pela grande extensão das suas terras e pela notável liberdade de que gozam estas colónias do Norte. Também critica a própria ideia do colonialismo, que atribui a aventureiros gananciosos, e salienta a brutalidade com que os escravos foram tratados desde tempos imemoriais. Sublinha que o intervencionismo estatal, ao frustrar a livre concorrência, é uma receita infalível para o fracasso económico.
O colonialismo, além de imoral, é economicamente negativo, pois implica a prática do monopólio, que só beneficia uma pequena minoria e prejudica tanto o país colonizador como o resto do mundo. Todo o capítulo é um apelo fundamentado a valer-se da liberdade como o melhor instrumento político, moral e económico para garantir o progresso de uma sociedade.
Como lhe parece difícil que a Inglaterra se possa desprender das suas possessões americanas, Smith propõe uma federação em que as antigas colónias teriam os mesmos direitos que a metrópole.
Talvez a proibição mais ultrajante seja aquela que penaliza com uma multa e com prisão quem incitar um artesão de lã a mudar-se para outro país, com o qual, diz Adam Smith, a Inglaterra violava de maneira flagrante aquela liberdade que se gabava tanto de praticar.
Critica (com muito respeito) Quesnay e os fisiocratas franceses por defenderem que só a terra produz riqueza e considerarem os fabricantes e comerciantes “improdutivos”. Mostra como os artesãos, industriais e comerciantes são tão progressistas como os agricultores. O que diminui o seu papel na criação de riqueza são as obstruções e interferências no sistema mercantil. Dá abundantes exemplos para provar que a liberdade de comércio é justa e traz prosperidade. Cita inúmeros casos históricos — os da China, Indostão, Grécia e Roma — para ilustrar que, quanto mais liberdade havia, mais os países avançavam e, quanto menos, mais se atrasavam.
Da economia, Adam Smith volta à história, àquele período da humanidade dividida entre sociedades de caçadores e agricultores e depois comerciantes e fabricantes, e analisa-as segundo a força que as protegia ou lhes servia para atacar os vizinhos. Nos povos caçadores, todos os membros da comunidade eram guerreiros e sustentavam-se a si mesmos. Nas sociedades de agricultores surgem as milícias e, mais tarde, os exércitos. Em cada caso, os gastos são maiores. E, por fim, o Estado financia a defesa da sociedade. O exército será sempre superior a uma milícia (embora a história das revoluções contradiga esta tese). E o gasto que significa sustentar um exército é cada vez maior, pela evolução das armas, que a invenção da pólvora revolucionou dos pés à cabeça. Adam Smith examina os riscos para a liberdade que a existência de um exército implica.
A análise desloca-se para a justiça. Explica como nasceu a necessidade de ter juízes e afirma que é consequência da propriedade privada. Os juízes nascem para defender os ricos da “voracidade dos pobres”. Depois a sociedade paga às pessoas encarregadas de administrar a justiça. Nas sociedades mais primitivas, os usuários remuneravam os juízes ou faziam-lhes ofertas, e depois o Estado assumiu esta obrigação. Sentirmo-nos seguros sobre os nossos direitos é fundamental para que exista uma sociedade livre. Mas os juízes foram sensíveis à corrupção e a administração da justiça degradou-se quando aqueles, que recebiam salários de acordo com o número de palavras que usavam nos seus discursos, começaram a aumentá-los para ganhar mais.
É interessante a análise que Smith faz de como o clero se sustenta. E a sua ideia de que enquanto houver muitas igrejas diversas numa sociedade haverá menos fanatismo e maior espírito de tolerância. Adam Smith estava longe de ser um crente fanático, pois fala com uma distância muito objetiva tanto de católicos como de protestantes. Alguns pensam que era ateu, como o seu amigo David Hume. Apesar da sua simpatia natural pelo presbiterianismo e pela Igreja escocesa em que foi educado, não denota parcialidade e só se refere a factos objetivos. Também nisto se adverte o seu espírito sereno e aberto; sem chegar ao ateísmo, provavelmente havia nele um agnóstico que mantinha a aparência de um crente porque via na religião uma daquelas instituições que facilitam a convivência e de alguma maneira inculcam uma ordem moral na sociedade.
Fala das fontes de receita que mantêm o soberano ou o governo, isto é, dos impostos, defendendo de vez em quando teses a que agora chamaríamos sociais-democratas. Seguindo nisto Lord Kames e Montesquieu, acredita que os impostos devem servir para “igualar” as receitas, cobrando mais aos ricos e menos aos pobres, e evitando aqueles impostos que por serem excessivos ou arbitrários convidam à evasão. Refere-se, em atitude muito severa, aos cobradores que exploram os contribuintes.
Chama imposto “puramente negativo” ao dízimo que se paga na Igreja, pois não gera qualquer lucro nem ao proprietário, nem ao arrendatário, nem ao soberano, só à Igreja (o que confirma o fraco crente que Adam Smith era).
Uma discussão pormenorizada sobre a razão de ser dos impostos, os seus tipos, a sua cobrança, na Grã-Bretanha e noutros países ilustra muito bem a sua doutrina de que “não há arte que nenhum governo aprenda tão depressa como a de sacar dinheiro do bolso dos contribuintes”. Já que não pode deixar de haver impostos, é preciso evitar dentro do possível que sejam injustos e carreguem mais nos pobres que nos ricos, pois, de outro modo, estimulam o contrabando e a evasão. E dá o exemplo daqueles que transgridem esmagados pelos impostos confiscatórios que são obrigados a pagar.
Estuda a forma como os países contraem dívidas para cumprirem os seus orçamentos ou financiar as guerras, a maneira como pagam aquelas dívidas e as consequências que estas têm na vida económica. Conclui que, quando uma nação se habitua a endividar-se, é-lhe quase impossível chegar a pagar as enormes obrigações que contrai. E condena com dureza os Estados que, para pagar artificialmente o que devem, desvalorizam as suas moedas, pagando só uma parte geralmente pequena das dívidas que contraíram.
Esta apertada síntese só dá uma ideia remota da ambição e grandeza de A Riqueza das Nações, da variedade de temas que se abordam nas suas páginas e de como nela, embora a preocupação económica prevaleça, surgem, além da filosofia, a história e a sociologia. As ideias de Adam Smith difundiram-se primeiro pelas Ilhas Britânicas e depois pela Europa e pela América, e, pouco a pouco, pelo resto do mundo. De certo modo, no século XIX chegaram a configurar quase todo o Ocidente de maneira parecida. No entanto, muitas destas ideias, nascidas no século XVIII, referem-se a uma realidade social que mudou muito comparada com a dos nossos dias. Mas não é ousado dizer que estas mudanças se deveram em boa parte às descobertas e ideias que se deram a conhecer pela primeira vez neste livro fundamental.