A luta de parte dos trabalhadores das plataformas digitais (como a Uber, Glovo ou Bolt) pelo reconhecimento de um vínculo de trabalho dependente — que lhes permita aceder a proteção laboral e social — não é nova. Só que, até aqui, tem-se resolvido maioritariamente nos tribunais, com as decisões a tenderem para os trabalhadores. A Comissão Europeia quer, porém, que não restem dúvidas na hora de decidir quem tem direito a quê e clarificar nas leis dos Estados-membros as situações em que um motorista ou estafeta é considerado trabalhador dependente da plataforma — logo, com direitos como salário mínimo (nos países em que existe), negociação coletiva, proteção da saúde, férias pagas, acesso à proteção contra acidentes de trabalho, subsídios de desemprego e de doença, bem como a pensões contributivas.
O objetivo de Bruxelas consta numa proposta de diretiva para combater o falso trabalho independente nas plataformas digitais, apresentada esta quinta-feira. A ideia é que os Estados-membros estabeleçam os “procedimentos adequados” para verificarem a existência ou não de um vínculo de trabalho dependente entre a plataforma digital e o trabalhador. A Comissão dita que se as plataformas exercem poder de direção e de controlo sobre o colaborador é porque o segundo é empregado das primeiras. Mas como saber se isso acontece? O documento elenca cinco indícios para verificar que esse controlo existe, sendo que pelo menos dois devem ser verificados para que haja o reconhecimento efetivo de um vínculo de trabalho dependente:
A plataforma determina a remuneração do trabalhador ou define limites máximos;
A plataforma exige que o trabalhador respeite determinadas regras relacionadas com a sua conduta e performance;
O trabalho e a performance são supervisionados, nomeadamente por meios eletrónicos;
O trabalhador não tem total liberdade para organizar o trabalho ou os períodos de ausência como quer, para aceitar ou recusar tarefas, ao contrário dos trabalhadores independentes, nem para “usar trabalhadores subcontratados ou substitutos”;
A plataforma restringe a possibilidade de o trabalhador construir uma “base de clientes” ou prestar trabalho para uma terceira parte.
As plataformas podem contestar a classificação, mas a diretiva muda o ónus da prova: é a empresa que terá de provar que o trabalhador exerce as funções por conta própria.
A Comissão Europeia justifica as propostas com a emergência das plataformas digitais, acelerada durante a pandemia. Bruxelas estima, aliás, que estas plataformas tenham visto as receitas aumentar cerca de 500% nos últimos cinco anos e que haja hoje 28 milhões de pessoas na UE a trabalhar através delas, um número que deve disparar para os 43 milhões até 2025.
Ao imporem novas formas de organização de trabalho, essas plataformas “desafiam direitos existentes e obrigações relacionadas com a lei laboral e a proteção social”. A principal preocupação de Bruxelas é que há muitos trabalhadores (estima que sejam 5,5 milhões) incorretamente classificados como independentes, o que lhes barra o acesso a direitos laborais e proteção social, desde o salário mínimo, proteção na saúde e acidentes de trabalho, licenças parentais ou subsídio de doença. E se é certo que há motoristas e estafetas “genuinamente autónomos”, há outros que são trabalhadores “subordinados” e estão sujeitos ao controlo laboral da plataforma, nomeadamente no que toca à definição de salários e horários. É para este último caso que se destina a proposta de legislação.
No caso português, e ainda que não especifique os “indícios de laboralidade” para os trabalhadores das plataformas digitais (uma introdução que caiu com o chumbo do Orçamento do Estado), a lei já versa sobre os indícios aplicáveis à generalidade dos trabalhadores. Por isso, o trabalhador já pode ver o seu vínculo reconhecido judicialmente. A Comissão Europeia reconhece, aliás, que muitos casos na UE acabaram em tribunal e diz mesmo que essas disputas resultaram em mais de 100 decisões de tribunais e 15 administrativas no que toca ao vínculo laboral, “predominantemente” favoráveis à “reclassificação” dos trabalhadores. Mas, argumenta, não há uma uniformização dos critérios entre os Estados-membros.
Em fevereiro, por exemplo, o Supremo Tribunal do Reino Unido deliberou que os condutores da Uber deviam ser considerados funcionários e não prestadores de serviço independentes. Isso significa que a empresa tem de ser responsável por garantir aos condutores proteção social ao trabalho, incluindo salário mínimo e pagamento de férias.
Uber. Condutores são (mesmo) funcionários da empresa, delibera Supremo Tribunal do Reino Unido
Bruxelas admite redução de alguns salários, mas média poderá subir
Nas contas da Comissão, que apresenta uma avaliação dos possíveis impactos das alterações, os rendimentos anuais dos motoristas ou estafetas que atualmente recebem abaixo do salário mínimo iriam aumentar, ao todo, até 484 milhões de euros. Por outras palavras: as alterações, se aprovadas, poderiam significar um aumento anual médio no rendimento de 121 euros por trabalhador, que pode ir até 1.800 euros anuais para quem ganha menos do que o salário mínimo. Porém, a Comissão reconhece que um aumento dos custos para as plataformas — que, contabiliza, será na ordem dos 4,5 mil milhões de euros por ano —, pode ser transmitido aos consumidores se as plataformas assim o entenderem. Já os Estados-membros “poderiam beneficiar de até quatro mil milhões de euros em aumentos de impostos e contribuições sociais por ano”.
Bruxelas admite, no entanto, que a “flexibilidade” da organização do trabalho pode ficar prejudicada, nomeadamente no que toca a horários de trabalho, e diz não conseguir estimar quantos postos de trabalho podem chegar ao fim se as alterações tiverem luz verde. Aliás, aqueles que conseguem extrair um ordenado acima do salário mínimo poderão vir a ter uma redução no rendimento “se algumas plataformas digitais compensarem a maior proteção social com salários mais baixos”, escreve a Comissão.
Outro dos focos da proposta é a garantia da “transparência na gestão dos algoritmos“. O objetivo é que os trabalhadores possam conhecer como funcionam os algoritmos por detrás da plataforma e perceber porque o sistema decidiu determinada tarefa que afeta as suas condições de trabalho. “Os trabalhadores devem ter o direito a obter uma explicação da plataforma de trabalho digital pela decisão, a falta de decisão ou o conjunto de decisões tomadas ou suportada por sistemas automáticos”, refere a proposta.
A diretiva também versa sobre a saúde e segurança dos trabalhadores, tendo os empregadores de avaliar “os riscos para a segurança” que advêm do trabalho nas plataformas. A nível do associativismo, define-se que as plataformas devem informar e consultar os trabalhadores ou os seus representantes antes de determinadas decisões serem tomadas. E para que não haja dúvidas, sublinha a obrigatoriedade de as plataformas digitais que são empregadoras declararem o rendimento dos trabalhadores.
Além disso, terão de criar canais de comunicação digitais, uma vez que, frequentemente, os trabalhadores não se conhecem uns aos outros. O objetivo neste ponto é os colaboradores poderem comunicar entre si e com os seus representantes.
A proposta de diretiva deixa, porém, alguma margem de manobra a exceções para as micro, pequenas e médias empresas. Escreve Bruxelas que os países devem “avaliar os impactos da transposição nas startups e pequenas e média empresas” para que estas não sejam “desproporcionalmente” afetadas.
Se aprovada, a diretiva vai aplicar-se a plataformas que prestem serviço de transporte de pessoas, bens ou até limpezas (ou seja, inclui não apenas estafetas, mas também motoristas, que em Portugal estão abrangidos pelo regime dos TVDE). O documento ainda tem de ser negociado entre o Conselho e o Parlamento Europeu, mas se adotado, os Estados-membros têm dois anos após a entrada em vigor para o transpor para a lei nacional.
Para os trabalhadores independentes individuais (que trabalham completamente por conta própria e não empregam outros) a Comissão também lançou uma consulta pública, por oito semanas, de um projeto com orientações que lhes garanta segurança jurídica e melhores condições de trabalho.
Proposta vai ter consequências “graves” para milhares de motoristas, que podem ver salário descer, dizem plataformas
Em reação, as plataformas convergem no mesmo argumento: a proposta de Bruxelas não espelha a intenção da maioria dos trabalhadores, que prefere manter a flexibilidade, dizem.
Em comunicado, a Uber sublinha que a flexibilidade e o controlo dos horários de trabalho são duas das caraterísticas mais estimadas pelos motoristas, acima, diz, dos salários e de proteção social. A plataforma pede leis que sejam “claras e progressivas”, “baseadas no que os trabalhadores querem” até porque, argumenta, se as alterações forem adiante haverá mais “litigância do que diálogo”. Além disso, frisa, desde 2018 que já oferece alguns esquemas de proteção, como licenças parentais e subsídios de doença, com algumas seguradoras.
Já a Bolt, em resposta ao Observador, lamenta que “a Comissão Europeia proponha sacrificar a flexibilidade e eficiência dos trabalhadores nas plataformas através da reclassificação do direito laboral”. “Acreditamos ser uma abordagem unilateral que não tem em consideração todas as opções disponíveis”, critica Nuno Inácio, responsável pelos serviços da Bolt Portugal, insistindo também que vai “contra as expectativas e necessidades dos trabalhadores das plataformas — a maioria dos parceiros não quer ser empregada e favorece as vantagens do trabalho independente, tais como a escolha do seu próprio horário de trabalho e a possibilidade de trabalhar em várias plataformas para maximizar as suas receitas”.
A plataforma sublinha ainda que, se avançar, “centenas de condutores” vão perder a oportunidade de trabalhar em várias plataformas, “uma vez que estas seriam obrigadas a mudar para um modelo exclusivo de trabalho a tempo inteiro”. “Esta mudança teria um impacto negativo nas condições de trabalho dos trabalhadores, reduziria as suas oportunidades de receita e influenciaria fortemente milhões de cidadãos europeus que hoje beneficiam dos serviços das plataformas”, argumenta, acrescentando que a Bolt está a “melhorar as condições e benefícios dos trabalhadores”.
A Free Now também fala na perda de “centenas de milhares de postos de trabalho em toda a Europa” e frisa que tem investido na “retenção” dos motoristas, com bónus e incentivos (por exemplo, “cartões de combustível, seguros mais baratos e descontos na compra de automóveis”, entre outros). “Esta diretiva teria um grande impacto na competitividade do mercado e nos motoristas”, uma vez que, atualmente, não existem cláusulas de exclusividade. “Em Portugal, quase todos os nossos motoristas de TVDE também trabalham na Bolt (95%) e Uber (86%). Isto mostra como este mercado é competitivo e que é bastante fácil para os motoristas mudarem de uma aplicação para outra”. Questionada pelo Observador sobre se vai contestar a proposta, a plataforma diz que ainda está a analisar. As restantes não responderam diretamente à questão.
Duas das maiores associações do setor, a Move EU (constituída pela Bolt, Free Now e Uber) e a Delivery Platforms Europe (Bolt, Glovo, Uber Eats), também reagiram. Fonte oficial da Move EU aponta que a proposta, que tem uma abordagem “única” num “setor muito diverso”, “corre o risco de ter graves e indesejáveis consequências para centenas de milhares de motoristas e consumidores em toda a Europa“.
Além disso, sublinha que a proposta não vai “necessariamente aumentar os salários ou garantir oportunidades de rendimento”, pelo contrário: “Provavelmente levará à perda de oportunidades de rendimento, já que mais de 149.000 motoristas podem perder o acesso ao trabalho e os consumidores irão ver os serviços que procuram e nos quais confiam muito danificados”.
We are concerned about the unintended consequences of blanket reclassification. This could put hundreds of thousands of #RideHailing drivers out of work and damage vital services that consumers across Europe rely on. https://t.co/z24iB26nnJ
— Move EU (@MoveEU_official) December 9, 2021
Fonte oficial da Delivery Platforms Europe também alinha no argumento de que as alterações podem levar ao fim de postos de trabalho por colocarem em causa a flexibilidade. “Um estudo recente da Copenhagen Economics previu que a reclassificação em toda a UE poderia levar até 250.000 pessoas a decidirem interromper o trabalho de entregas, pois não teriam mais a flexibilidade que procuram”, observa.
A proposed EU law would have serious consequences for couriers, small businesses, and consumers.
Read the full statement:https://t.co/J8wsiwuRdm pic.twitter.com/QsP4UG7gEa
— Delivery Platforms Europe (@DPE_Europe) December 9, 2021
No outro lado da barricada, António Fernandes, do Sindicato dos Motoristas TVDE de Portugal, indica que o sindicato ainda não tomou uma posição sobre a proposta, mas refere que medidas que reconheçam um vínculo laboral são importantes num setor “com muita flexibilidade onde não há controlo sobre nada”. Se reconhece que há trabalhadores que vão querer manter-se por conta própria, também há outros que “querem fazer disto profissão” e para quem é importante ter um vínculo ou acrescida proteção social.
Portugal esteve perto de regular, mas chumbo do OE travou alterações
Portugal esteve muito perto de regular o trabalho dos estafetas das plataformas digitais e reconhecer-lhes a existência de um contrato com a plataforma. A proposta foi feita no âmbito da chamada Agenda do Trabalho Digno, um conjunto de alterações à lei laboral planeado pelo Governo e que, em alguns pontos, foi negociado à esquerda. Só que, com a dissolução do Parlamento, o pacote, que esteve em consulta pública, não chegou a tempo da votação parlamentar, pelo que caiu por terra.
Referia a proposta que se presumia “a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e o operador de plataforma digital, se verifiquem algumas das características identificadas”. O texto não especifica quantas dessas características têm de ser identificadas, mas ao Público, Teresa Coelho Moreira, uma das autoras do livro Verde para o Futuro do Trabalho — que versou sobre esta matéria —, disse que têm de ser, pelo menos, quatro (dois indícios no que toca à relação entre prestador de serviço e plataforma e outros dois na relação entre prestador e consumidor). Esta formulação, se tivesse sido aprovada pelos deputados, iria mais longe do que a da Comissão, que apenas fala em dois indícios, no total.
No caso da relação entre prestador e plataforma, a proposta do Governo previa como indícios a fixação de retribuição pelo trabalho ou limites mínimos e máximos; o controlo da atividade do trabalhador, nomeadamente através de um “sistema de geolocalização”; o exercício de poderes laborais, como o poder disciplinar; a possibilidade de a plataforma excluir o trabalhador de futuras atividades; e o facto de o trabalhador não poder “subcontratar ou fazer-se substituir por outrem perante o operador sem o conhecimento deste”.
Já na relação entre o trabalhador e o utilizador, eram tidos em conta outros indícios: a plataforma fixa o preço pago pelo utilizador; é também ela que processa o pagamento; o trabalhador “não atua em nome próprio”, mas sob a marca da plataforma; a comunicação entre trabalhador e cliente é gerida apenas pela plataforma, que também controla a qualidade do trabalho do prestador de atividade.
Estas alterações, porém, não se iriam aplicar aos motoristas das plataformas, abrangidos pelo regime dos TVDE, no qual a figura do operador (intermediário na ligação entre plataformas e motoristas) — que o Governo já admitiu eliminar — dificulta o reconhecimento do vínculo laboral. Este regime deveria ser revisto até ao final do ano, mas o Governo preferiu fazê-lo em sede própria, fora da Agenda. Só que, com as eleições antecipadas, essa revisão também caiu por terra. A proposta de Bruxelas, porém, não exclui estes trabalhadores, pelo que o texto sugerido, se adotado, também se deverá aplicar aos TVDE. O Observador pediu uma reação ao Ministério do Trabalho, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.